2006-07-26

"Uma fábula": a alteração material em António Franco Alexandre



PALAVRAS-CHAVE: António Franco Alexandre – Uma Fábula – Alteração material – Poesia portuguesa actual


Decidiu a simpatia de António Franco Alexandre, depois da incisão literária sobre si efectuada pela revista Ave Azul (nº 4, “António Franco Alexandre e a sobrevivência da poesia”, Verão 2000 / Inverno de 2001), oferecer-me um exemplar do seu então novíssimo Uma fábula (2001). Dedicado e assinado, esse título assim chegado, inscrito que estava nos livros a haver pelos anúncios das saídas editoriais, trouxe-me sentido júbilo. Lembro ainda o estranho sortilégio provocado pelo contacto com esse livro “sepiado” e com figuras animais de aspecto clássico, de acordo com o enigma titular, aparecido de dentro de um pequeno envelope de que se destacava também, não o nego, uma outra incidência semiótica: a da grafia contida alexandrina, deflagradora de autêntica emoção, para mim, parte menor e interessada do entorno literário.
Precisando de nada, só de livros (assim pudesse ser!), lanço-me à leitura e, ultrapassado o embate da dedicatória, eis que a primeira parte, claramente impressa “1. poema simples”, aparece traçada pelo punho do autor, apondo-lhe nova titulação manuscrita: “narciso”. Tal alteração da materialidade do texto impresso, criando hipótese paralela, leva-me, desde logo, a abordar o texto da primeira parte (pretensamente conhecido, porque publicado em Ave Azul) com alguma desconfiança. Mas nem tanto assim: a leitura avançava sob a toada do reconhecimento. Até que, como já o notou Frederico Lourenço em leitura atenta, “surge uma estrofe omitida” (Lourenço, 2004: 278), isto é, não surge uma sextilha parentética que alude a uma outra fábula e que o Autor inserira na primeira versão publicada na revista viseense, criando-se assim, com esta alteração, a cisão com a modulação fabular que cruzava Eco e Narciso com “a pequena audácia trácia” (Alexandre, 2001: 9) de Orfeu.
Em “2. duplo”, o traço alexandrino opera já sobre o texto impresso, elidindo por sugestão, individual ou geral (quantos livros assim e iguais?), 70 versos seguidos (Alexandre, 2001b: 33-36) e, intermitentemente, outros 42 (id., 2001b: 37-39), seguidos de 14 (id., 2001b: 40-41) e mais 28 (id., 2001b: 41-42), num total de 154 versos eliminados (?) ou problematizados (?).
Por último, em “3. eco”, Franco Alexandre apenas rectifica o título da obra donde colhera o trecho da epígrafe, antepondo “Le” a “Roman de la Rose”.
Por aqui se ficando a intervenção de António Franco Alexandre, é justo que se conclua que a alteração material do texto impresso, não sendo confundível com um acto de corrupção textual, pode ser entrevista como uma correcção redaccional pós-tipográfica promovida pelo Autor.
Não se podendo prever para já se a modificação veio para ficar (há que esperar, por exemplo, por nova recolha da obra completa) ou se o encurtamento é individualizado para os destinatários (ouvi falar de outros casos, não sei se iguais), o certo é que a diferença endofórica interage já com a supressão e permite acertos hermenêuticos consequentes.
Sem previsão de “terramoto” nas linhas de leitura já traçadas, o “novo” texto alexandrino corrobora a “fulminação”[1] anteriormente detectada pelos hermeneutas alexandrinos, talvez se podendo dizer que a incisão autoral matiza a “boca bilingue”.
E assim a fábula alexandrina segue a metamorfose do corpo (corpo no corpo, acção do tempo sobre o corpo, fulgor e reflexo eróticos …), semeando chaves interpretativas e possibilidades. Antiquíssimo e matinal, coroado polifonicamente pelas melhores vozes, o canto fabular e mítico de António Franco Alexandre não se esgota naquilo que dizem ser[2]: e, no entanto, é já tudo o que foi dito mais o calor de novas emoções. Novas e diferentes, como diversas e complementares são as vozes desta fábula.[3] Pensando bem, não serão aqui as palavras o verdadeiro acontecimento, que, no sentido de Tsvetaieva, permite dizer viver o amor das palavras e morrer dos factos? E, no entanto, os factos são a poesia.


Bibliografia

ALEXANDRE, António Franco (2001). Uma Fábula. Lisboa: Assírio & Alvim.
ALEXANDRE, António Franco (2002). «“depoimento?” para um apeadeiro». Apeadeiro 2, 22-34.
AMARAL, Fernando Pinto (2001). «A luz que nasce das palavras». Mil Folhas de 10 de Novembro, 10.
ANTUNES, David (2001). «Identidade, metamorfose e fantasmas em Uma Fábula de amor». A Phala 90, 112-113.
ANTUNES, David (2002?). «O sopro do sentido na poesia muda de António Franco Alexandre». In htpp: //www.ples.umassd.edu./ples7texts/Antunes.doc.
FERREIRA, António Manuel (2005). «Uma Fábula, de António Franco Alexandre». Texto digitado.
LOURENÇO, Frederico (2002). «António Franco Alexandre: Pense quem lê». Os meus livros 2, 27-30.
LOURENÇO, Frederico (2004). «Catafonia Visível: Uma Fábula de António Franco Alexandre». In Grécia Revisitada. Lisboa: Livros Cotovia, 273-279.
MARTELO, Rosa Maria (2002). «Metamorfose e Repetição: Uma Fábula, de António Franco Alexandre». Relâmpago 10, 143-149.
PITTA, Eduardo (2002). «António Franco Alexandre». Ler (Livros & Leitores) 53, 98-99.
RUBIN, David Lee Rubin and SELLS, A. Lytton (1993). «Fable». In PREMINGER, Alex and BROGAN, T.V.F. (eds.), The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. New York: MJF Books.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «A poesia simples de António Franco Alexandre». Ave- -Azul 5-6, 137-138.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «António Franco Alexandre: o sopro de Eros entre os ossos e o chão». Jornal do Centro 32, 21.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «Um no outro: a poesia silenciosa de António Franco Alexandre». O Zurara 2, 6.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2003). «Uma cama de árvores e de lume: a poesia de António Franco Alexandre». In FERREIRA, António Manuel (coord.). Percursos de Eros: Repre-sentações do Erotismo. Aveiro: Universidade de Aveiro, 209-221.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2005). «Uma fábula: a lição política em António Franco Alexandre». Jornal do Centro 186.

Resumo: António Franco Alexandre é um dos nomes maiores da poesia portuguesa. Agindo sobre o texto impresso, o poeta redirecciona o leitor e escreve, possivelmente, um outro texto. A alteração material, individualizada ou sistemática, é acto que só novas edições poderão tornar válido.

[1] Frederico Lourenço refere-se do seguinte modo ao encontro havido com este livro: “O livro que me fulminou nessa segunda-feira que nunca esquecerei é Uma fábula (Assírio & Alvim, 2001), um quarteto assombroso constituído por “Poema Simples”, “Duplo”, “Eco” e “Epimítio”.” (Lourenço, 2004: 273)
[2] Fernando Pinto Amaral (2001) entrevê na obra alexandrina a narrativa de uma história de amor, em que abundam monólogos dialogais, que dirige o sentido para uma ética poética e para a suspensão da fluidescência humana; David Antunes (2002?) defende que o que se passa é “a silenciosa consciência de uma solidão e de um cepticismo que irrompe da sistemática tentativa do sujeito querer acreditar que não está só e que os outros existem e lhe devolvem uma consciência da sua própria existência”; António Franco Alexandre (2002) defende ser Uma fábula um “quinto capricho”, aí se fundindo vida e literatura, realidade e imaginação, humor e desistência; Rosa Maria Martelo (2002) releva o apagamento da imagem do outro; eu acentuei o ironismo e a viagem especular do descentramento presentes em “poema simples (2002), vincando depois a imensa história de amor plasmada na obra (2003); Eduardo Pitta (2002), en passant, lê a fábula à escala genológica; Frederico Lourenço (2003 e 2004) alude ao homem-fábula que representa a condição humana, vincando o poder sedutor e a simplicidade emotiva do texto alexandrino, aí se mostrando o mito da metamorfose universal; por último, António Manuel Ferreira (2005), vinca o processo de reconhecimento aí travado, deslocando o saldo parenético, que Pitta parecera divisar, para a lição ovidiana do “iste ego sum”, que é, também, uma missão para cada leitor. Um no outro, pois.
[3] De acordo com o postulado de David Lee Rubin e A. Lytton Sells (Rubin-Sells, 1993: 400-401), que subdivide as fábulas em três categorias (“the assertional, the dialectical, and the problematic”), inseriria Uma fábula nas problemáticas, atendendo à “omissão” da tese (o poema, diria Franco Alexandre, é “a sombra que ilumina / o lugar onde nada se vê”, à disparidade “narrativa”, à polifonia e à ambiguidade.

[Este texto foi publicado em forma breve 3 ].

4 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

e por aqui se faz do breve o longo caminho da divulgação....arrojado e árduo ofício de quem assim se prende ao jogo do eterno...
bom dia Martim. beijo.



(excelente trabalho.)

hfm disse...

Ausente durante uns dias da blogosfera como gosto do que aqui encontro! Obrigada.

porfirio disse...

:
insatisfação permanente é regra de ouro na arte de sulcar os versos.

abraço

Anónimo disse...

Belo texto sobre um dos Poetas. Abraço...