PALAVRAS-CHAVE: António Franco Alexandre – Uma Fábula – Alteração material – Poesia portuguesa actual
Decidiu a simpatia de António Franco Alexandre, depois da incisão literária sobre si efectuada pela revista Ave Azul (nº 4, “António Franco Alexandre e a sobrevivência da poesia”, Verão 2000 / Inverno de 2001), oferecer-me um exemplar do seu então novíssimo Uma fábula (2001). Dedicado e assinado, esse título assim chegado, inscrito que estava nos livros a haver pelos anúncios das saídas editoriais, trouxe-me sentido júbilo. Lembro ainda o estranho sortilégio provocado pelo contacto com esse livro “sepiado” e com figuras animais de aspecto clássico, de acordo com o enigma titular, aparecido de dentro de um pequeno envelope de que se destacava também, não o nego, uma outra incidência semiótica: a da grafia contida alexandrina, deflagradora de autêntica emoção, para mim, parte menor e interessada do entorno literário.
Precisando de nada, só de livros (assim pudesse ser!), lanço-me à leitura e, ultrapassado o embate da dedicatória, eis que a primeira parte, claramente impressa “1. poema simples”, aparece traçada pelo punho do autor, apondo-lhe nova titulação manuscrita: “narciso”. Tal alteração da materialidade do texto impresso, criando hipótese paralela, leva-me, desde logo, a abordar o texto da primeira parte (pretensamente conhecido, porque publicado em Ave Azul) com alguma desconfiança. Mas nem tanto assim: a leitura avançava sob a toada do reconhecimento. Até que, como já o notou Frederico Lourenço em leitura atenta, “surge uma estrofe omitida” (Lourenço, 2004: 278), isto é, não surge uma sextilha parentética que alude a uma outra fábula e que o Autor inserira na primeira versão publicada na revista viseense, criando-se assim, com esta alteração, a cisão com a modulação fabular que cruzava Eco e Narciso com “a pequena audácia trácia” (Alexandre, 2001: 9) de Orfeu.
Em “2. duplo”, o traço alexandrino opera já sobre o texto impresso, elidindo por sugestão, individual ou geral (quantos livros assim e iguais?), 70 versos seguidos (Alexandre, 2001b: 33-36) e, intermitentemente, outros 42 (id., 2001b: 37-39), seguidos de 14 (id., 2001b: 40-41) e mais 28 (id., 2001b: 41-42), num total de 154 versos eliminados (?) ou problematizados (?).
Por último, em “3. eco”, Franco Alexandre apenas rectifica o título da obra donde colhera o trecho da epígrafe, antepondo “Le” a “Roman de la Rose”.
Por aqui se ficando a intervenção de António Franco Alexandre, é justo que se conclua que a alteração material do texto impresso, não sendo confundível com um acto de corrupção textual, pode ser entrevista como uma correcção redaccional pós-tipográfica promovida pelo Autor.
Não se podendo prever para já se a modificação veio para ficar (há que esperar, por exemplo, por nova recolha da obra completa) ou se o encurtamento é individualizado para os destinatários (ouvi falar de outros casos, não sei se iguais), o certo é que a diferença endofórica interage já com a supressão e permite acertos hermenêuticos consequentes.
Sem previsão de “terramoto” nas linhas de leitura já traçadas, o “novo” texto alexandrino corrobora a “fulminação”[1] anteriormente detectada pelos hermeneutas alexandrinos, talvez se podendo dizer que a incisão autoral matiza a “boca bilingue”.
E assim a fábula alexandrina segue a metamorfose do corpo (corpo no corpo, acção do tempo sobre o corpo, fulgor e reflexo eróticos …), semeando chaves interpretativas e possibilidades. Antiquíssimo e matinal, coroado polifonicamente pelas melhores vozes, o canto fabular e mítico de António Franco Alexandre não se esgota naquilo que dizem ser[2]: e, no entanto, é já tudo o que foi dito mais o calor de novas emoções. Novas e diferentes, como diversas e complementares são as vozes desta fábula.[3] Pensando bem, não serão aqui as palavras o verdadeiro acontecimento, que, no sentido de Tsvetaieva, permite dizer viver o amor das palavras e morrer dos factos? E, no entanto, os factos são a poesia.
Bibliografia
ALEXANDRE, António Franco (2001). Uma Fábula. Lisboa: Assírio & Alvim.
ALEXANDRE, António Franco (2002). «“depoimento?” para um apeadeiro». Apeadeiro 2, 22-34.
AMARAL, Fernando Pinto (2001). «A luz que nasce das palavras». Mil Folhas de 10 de Novembro, 10.
ANTUNES, David (2001). «Identidade, metamorfose e fantasmas em Uma Fábula de amor». A Phala 90, 112-113.
ANTUNES, David (2002?). «O sopro do sentido na poesia muda de António Franco Alexandre». In htpp: //www.ples.umassd.edu./ples7texts/Antunes.doc.
FERREIRA, António Manuel (2005). «Uma Fábula, de António Franco Alexandre». Texto digitado.
LOURENÇO, Frederico (2002). «António Franco Alexandre: Pense quem lê». Os meus livros 2, 27-30.
LOURENÇO, Frederico (2004). «Catafonia Visível: Uma Fábula de António Franco Alexandre». In Grécia Revisitada. Lisboa: Livros Cotovia, 273-279.
MARTELO, Rosa Maria (2002). «Metamorfose e Repetição: Uma Fábula, de António Franco Alexandre». Relâmpago 10, 143-149.
PITTA, Eduardo (2002). «António Franco Alexandre». Ler (Livros & Leitores) 53, 98-99.
RUBIN, David Lee Rubin and SELLS, A. Lytton (1993). «Fable». In PREMINGER, Alex and BROGAN, T.V.F. (eds.), The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. New York: MJF Books.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «A poesia simples de António Franco Alexandre». Ave- -Azul 5-6, 137-138.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «António Franco Alexandre: o sopro de Eros entre os ossos e o chão». Jornal do Centro 32, 21.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «Um no outro: a poesia silenciosa de António Franco Alexandre». O Zurara 2, 6.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2003). «Uma cama de árvores e de lume: a poesia de António Franco Alexandre». In FERREIRA, António Manuel (coord.). Percursos de Eros: Repre-sentações do Erotismo. Aveiro: Universidade de Aveiro, 209-221.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2005). «Uma fábula: a lição política em António Franco Alexandre». Jornal do Centro 186.
Resumo: António Franco Alexandre é um dos nomes maiores da poesia portuguesa. Agindo sobre o texto impresso, o poeta redirecciona o leitor e escreve, possivelmente, um outro texto. A alteração material, individualizada ou sistemática, é acto que só novas edições poderão tornar válido.
[1] Frederico Lourenço refere-se do seguinte modo ao encontro havido com este livro: “O livro que me fulminou nessa segunda-feira que nunca esquecerei é Uma fábula (Assírio & Alvim, 2001), um quarteto assombroso constituído por “Poema Simples”, “Duplo”, “Eco” e “Epimítio”.” (Lourenço, 2004: 273)
[2] Fernando Pinto Amaral (2001) entrevê na obra alexandrina a narrativa de uma história de amor, em que abundam monólogos dialogais, que dirige o sentido para uma ética poética e para a suspensão da fluidescência humana; David Antunes (2002?) defende que o que se passa é “a silenciosa consciência de uma solidão e de um cepticismo que irrompe da sistemática tentativa do sujeito querer acreditar que não está só e que os outros existem e lhe devolvem uma consciência da sua própria existência”; António Franco Alexandre (2002) defende ser Uma fábula um “quinto capricho”, aí se fundindo vida e literatura, realidade e imaginação, humor e desistência; Rosa Maria Martelo (2002) releva o apagamento da imagem do outro; eu acentuei o ironismo e a viagem especular do descentramento presentes em “poema simples (2002), vincando depois a imensa história de amor plasmada na obra (2003); Eduardo Pitta (2002), en passant, lê a fábula à escala genológica; Frederico Lourenço (2003 e 2004) alude ao homem-fábula que representa a condição humana, vincando o poder sedutor e a simplicidade emotiva do texto alexandrino, aí se mostrando o mito da metamorfose universal; por último, António Manuel Ferreira (2005), vinca o processo de reconhecimento aí travado, deslocando o saldo parenético, que Pitta parecera divisar, para a lição ovidiana do “iste ego sum”, que é, também, uma missão para cada leitor. Um no outro, pois.
[3] De acordo com o postulado de David Lee Rubin e A. Lytton Sells (Rubin-Sells, 1993: 400-401), que subdivide as fábulas em três categorias (“the assertional, the dialectical, and the problematic”), inseriria Uma fábula nas problemáticas, atendendo à “omissão” da tese (o poema, diria Franco Alexandre, é “a sombra que ilumina / o lugar onde nada se vê”, à disparidade “narrativa”, à polifonia e à ambiguidade.
[Este texto foi publicado em forma breve 3 ].
4 comentários:
e por aqui se faz do breve o longo caminho da divulgação....arrojado e árduo ofício de quem assim se prende ao jogo do eterno...
bom dia Martim. beijo.
(excelente trabalho.)
Ausente durante uns dias da blogosfera como gosto do que aqui encontro! Obrigada.
:
insatisfação permanente é regra de ouro na arte de sulcar os versos.
abraço
Belo texto sobre um dos Poetas. Abraço...
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