2006-09-30

um dia...

se o caos de novo não vier
nem nos tempos próximos
o mais ínfimo lugar

dificilmente na pátria
outro modo e outro mar
abertos por breve sulco

contra os demagogos do momento
levanta-te que minam o tempo
afundando-te na escuridão
e na inércia do desalento

não sei se é hora ou ano
ou sonho adiado
sei que vai chegar ainda

assim o país resista.

2006-09-29

o país dentro da mentira: o caso do atestado médico

O Vítor Monteiro enviou-me, por mail , uma curiosa e verdadeira imagem do país que somos. Agradeço a peça e presto a mais do que justa homenagem ao professor de Filosofia (José Ricardo Costa) que permite a fiel inscrição do diagnóstico.


Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância.
Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.
Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.
Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?
Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder irpara uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico.
Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir este momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.
Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.
O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. Odirector regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente. O próprio legislador, que mandaa um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.
Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.
Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.
Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.
Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos aoteatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados. Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o "ET", que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D.Afonso Henriques, que Deus me perdoe. A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamoshabituados. Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal. Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei. Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho.
Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.
Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.
Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo.
Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.

2006-09-28

O amor em Oliva Guerra

De romantismo e sentimento quanto baste, OLIVA GUERRA (1898-1982), como poetisa, faz publicar Espirituais (1922), Encantamento (1926) e Ritmos (Conferências-1928), contribuindo assim decisivamente para a ebulição intelectual da agitada década de vinte e para a afirmação da mulher-criadora. Se olharmos para o livro de 1926, depois do soneto de abertura "Encantamento" ("Mas nesse anceio d' ir mais longe, a vida / É mais bela aos meus olhos, à medida / Que a vejo à luz do meu encantamento."[1]), seguem-se poemas dentro de três grandes títulos: "Exaltação", "Três datas" e "Portugal". Sob a primeira divisão titular, quase sempre em soneto, aparecem-nos temas relacionados com o carácter inefável do sentimento amoroso ("E, murmurando apenas sons banais, / Nós sentimos que é sempre muito mais / Aquilo que nos fica por dizer.", "Aspiração", p. 14), com o desamor da rotina que "num esperar contínuo se resume" ("Sempre", p. 22) ou com a saudade ("Encontro"), no meio de tantas outras possibilidades. Ainda assim, com subsistência de alguns poucos e raros momentos de espanto literário, a toada não deixa de ser banal.

[1] Oliva Guerra, Encantamento, Lisboa, Tip. da "Portugalia", 3ª edição, 1926, p. 7. As tiragens de cada edição eram reduzidas, o que explica, desde logo, o aparente grande êxito de alguns dos livros publicados na década de vinte. Esta obra de Oliva Guerra, que possuo, é a terceira edição, não obstante a primeira ser do mesmo ano. E por aí se ficou até 1975, ano que Oliva Guerra publicou À Esquina do Tempo (Versos: 1922-1974), Lisboa, Edição da Autora, 1975. Ritmos conhece no mesmo ano de 1928 a 2a edição (Lisboa, Sassetti & C.a, Editores).

um dia

que fazer
que fazer hei
que fazer hei-de
que hei-de fazer um dia?

2006-09-27

o caminho

sabes, a vida
e a morte
sabes, a vida
sem norte
sabes, a vida
e o desnorte
e só então o caminho…

2006-09-26

"O Acaso Objectivo"

Corvos na noite prestígio do Speakeasy!


A Espanta Espíritos e os Corvos convidam todos a vir assistir à actuação especial da banda Corvos na noite prestígio do Speakeasy !

Vai ser no próximo dia 26 pelas 23.30 e a entrada é gratuita.

Contamos com a vossa presença !

Aproveitamos para comunicar que devido ao mau tempo o concerto de dia 23, Sábado passado em Oeiras, foi adiado para o dia 4 de Outubro no mesmo local.

2006-09-25

a mais loura de lisboa (conto lírico de Isabel Mendes Ferreira)


"é tudo um sonho vago de luar."
Teixeira de Pascoaes

uma estrada longa. povoada de fantasmas. sebes altas como a memória dos ingloriosos dias de fome e encantamentos. uma vontade de ser mais que um estivador do trigo ressequido. uma sede de letras e sílabas. o medo do quarto escuro onde o pão era luz escassa e lunar, as algibeiras cheias de recados de água. cartas de recomendação para a cidade. para um balcão de perfumes e vernizes.

o Diogo lá ia. pés apressados rumo a sorte vencida no entanto mais verde que um carro de bois a ilharga. longa e suavemente despedia-se da montanha. da neve e das papoilas. um olhar de musgo incendiava as pedras que agora Ihe apeteciam mais que nunca. mas tinha de ir.
condenado ao futuro vestira o melhor. o primeiro. o único fato. como se a ironia da vida fosse um corte de fazenda grosseira e cinzenta. parda como a alma dos que sonham com a lua.

aproximava-se da estação como um bandido do pri­meiro assalto. a mãe era uma saia escura ao canto da cozinha. os irmãos mondavam a esperança de terem a sorte do Diogo. e entretanto iam jogando à cabra-cega com as ovelhas magras e melancólicas. o pai era uma sombra na esquina e um trago de aguardente na taberna do tio palmito.

ah aquele filho ia longe. era mesmo a carne da sua carne. e se não fosse doutor havia de casar com a loura mais loura de lisboa. sim que lá na capital as mulheres eram todas louras e perfumadas e tinham pernas brancas como a neve da serra.
ah aquele seu filho era mesmo igual a ele ditoso pai de quem parte para a cidade. e enquanto estes sonhos se bebiam na taberna do tio palmito o Diogo bebia o último cálice da terra à procura duma razão qualquer para ir mugir as vacas tristes e estéreis. de súbito para acabar com o desespero que só os escravos conhecem. um apito diabólico encheu o ar de desafio e como um touro selvagem o comboio irrompeu no silêncio das ervas.

o Diogo espantado e cansado de tanto medo e simultâneo desejo tomou de galope a terceira classe daquele monstro a arder Como um vulcão prestes a inundar a aldeia. não espreitou sequer o verde nem o alto das escarpas. Não disse adeus às camélias e esqueceu as rugas que envelheciam o rosto torturado da mãe. sentou-se ao contrário. no sentido inverso de lisboa num repentino receio de todas as mulheres louras e perfumadas. não chorou sequer. os Diogos não choram quando têm de fingir de vencedores.
e o comboio corria. voava. dir-se-ia comandado pelo de­sejo do pai que na taberna do tio palmito pedia mais um copo pela viagem triunfal do filho igual a ele.

Diogo chega a lisboa. gente. tanta gente. não sabia que o mundo e aquilo era com certeza o mundo. era tão cheio de gente. de carros que não eram de bois. de rapazes elegantes, de malas. muitas malas. seriam tesouros. cebolas ou cadeados? e sobretudo mu­lheres. mulheres de olhos verdes. lá na aldeia todas tinham olhos de sofrimento e por isso castanhos ou negros de desencanto.
parado como um polícia de sentinela Diogo duvidava do que lhe parecia ser o céu descido à terra, mar. era o mar. ninguém lhe tinha falado do mar. nem a tia Amélia que era tão sua amiga e sabia coisas insuspeitadas na terra da neve e das azedas em flor.

lisboa tinha o mar mesmo ali. soberbo e submisso em ondas de volúpia. em carradas de peixes luminosos e traineiras brancas e azuis com nomes em letras grandes e vermelhas. lembrou-se da fogueira dos ciganos. do mistério rubro que andava à solta pelas noites de agosto.

Diogo estava apaixonado. siderado. em êxtase. o mar era a sua primeira mulher. loura e perfumada. entregue sem reservas como um corpo sobre a erva. a erva que ele trazia guardada nos rins em noites de adolescente ansioso.
lenta e muito seguramente dirige-se ao cais. embriagado de limos e tainhas. o peito solto nas mãos apelativas. o corpo djlacerado de desejo chega devagar à boca das ondas. às ancas do céu. toca-lhes. atinge os lábios da água sôfrego e altivo. mancebo de veludo e cítaras. Diogo sente que dentro dele o vulcão vai explodir e lembra o comboio invadindo a estação. sabe que aquela mulher e a única mulher da sua vida. acesa. livre. pouca demais para tanto desejo. comove-se com a ternura que ela derrama no seu corpo. ternura de mulher primeira que se lhe oferece exigindo apenas o corpo que ele arde por lhe oferecer.
e Diogo nao aguentando mais aquele ardor na pele eriçada de antecipação do prazer. abate-se másculo e gigante sobre aquela mulher loura. perfumada. mulher de pernas brancas e cabelos de corais e con­chas e seixos e diamantes e carpas.

uma semana depois o pai de Diogo bebe na taberna do tio palmito pela alma daquele filho tão igual a ele. assim que chegou a lisboa casou-se com a mu­lher mais linda que lisboa inteira namorava. mas tinha sido o seu Diogo que a tinha cativado.

e a mãe ao canto da cozinha bordava lençóis de linho que pelo entardecer adentro ia depositar na arca inundada de limos e búzios de todas as cores.
(a mais loura de lisboa, Lisboa, Difel, 1984. O código óptico-grafemático foi alterado.)

história quase universal (tábua X): depois da noite


2006-09-24

história quase universal (tábua IX): apocalipse

apocalipse
nem o príncipe ou a chama
só um súbito arame
irrompe dentro dos ossos
violando os tímpanos

nem sol branco
nem calor dentro da pele
só as pombas e a cal
dentro da água

uma última vez
vibra o olhar na praça
magenta e a esplanada
fendendo a terra

chega ainda um corpo
depressa morrendo
sob caneta romba.

história quase universal (tábua VIII): poética antipoética

poética antipoética

fonética
poética
poiética
a fita métrica
encostada à pele
medindo a fronte
e o verso catético
poesia
ou escrito geométrico?

2006-09-23

explicação da fábula & tragédia modernista



Intencionalmente comunicativa, a fábula é narração e é intriga, correndo célere para o recorte moralizador. Tal segmento moral, de nome epimítio e quase sempre a última frase, sintetiza o ensinamento fabular. Assim esta coluna de anos, procurando mostrar.
Para ser mestre modernista, foi Almada a Madrid e teve de existir a regiana “presença”. Nesse mesmo ano de 1927, abandona Judith Teixeira e ruma a Espanha, mal olhando as provas de “Satânia”. Em breve, imersa na década seguinte, sobre si cai o silêncio. Desconhecido como poeta na década de 20, Luís de Montalvor é a alma da editora Ática e morrerá tragicamente nas águas do Tejo, em 1947. No início da década de 20, morre em Rilhafoles Ângelo de Lima, poeta enigmaticamente lúcido. Santa Rita Pintor e Sousa Cardoso morrem ignorados, participando António Ferro na humilhação de Fernando Pessoa, ao distinguir Vasco Reis e ao preterir a “Mensagem”. Breve, o fígado cede. Ao tempo, Raul Real, o da “literatura de Sodoma”, apodrece nas tabernas do Bairro Alto. Botto, defendido por Leal e por Pessoa, extravasa a decência e abandona o país, morrendo, estranhamente ou não, em 1959, como Judith Teixeira, morta desde há muito para a literatura. Em 1916, Mário de Sá-Carneiro, não conseguindo esmagar-se debaixo das rodas do metro, na estação do Pigalle, suicida-se com estricnina num hotel parisiense. Alexandre d’ Aragão, mais eficaz, encosta o pescoço aos “rails” de comboio no Choupal e morre trucidado, em 1930. Mário de Saa, que viu recentemente publicada a sua obra poética pela IN-CM, nenhum livro de poesia publica durante o seu período de vida. Em 1949, Carlos Queiroz sucumbe, subitamente, em Paris. Quase ao mesmo tempo e no mesmo ano, em Castelo de Vide, morre Francisco Bugalho, a quem há pouco falecera o prometedor poeta e filho Cristóvão de Pavia.
O esquiliano Prometeu ensina a que esgotemos o destino que nos coube. Até final, há nas gerações modernistas uma dor que ninguém apaga.

Texto publicado no Jornal do Centro, de 21 de Setembro de 2006.

As palavras de Bento XVI na Aula Magna da Universidade de Regensburg



Fé, Razão e Universidade: Memórias e Reflexões

Discurso do Papa na Universidade de Regensburg


Vossas Eminências, Vossa Magnificência, Excelências,
Distintos Senhoras e Cavalheiros,


É uma experiência comovente para mim estar de volta à universidade e poder, mais uma vez, dar uma lição neste pódio. Penso naqueles anos em que, depois de um período agradável na Universidade de Freisinger, comecei a ensinar na Universidade de Bona. Estávamos em 1959, nos tempos em que a universidade era feita de professores catedráticos. As várias cadeiras não tinham nem assistentes nem secretarias, mas em recompensa havia muito mais contacto directo entre estudantes e entre os próprios professores. Encontrávamo-nos com frequência antes e depois das lições nas salas de professores. Havia um intercâmbio vivo com historiadores, filósofos e, naturalmente, entre as duas faculdades de teologia. Uma vez por semestre havia o dies academicus, em que professores de cada faculdade apareciam perante os estudantes de toda a universidade, tornando possível uma experiência genuína da universitas – algo que V. Ex.ª também, Magnífico Reitor, acabou de mencionar – a experiência, noutras palavras, do facto, de que, apesar das nossas especializações que, por vezes, tornam difícil comunicarmos uns com os outros, fazemos parte de um todo, trabalhando em tudo na base de uma racionalidade única nos seus vários aspectos e partilhando responsabilidade no uso adequado da razão – esta realidade tornava-se uma experiência vivida. A universidade tinha também muito orgulho das suas duas faculdades de teologia. Era claro que, inquirindo sobre a razoabilidade da fé, também levavam a cabo um trabalho que era necessariamente parte do “todo” da universitas scientarum, mesmo se nem toda a gente pudesse partilhar da fé que os teólogos procuram correlacionar com a própria razão. Este sentimento profundo de coerência da razão dentro da universidade não foi sequer perturbado, mesmo quando uma vez foi noticiado que um colega nosso dissera algo estranho acerca da nossa universidade: que tinha duas faculdades dedicadas a algo que não existia: Deus. Mesmo face a tão radical cepticismo é ainda necessário e razoável colocar a questão de Deus pelo uso da razão, e fazê-lo no contexto da tradição da fé cristã: isto, na universidade, considerada na sua totalidade, era aceite sem qualquer questão.
Fui recordado disto, quando recentemente li a edição do Professor Theodore Khoury (Münster) de parte do diálogo levado a cabo – talvez em 1391 no acampamento de Inverno perto de Ankara – entre o erudito Imperador Bizantino Manuel II Paleólogo e um intelectual Persa sobre o assunto da Cristandade e do Islão e a verdade de ambos. Presumivelmente foi o Imperador que iniciou este diálogo, durante o cerco de Constantinopla entre 1394 e 1402; e isto explicaria porque é que os seus argumentos são mostrados em maior detalhe do que os do seu interlocutor Persa. O diálogo situa-se largamente nas estruturas da fé contidas na Bíblia e no Corão e trata especialmente a imagem de Deus e do homem, ao mesmo tempo que retorna sucessivamente à relação entre – como são chamadas – as três “Leis” ou “regras de vida”: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão. Não é minha intenção discutir esta questão nesta lição; eu gostaria de discutir aqui apenas um aspecto – ele próprio bastante marginal ao diálogo na sua totalidade – que, no contexto do tema “fé e razão”, me parece interessante e serve como ponto de partida para a minha reflexão sobre esta matéria.
No sétimo colóquio ("diálesis" – controvérsia) editado pelo Professor Khoury, o imperador toca no tema da guerra santa. O imperador devia saber que surah 2, 256 diz: “Não há compulsão nas coisas da fé”. De acordo com os peritos, este é um dos suras do período inicial, em que Maomé não tinha ainda qualquer poder e era perseguido. Mas o imperador também conhecia as instruções, mais tardes desenvolvidas e transcritas para o Corão, e que dizem respeito à Guerra Santa. Sem descer a detalhes, tais como as diferenças em tratamento relativas aos que seguiam o “Livro” e aos “infiéis”, ele dirige-se ao seu interlocutor com uma brusquidão inesperada que nos surpreende acerca da questão central sobre a relação entre religião e violência, em geral, dizendo: “Diz-me o que é que Maomé trouxe de novo e aí apenas encontrarás coisas más e desumanas tais como a sua directiva de espalhar com a espada a fé que pregava”. O imperador, depois de se ter expresso assim tão fortemente, segue para explicar em detalhe as razões pelas quais divulgar a fé pela violência é qualquer coisa de irrazoável. A violência é incompatível com a natureza de Deus. “Deus”, diz ele, “não se compraz com sangue – e agir irrazoavelmente (synlogo) é contrário à natureza de Deus. A fé nasce da alma, não do corpo. Quem quer que conduza alguém à fé precisa da habilidade de falar bem e de julgar adequadamente, sem violência ou ameaças... Para convencer uma alma razoável, não é preciso um braço poderoso, ou armas de qualquer tipo, ou qualquer outro meio de ameaçar uma pessoa de morte....”
A afirmação decisiva neste argumento contra a conversão violenta é esta: não agir de acordo com a razão é contrário à natureza de Deus. O editor, Theodore Khoury, observa: "Para o Imperador, um Bizantino formado pela filosofia Grega, esta afirmação é auto-evidente. Mas para a mentalidade muçulmana é absolutamente transcendente. A Sua vontade não está limitada por nenhuma das nossas categorias, mesmo pela da racionalidade". Aqui, Khoury cita um trabalho do notável islamista Francês R. Arnaldez, que assinala que Ibn Hazn foi tão longe a ponto de afirmar que Deus não está ligado a cumprir a sua própria palavra e que nada o obriga a revelar-nos a verdade. Se fosse essa a vontade de Deus, nós seríamos inclusive obrigados a praticar a idolatria.
Neste ponto, e tanto quanto somos capazes de compreender Deus e, por isso, a concretizar a prática da religião, deparamo-nos com um dilema inevitável. Será que a convicção de que actuar irrazoavelmente contradiz a natureza de Deus é apenas uma ideia Grega, ou é sempre e intrinsecamente verdade? Acredito que podemos ver a harmonia profunda entre o que é Grego no melhor sentido da palavra e a compreensão bíblica da fé em Deus. Modificando o primeiro versículo do Livro do Génesis, o primeiro versículo de toda a Bíblia, João começou o prólogo do seu Evangelho com as palavras: “No princípio era o Verbo” – logos -. Esta é a exacta palavra usada pelo Imperador: Deus age pela palavra (logos). Logos significa razão e palavra – uma razão que é creativa e capaz de auto-comunicação, precisamente porque é razão. João diz assim a última palavra sobre o conceito de Deus e nesta palavra todos os meandros penosos e tortuosos da fé bíblica encontram o seu cume e a sua síntese. No princípio era o verbo, e o verbo era Deus, diz o Evangelista. O encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento Grego não aconteceu por acaso. A visão de S. Paulo, que viu as estradas da Ásia bloqueadas e num sonho viu um Macedónio pedindo-lhe “Passa à Macedónia e vem ajudar-nos” (cf. Acts 16:6-10) – esta visão pode ser interpretada como uma “destilação” da necessidade intrínseca de uma reaproximação entre a fé bíblica e a pesquisa Grega.
De facto, esta reaproximação já decorria há algum tempo. O misterioso nome de Deus, revelado na sarça ardente, um nome que separa este Deus de todas as divindades com todos os seus diferentes nomes e declara simplesmente: “Eu sou”, já representa um desafio à noção de mito, em analogia próxima com a tentativa de Sócrates de vencer e transcender o mito. No Antigo Testamento, o processo que começou na sarça ardente alcançou nova maturidade no tempo do Exílio, quando o Deus de Israel, um Israel então privado da sua terra e do seu templo, foi proclamado como Deus do céu e da terra e descrito numa fórmula que ecoa nas palavras sussurradas na sarça ardente: “Eu sou”. Esta nova compreensão de Deus é acompanhada por uma espécie de iluminação que encontra a sua expressão completa no desprezo de deuses que são simples obras de mãos humanas (Sl 115, 4). Assim, apesar do conflito amargo com os governantes helénicos que almejaram acomodá-la à força aos costumes idólatras do culto dos Gregos, a fé bíblica, no período Helenístico, encontrou o melhor do pensamento Grego num nível profundo, resultando num enriquecimento mútuo evidente, especialmente na mais tardia literatura da sabedoria. Hoje, sabemos que a tradução grega do Antigo Testamento produzida em Alexandria – a tradução dos Setenta – é mais do que uma simples (e, nesse sentido, realmente menos do que satisfatória) tradução do texto Hebreu: é um testemunho textual independente e um passo distinto e importante na história da revelação, um passo que trouxe consigo um encontro genuíno entre iluminação e religião, um passo que trouxe este encontro de forma tão decisiva que permitiu o nascimento e difusão do Cristianismo. Um profundo encontro entre fé e razão tem lugar agora, um encontro entre entre iluminação genuína e religião. Do próprio coração da fé cristã e, ao mesmo tempo, do coração do pensamento Grego então juntos pela fé, Manuel II podia dizer: Não agir “segundo o ‘logos’” é contrário à natureza de Deus.
Com toda a honestidade devemos observar que na Idade Média tardia encontramos tendência teológicas separatistas desta síntese entre o espírito Grego e o espírito Cristão. Em contraste com o assim chamado intelectualismo de Agostinho e de Tomás, surgiu com Duns Escoto um voluntarismo que, nos seus desenvolvimentos mais tardios, levou a proclamar que nós só podemos conhecer a voluntas ordinata de Deus. Para além disto, é o domínio da liberdade de Deus, em virtude da qual, Ele poderia ter feito o oposto de tudo o que Ele realmente fez. Isto dá lugar a posições que se aproximam claramente das de Ibn Hazn e podem mesmo conduzir à imagem de um Deus caprichoso, que nem sequer está comprometido com a verdade e a bondade. A transcendência e alteridade de Deus são tão exaltadas que a nossa razão, o nosso sentido de verdade e de bem, já não são um autêntico espelho de Deus. Cujas possibilidades mais profundas permanecem eternamente inatingíveis e escondidas por detrás das suas decisões reais. Opostamente, a fé da Igreja insistiu sempre que entre Deus e nós, entre o Seu eterno Espírito Criador e a nossa razão criada existe uma analogia real, em que – como o 4.º Concílio de Latrão afirmou em 1215 – a dissemelhança permanece infinitamente maior do que a semelhança, porém, não ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não se torna mais divino quando nós o empurrámos para longe de nós, num voluntarismo separador e voluntarista; pelo contrário, o Deus verdadeiramente divino é o Deus que se revelou como logos e, como logos, actuou e continua a actuar amorosamente por nós. Certamente, o amor, como S. Paulo diz, “transcende” o conhecimento e, por isso, é capaz de perceber mais do que só o pensamento (cf. Ef 3:19); apesar disso continua a ser o amor de Deus que é Logos. Consequentemente, a oração cristã é, citando outra vez S. Paulo – latreialógica – oração em harmonia com a Palavra eterna e com a nossa razão (cf. Rom 12:1).
Esta reaproximação interna entre a fé bíblica e a pesquisa filosófica Grega foi um acontecimento de importância decisiva do ponto de vista da história das religiões, mas também da história universal – é um acontecimento que nos diz respeito a nós mesmo hoje. Dada esta convergência não é surpreendente que o Cristianismo, apesar das suas origens e de alguns desenvolvimentos significativos no Oriente, adquiriu finalmente o seu carácter decisivo na Europa e permanece o fundamento daquilo a que podemos chamar com justeza, Europa.
A tese de que a herança Grega criticamente purificada forma uma parte integrante da fé Cristã tem sido confrontada com uma chamada à des-helenização do Cristianismo – uma chamada que tem dominado cada vez mais as discussões teológicas a partir do início da Idade Moderna. Vistos mais de perto, podemos observar três estágios no programa de des-helenização: apesar de interligados, são claramente distintos uns dos outros nas suas motivações e objectivos.
A des-helenização emerge em primeiro lugar em ligação com os postulados da Reforma no século XVI. Olhando para a tradição da teologia escolástica, os Reformadores viram-se confrontados com um sistema de fé totalmente condicionado pela filosofia, isto é, com uma articulação da fé com um sistema estranho de pensamento. Em resultado disto, a fé não mais aparece como uma Palavra histórica viva mas como um elemento de um sistema filosófico regulador. O princípio sola scriptura, por outro lado, pensou a fé na sua forma mais pura e primordial, como originalmente se encontra na Palavra bíblica. A Metafísica apareceu como uma premissa derivada de outra origem, da qual a fé tinha que ser libertada, de modo a poder tornar-se mais ela própria. Quando Kant afirmou que precisava de pôr o pensamento de lado de modo a dar espaço à fé, levou este programa a um radicalismo que os Reformadores nunca tinham sonhado. Deste modo, ele ancorou a fé exclusivamente na razão prática, negando-lhe o acesso à realidade como um todo.
A teologia liberal dos séculos XIX e XX deslizou para um segundo estádio no processo de des-helenização, com Adolf Harnack como seu representante mais significativo. Quando eu era estudante e nos meus primeiros anos de aprendizagem, este programa era muito influente mesmo na teologia católica. Tomou como seu ponto de partida, a distinção de Pascal entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abrão, Iasaac e Jacob. Na minha lição inaugural em Bona, em 1959, tentei abordar este assunto e não tenciono repetir aqui o que disse nessa ocasião, mas simplesmente descrever, pelo menos brevemente, o que era novo neste segundo estádio de deshelenização. A ideia central de Harnack era voltar simplesmente ao homem Jesus e à sua mensagem simples, por debaixo dos acréscimos de teologia e verdadeiramente de helenização: esta mensagem simples era vista como o culminar o desenvolvimento religioso da humanidade. Jesus teria posto termo à adoração em favor da moralidade. Em última análise ele era apresentado como o pai de uma mensagem moral humanitária. Fundamentalmente, o objectivo de Harnack era voltar a trazer o Cristianismo para a harmonia com a razão moderna, libertando-o, numa forma de dizer, de elementos filosóficos e teológicos tais como a fé na divindade de Cristo e no Deus trinitário. Neste sentido, a exegese histórico-crítica do Novo Testamento, tal como ele a via, restaurava à teologia o seu lugar na Universidade: a teologia, para Harnack, é qualquer coisa essencialmente histórica e, portanto, estritamente científica. O que ela é capaz de dizer criticamente acerca de Jesus é, por assim dizer, uma expressão da razão prática e consequentemente pode tomar o seu lugar de direito na universidade. Por detrás deste pensamento, jaz a auto-limitação moderna da razão, expressa classicamente por Kant nas suas “Críticas”, mas ao mesmo tempo, ainda mais radicalizada pelo impacto das ciências naturais. Este conceito moderno de razão é baseado, para o dizer brevemente, numa síntese entre Platonismo (Cartesianismo) e empiricismo, uma síntese confirmada pelo sucesso da tecnologia. Por um lado pressupõe a estrutura matemática da matéria, a sua racionalidade intrínseca , que torna possível compreender como a matéria funciona e como a usar eficientemente: esta premissa básica é, por assim dizer, o elemento Platónico na compreensão moderna da natureza. Por outro lado, há uma capacidade da natureza para ser explorada para os nossos propósitos e aqui, apenas a possibilidade de verificação ou falsificação através da experimentação pode conduzir à certeza. O peso entre estes dois pólos pode, dependendo das circunstâncias, mudar de um lado para outro, a ponto de, J. Monod, um forte pensador positivista, se ter declarado um convicto platónico/cartesiano.
Isto dá origem a dois princípios cruciais para a questão que levantamos. Em primeiro lugar, só o tipo de certeza que resulta da interacção entre elementos matemáticos e empíricos pode ser considerada científica. Algo que se reclame científico pode ser confrontado com este critério. Deste modo, as ciências humanas, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, tentam conformar-se com este canon de cientificidade. Um segundo ponto, importante para as nossas reflexões, é que pela sua própria natureza este método exclui a questão de Deus, fazendo-a aparecer como não científica ou como uma questão pré-científica.. Consequentemente, deparamo-nos com uma redução do alcance da ciência e da razão que precisa de ser questionada.
Voltarei a este problema mais tarde. Entretanto, deve observar-se que deste ponto de vista qualquer tentativa de manter a pretensão teológica de ser “científica” acabaria reduzindo o Cristianismo a um mero fragmento da sua identidade inicial. Mas devemos avançar: se a ciência como um todo é isto e isto só, então é o próprio homem que acaba sendo reduzido, porque as questões especificamente humanas acerca da sua origem e do seu destino, as questões levantadas pela religião e pela ética, não terão então lugar no conjunto dos objectos da razão colectiva como definida pela “ciência”, assim compreendida, e devem, por conseguinte, ser relegadas para o domínio do subjectivo. O sujeito então decide, na base das suas experiências, aquilo que ele considera adequado em matérias de religião, e a “consciência” subjectiva torna-se o único árbitro do que é ou não ético. Deste modo, contudo, a ética e a religião perdem o seu poder de criar uma comunidade e tornam-se uma matéria completamente pessoal. Este é o perigoso estado de coisas da humanidade, tal como vemos a partir das perturbadoras patologias da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão é de tal modo reduzida que as questões de religião e ética já não lhe dizem respeito. As tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e sociologia, acabam por se mostrar simplesmente desadequadas.
Antes de retirar as conclusões a que tudo isto conduz, devo referir brevemente o terceiro estádio de des-helenização, que está em progresso. À luz da nossa experiência com o pluralismo cultural, diz-se frequentemente hoje que a síntese com o Helenismo conseguida na Igreja inicial era uma inculturação preliminar que não deveria ser obrigatória para as outras culturas. Diz-se destas últimas que têm o direito de regressar à mensagem simples do Novo Testamento, anterior àquela inculturação, de modo a poderem inculturar de novo de cada modo particular correspondente ao ambiente em que se encontram. Esta tese não é apenas falsa; é grosseira e imprecisa. O Novo Testamento foi escrito em Grego e traz consigo a impressão do espírito Grego, que já tinha atingido a maturidade enquanto se desenvolvia o Antigo Testamento. É verdade que há elementos de verdade na evolução da Igreja inicial que não têm que ser integrados em todas as culturas. Contudo, as decisões fundamentais tomadas acerca da relação entre fé e o uso da razão humana são parte integrante da mesma fé; são desenvolvimentos consonantes com a natureza da própria fé.
E chego assim à minha conclusão. Esta tentativa, a pinceladas largas, de uma crítica da razão moderna por dentro, que não tem nada a ver com recuar no tempo anterior ao Iluminismo ou rejeitar as conquistas da idade moderna. Os aspectos positivos da modernidade devem ser reconhecidos sem reservas: estamos todos gratos pelas maravilhosas possibilidades que foram abertas à humanidade e ao progresso que nos foi concedido. O ethos científico, é, para além disso, - como mencionou o Magnífico Reitor – a vontade de obedecer à verdade e, deste modo, incorpora uma atitude que pertence às decisões essenciais do espírito do Cristianismo. A intenção aqui não é de entrincheiramento ou de criticismo negativo, mas de alargamento do nosso conceito de razão e da sua aplicação. Ao mesmo tempo que nos alegramos com as novas possibilidades que se abrem à humanidade, também vemos os perigos que decorrem destas possibilidades e devemos perguntarmo-nos como os poderemos ultrapassar. Seremos bem sucedidos só se a razão e a fé se juntarem de uma forma nova, se ultrapassarmos a auto-imposta limitação da razão ao empiricamente verificável, e se uma vez mais libertarmos os seus vastos horizontes. Neste sentido, a teologia tem lugar na universidade e dentro do largo leque de diálogo entre as ciências, não apenas como uma disciplina histórica e uma das ciências humanas, mas precisamente como teologia, como inquérito sobre a racionalidade da fé.
Só assim nos tornaremos capazes desse diálogo genuíno entre culturas e religiões tão urgentemente necessário hoje. No mundo ocidental domina largamente a opinião de que só a razão positivista e as formas de filosofia nela baseadas são válidas universalmente. Contudo, as culturas do mundo profundamente religiosas vêm esta exclusão do divino da universalidade da razão como um ataque às suas mais profundas convicções. Uma razão que é surda ao divino e que relega a religião para o âmbito das subculturas é incapaz de se inserir num diálogo de culturas. Ao mesmo tempo, como tentei mostrar, a razão científica moderna com o seu elemento intrinsecamente Platónico traz consigo uma questão que aponta para além de si própria e para além das possibilidades da sua metodologia. A razão científica moderna tem, muito simplesmente, que aceitar a estrutura racional da matéria e a correspondência entre o nosso espírito e as estruturas racionais prevalecentes na natureza como um dado, na qual a sua metodologia tem que ser fundada. Contudo, a questão porque isto tem que ser assim é uma verdadeira questão que tem que ser redireccionada pelas ciências naturais para outros modos e planos de pensamento – para a filosofia e a teologia. Porque a filosofia e, apesar de em modo diferente, a teologia, escutando as grandes experiências e descobertas das tradições religiosas da humanidade, e as da fé cristã em particular, é uma fonte de conhecimento, e ignorá-lo seria uma restrição inaceitável do nosso ouvir e responder. Aqui lembro-me de algo que Sócrates disse a Phaedo. Nas suas primeiras conversas, tinham surgido muitas opiniões filosóficas falsas e então Sócrates diz:”Seria facilmente compreensível que alguém ficasse tão aborrecido com todas estas noções a ponto de, para o resto da sua vida, desprezar e troçar de toda a conversa acerca do ser – mas deste modo ficaria privado da verdade da existência e sofreria uma grande perda”. O Ocidente tem, desde há muito tempo, sido ameaçado por esta aversão às questões que suportam a sua racionalidade e daqui para a frente só pode ser ainda mais prejudicado. A coragem de incluir todo o âmbito da razão, e não a negação da sua grandeza: é este o programa com que uma teologia enraizada na fé bíblica entra nos debates do nosso tempo. “Não agir razoavelmente, não agir com logos, é contrário à natureza de Deus” disse Manuel II, de acordo com a sua compreensão cristã de Deus, em resposta ao seu interlocutor persa. É a este grande logos, a este respiro da razão, que convidamos os nossos parceiros no diálogo de culturas.
Redescobri-lo constantemente é a grande tarefa da universidade.


Aula Magna da Universidade de Regensburg, 12 de Setembro de 2006


NOTA: Versão para português da tradução inglesa do original alemão enviada a "Ave-Azul" por Pedro Aguiar Pinto. O Papa pretende apresentar uma versão posterior deste texto, completa e com notas de rodapé. O presente texto, oferecido pelo Vaticano, deve ser considerado provisório..

porque hoje é sábado

2006-09-21

António de Navarro e o fio dos sentidos


“é que eu gosto do mistério.”
(Branquinho da Fonseca, «Carta a Alberto de Serpa», M-SER-426(6))

Decidiu o acaso, através da humana intervenção de António Manuel Ferreira, que se juntassem neste painel comunicações sobre Carlos Queiroz e António de Navarro. Coincidência influenciada ou não, o certo é que Manuel Anselmo, no “Pequeno ensaio sobre o movimento modernista português” de 1937, estabeleceu um dignóstico sobre os mesmos poetas, emparelhando-os com os seguintes dizeres: “Carlos Queiroz e António de Navarro caminham, com segurança, para uma ambição formal que se poderá chamar sinfónica. Queiroz mais descritivo, (…) Navarro, mais musical” (Anselmo, 1937: 236). Com a música e com Navarro sigo, pois, celebrando a coincidência e o nome maior de Branquinho da Fonseca.
António de Navarro colaborou na presença desde o primeiro número e, no ano em que Régio se licenciou com uma atrevida tese de licenciatura, o seu vanguardismo era já o da linguagem sms. E, no entanto, muito silêncio se foi instalando…
Os actos poéticos são muitas vezes afectados pela descontinuidade e pelas bruscas aparições. Sem norte, o fio da poesia busca sentidos, ainda que, relativamente a Navarro, se deva antes falar de isolamento e de ausência[1]. Um caso clássico de interrupção e de continuidade é o de Rainer Maria Rilke, que, dez anos passados, logrou o verso concatenador nas suas Elegias de Duíno. O verso de resgate que Navarro cifra inscreve-se na matriz da portugalidade e é um acto contínuo sobre o mistério e o grande mar. E é talvez esse o nodal lugar de encontro de Branquinho da Fonseca com António de Navarro: se o primeiro deixou no nº 3 da revista Litoral “sete importantes poemas, que formam uma pequena colectânea” (Ferreira, 2004: 39) intitulada “Sete poemas do mar”, o segundo multiplicou o determinante numeral cardinal pela obsessão e fez do mar a sua pátria. Mas, pensando melhor, o mar é uma presença constante[2] nos universos navarriano e fonsequiano, revelando-se ainda, na justiça das águas pacificadas, ser Navarro mais poeta e Fonseca mais lírico.
Adolfo Casais Monteiro, ao reflectir sobre aqueles “que mais conscientemente se integraram no espírito renovador da revista”(Monteiro, 1972: 29) presença, não hesita em adiantar Régio, Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt, António de Navarro, Carlos Queiroz, Francisco Bugalho, Fausto José, Saul Dias, Alberto de Serpa e o seu próprio nome.
O trajecto de António de Navarro (e aqui digo acção cultural e obra literária) é um curso fluente e invulgar.[3] E o início dessa qualidade supletiva encontramo-la desde cedo, desde, por exemplo, a admissão de Mário Coutinho, em páginas do Diário de Lisboa (13 de Março de 1925), de haver um “movimento futurista” liderado por nomes como “José Régio, Celestino Gomes, António de Navarro, João Carlos, Abel Almada” e o seu. Navarro, muito dentro da dinâmica artística do momento, então sob o pseudónimo Príncipe de Judá[4], podia assinar manifestos epigonais e “pastiches” do Futurismo, podia mesmo, em “conferência sensacional” intitulada “Sol”, ser pateado no Teatro Sousa Bastos de Coimbra[5]. Fernando Guimarães, glosando António Ramos de Almeida[6], admite mesmo que há em António de Navarro “uma certa adesão a um imaginário ou mesmo receituário futurista” (Guimarães, 2000: 42), o que se torna evidente se relembrarmos uma parte do Manifesto publicado em Coimbra, nesse mesmo ano de 1925, e assacável ao nosso Poeta:
Os cegos olham kom os olhos dos outros ke já olharam e nós keremos olhar com os olhos dos outros ke já olharam, mas kom toda-a-força kom os nossos olhos e sentir kom a nossa alma. Keremos eskalar o Universo ke se fez pra nós o eskalarmos. A alma tem o Universo dinamiko em si, mas nós ke somos o alem-Universo ultradinamico. // Arte é movimento, é Universo dinamiko, é animismo veloz.[7]

Em breve, e em colaboração continuada entre 1927 e 1932, seria o tempo da presença. Aí voltará intermitentemente, depois do escândalo provocado pelo seu poema “O braço do Arlequim”[8] saído no primeiro número, ele que era e é o segundo poeta da revista, de acordo com a data de início de participação e o critério de Casais Monteiro lavrado na “Bibliografia” da sua Antologia. Olhando o acúmulo de poemas, quase todos impublicados em livro, diga-se que o conjunto é ainda hoje surpreendente de agilidade e leveza poéticas. Aliás, é um estruturado David Mourão-Ferreira quem defende que os poemas presencistas de Branquinho da Fonseca, António de Navarro e Edmundo de Bettencourt são admiráveis “realizações do nosso vanguardismo pós-modernista” e são «os que melhor documentaram a inquieta continuidade do espírito de Orpheu, tanto pela aguda desconfiança a alternar com a crença desmedida nos poderes da palavra, como pelo reiterado pendor para a visão alucinatória do concreto e para a expressão aparentemente cândida do insólito.» (Mourão-Ferreira, 1969: 206-207). Nesse espaço de tempo, em 1930, colabora Navarro na organização do Cancioneiro[9], antologia de poesia modernista portuguesa, defluente do “I Salão dos Independentes” que Diogo de Macedo e António Pedro organizaram em Maio desse ano. E aqui me detenho um pouco, para dizer que Navarro aí participa com quatro poemas. Um deles, “O automóvel azul”, chega a ser admirável de leveza e eficácia fónico-rítmica:
O cláxon zine…
e a fuga é toda azul
(anil
de ozone
num uuul
de cone)
na fita branca da estrada
parada
ao sol…

E o acordeón
do cláxon
retine e zine
ainda em som
lá longe
na amplidão
infinda.

É tudo instável,
ave,
como o automóvel…
lá – lá!...

no vértice acutângulo
dum ângulo
agudo e móvel
na clave
móvel,
da vibração.[10]

Voltando à presença desse mesmo ano e avançando para a do ano seguinte, não posso deixar de destacar uma significativa “Ode ao Senhor António de Navarro, Rabi-Mor de Portugal e dos seus Versos”[11] de António Pedro e um “estudo para um ensaio”[12], inusualíssimo, que acaba por desejar transmitir em poema a oração final de Ângelo de Lima.
Em entrevista ao “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa (1 de Março de 1935), José Régio, instado sobre o rejuvenescimento ou a crise da literatura portuguesa, defendeu que dessa tensão terá resultado um renovo integral, de motivos e meios de expressão. Quando o director da presença emitiu tal juízo, estávamos em finais de Fevereiro de 1935. Tal vitalidade expressou-a Régio com a seguinte tirada que faz de António de Navarro uma presença real e importante no panorama nacional:
“Os motivos poéticos de Mário de Sá-Carneiro, de Fernando Pessoa, de António Botto, de Adolfo Casais Monteiro, de Adolfo Rocha, de António de Navarro, de Edmundo de Bettencourt, de Branquinho da Fonseca, de Saul Dias,etc.,- não são os de Bernardim, Garrett, Soares de Passos ou Junqueiro.”

Algo mudara, pois, na literatura portuguesa e António de Navarro estava lá. A voz autoritária que o disse é aquela mesma sobre a qual Miguel de Sá e Melo (1936) não hesitou no acto judicativo absolutizante: “José Régio é quanto a mim o maior poeta português vivo.”
Os “Dez minutos com António de Navarro” estampados no “Suplemento literário” do Diário de Lisboa de 22 de Janeiro de 1937 apresentam o poeta presencista como “um dos líricos mais belos da nova geração”.[13] E é mesmo um habitualmente ácido Luiz Pacheco quem, depois de apodar Navarro como um sujeito “de feitio agreste, quase violento, um tanto maníaco e forreta”, o classifica de “poeta excelente” (Pacheco, 2004: 136)[14], certamente pensando em poemas nunca recolhidos em livro como “Bacanal”, “Os Medronheiros”, “Poema” ou “Bordel”, que leio, para o centro da memória, lembrando ainda que esta composição tem sido vista, por alguma crítica, como integrável nalgum expressionismo europeu de devastação vocabular e atomização poemática. Mas, ouçamos “Bordel”:
Horas mortas…
… turvas
tortas
agora
e toda a hora…
… Ámen!

Portas tortas
abertas
hirtas
abertas
tortas
retortas
de trincos
e trancas
partidas

E tudo torto
- mas tudo…
tudo torcido
e contorcido
e turvo e torto…
… mas, sobretudo
mui… muito torto,
tão hirtamente…
… terrivelmente!

E há horas brancas
adormecidas
nas horas pretas
e há um fado
cantando
contando,
embalado,
a sina de todas
que tu, e eu, mais enlodas

(Baixinho, que ninguém ouça!
Podem chamar-me doido…)

Pressinto,
quando entro,
não sei porquê!
o Cristo
e a Virgem Mãe
lá dentro
naquele antro
a par e ao pé
dum Mefisto
de quebranto
estranho encontro!...

Agora,
e toda a hora…
… Ámen![15]

O primeiro livro de poesia de Navarro é Poemas d’África (1941). Em prefácio ilustrativo, João Gaspar Simões defende que o Autor é um “poeta puro”, para quem a poesia “é mais um estado do que um meio”. Da influência da curta presença por Lourenço Marques resultou esta colectânea de estranha sensualidade poética (“Ai, que volúpia, meu deus feitiço”) vinda do hálito morno da terra, abundante de sinestesias e raras metáforas, aí pontuando ainda a fascinação pelo seniano “vocabulário tecnicista”.[16] Não denegando o convencionalismo ocasional ou a linguagem confran-gedora aí entrevista por Eugénio Lisboa (Lisboa, 1980: 87), extensiva, ainda segundo o clerc do ensaísmo português, a toda a obra navarriana, direi poder haver nela algo mais[17]: por exemplo, a “disponibilidade verbal transfiguradora” que retoma o que existe “de mais exaltante em Ângelo de Lima”, como o notou um Fernando Guimarães (1977: 45), ou a “ebriedade dionisíaca” de que fala Óscar Lopes (s.d.: 800).
Logo de 1942 é Ave de Silêncio. Trata-se de um livro de aparente simplicidade natural, em que o sujeito poético, fundido nos elementos, assiste à “história do mundo” e à legibilidade do seu espírito. Leve, quase suspenso, cada avanço poemático é um encontro com o vento e com o melhor silêncio. Muito próximo até de algum Pessoa ou Caeiro, Gaspar Simões nota-lhe um “pendor discursivo e conceituoso” (Simões, 1976: 306). Óscar Lopes, por seu lado, classifica-a de emblemática (s.d.: 801).
Em 1951, Eugénio de Andrade dedica a António de Navarro o poema “Para um pássaro” (Cf. Sísifo, nº2-3). Nesse mesmo ano, António de Navarro dedica “Poema” a Eugénio de Andrade (Cf. A Serpente, fasc. 3). Em 1956, publica-se uma ode de Navarro na obra Até Amanhã de Eugénio de Andrade (Lisboa, Guimarães Editores).
Poema do Mar (1957) contém interessantíssimos ambientes poéticos, nomeadamente os habituais momentos de tonalidade marinha da Nazaré, que Branquinho tão bem cultivou em Mar Santo (1952) e que convocam os arcanos da própria poesia. Não obstante, confesse-se, nem sempre o voo é altaneiro, avultando alguma vulgaridades e imensíssimas gralhas, que, não embotando a qualidade poética, obscurecem o interessante influxo da acédia que muitas vezes, exuberante e eficazmente, reganha indenegável centralidade. Um dos pontos frágeis desta colectânea é, para Gaspar Simões, uma certa retórica barroca e discursivista presa à racionalidade, lembrando “o mau Junqueiro e o pior Gomes Leal”.[18] A propósito desta obra, Taborda de Vasconcelos (Vasconcelos, 1958: 109) salienta haver na colectânea autenticidade vibrante e emotiva e novas impregnações sugestivas. Há também um motivo, que, sendo constante, assume aqui particular relevância: a explosão da metáfora percutiva, vinda de uma oficina ressonante alimentada de solidão.
Segue-se Águia Doída (Poemas d’África), de 1961, livro influenciado pela permanência por terras africanas, que convoca para o fogo interpretativo todos os abismos da nostalgia e do mistério, com fundadas ligações ao Quinto Império e ao monarquismo. A pregnância do ignoto comprime o sujeito poético, reservando-lhe o delicado papel de escutar os ritmos e sinais da natureza (“Sinto ainda passar nas tardes mornas”). Canto da ausência, do desenraizamento e da evocação, a poesia de António de Navarro é ainda abundante de sensações musicais (“Onde a vida foi, fugitiva, / a forma inatingível, / a pura música cativa”) e cromáticas (“Onde o sol, de crista de oiro, / cantou, a sombra alaga / e alonga…”). Como se a carne fosse também distância…
Na morte de Raul Leal, em 1964, coube ao Poeta a palavra “à beira da campa do velho companheiro”[19]. Em amizade conjunta andavam ainda Álvaro Ribeiro, Pinharanda Gomes, Azinhal Abelho e Francisco Brito.
Em 1971, António de Navarro publica Coração Insone, obra que contém obras anteriores e insere Vigília Distante. Acentua-se a linha sebástica e sacral (“- um lírio / de abismais / na minha de Dom Sebastião mão de gládio / e Espírito”), com reiterada visita ao magnetismo africano (“Na tarde, ai as tardes de África, / tão sequiosas de noite e calma!...”) e ao esoterismo místico (“Templário e longe, litúrgico, - tu que nasceste / ungido da água duma fonte secreta e mística.”), numa poesia lavada visceralmente por sangue revelador.
Guitarras em Madeira d’Asa (1974) é, como o defende Pinharanda Gomes, um livro profético-sapiencial, pleno da admonições e de reganhos épicos. Homenagem também a D. Sebastião e ao seu Aposentador-mor Francisco Navarro, é do Sacratíssimo Rei que importa falar, mergulhando-se, através do “mar da poesia”, na protologia do mito sebástico e na sua irradiação. Deflagram no universo univocal navarriano relâmpagos azulescentes (“falcões caçando azul”, “bebendo-se azul”, “centauro azul”…) que combatem o pensamento vulgar e afirmam, simbolicamente, um ideário monárquico alicerçado no curso vital pundonoroso (“Eu vi El-Rei chamar a noite / Com sua alma de guitarra luacenta…”).
Antes do fim, publica ainda António de Navarro a colectânea poética O Acordar do Bronze (1980), obra que sublima a pervivente ambiência marinha e a definitiva tergiversação da presença a Orpheu, encastoando a sua produção sob o signo da lusitanidade e do sofrimento:
Grandes águias dum verde transcendente
Evoca nas noites e nos sóis
De Sagres, evocando os teus e nossos heróis
E a nossa terra de heróis, o mar
E tua alma por eles te sagres,
Sagrando os sóis…

Olhando algum passado, muito custa, no sentido de Vyvyan Holland, concluir que uma das represálias mais sérias é a condenação ao silêncio, nomeadamente quando o caso se refere a um escritor invulgar como se o completo nome, António de Albuquerque Labatt de Sotto Mayor Navarro de Andrade, fosse o gelo e a desmesura, encostado pelos apodos do intelectualismo, do discursivismo, do retoricismo e do neobarroquismo.
António de Navarro, podendo sugerir, por um lado, uma certa confusão verbal ou até mesmo uma falta de domínio das palavras[20], é sempre um poeta historicamente dotado, proveniente que é da fibra orpheica[21] e do tempo da originalidade excêntrica. Navarro persegue a música e o sentido obscuro da natureza, muitas vezes se confundindo na demanda com explosões e redemoinhos verbais e outras tantas logrando, no dizer avisado de Casais Monteiro, “das mais belas expressões da poesia no nosso tempo” e “uma arquitectura que se aparenta à de Álvaro de Campos”[22]. Navarro como Casais Monteiro, Saul Dias e João Falco (Irene Lisboa) algo devem a Campos e a Almada.
Diferente e original, no entanto, há em Navarro um quid escutador à maneira de Sophia, diferente do nemesiano “poeta absorto”, que faz dele um escritor que sobrepõe a sua natureza à Natureza, aprofundando-se numa arte poética do pressentimento. Dividindo-se, segundo António Manuel Couto Viana (1994: 61), entre o “barroquismo pujante” e o “lirismo epigramático”, a poesia de António de Navarro entra pelos tímpanos.
Sem completude, a obra navarriana espera, na sua seiva torrencial, um olhar atento dos novos e bons leitores, aprofundando-se, por exemplo, a vertente surrealista que Natália Correia cavou, inserindo “Bacanal” na lei essencial dos estados alucinatórios.[23] Poesia do relâmpago e do instante indecifrável e extático, linfaticamente explosiva, para dentro ainda implode cada verso tantas vezes surpreendente. Não seria sequer difícil ou moroso antologiar um sem número de lugares maiores da nossa poesia nesses versos deslembrados[24]. E os melhores deles serão muitas vezes conseguimentos isolados que são a própria estrutura da “casa da poesia”, como este, que mostro, vindo do tempo do fim (“Cada vez mais as coisas sonham.”), em matriz profética que o tempo, acredito, haverá de coonestar. Abrem-se ainda, neste fio que desenrolo, o modo irónico associado à poesia de António de Navarro ou o seniano “dadaísmo inconsciente”[25], bem como a questionação e desconstrução poemáticas, linhas, aliás, entrevistas por Fernando Guimarães (2002). Decantam ainda no labirinto cerebral da crítica presencista as palavras cristalinas de Gaspar Simões que o dizem “poeta integral” (Simões, 1964: 340)[26] ou o asserto de António José Saraiva e Óscar Lopes que alude ao extravasamento dos “limites entre a consciência e a natureza” (Saraiva-Lopes, 1956: 934). Mas até quando?
Recolho a disseminação e dou de novo. António de Navarro é um caso de silêncio a resolver. Próximo, pela voz da crítica, do paroxismo e do delírio fantasista de Sá-Carneiro[27] e de Almada, do mistério ocultista de Pessoa e de Ângelo de Lima[28], da técnica compositiva de Álvaro de Campos ou da sugestão transcendente de Pascoaes, há no Poeta um fio de transmissão que conduz sempre à “casa da poesia”.
Abrem-se, pois, novas portas e outros sentidos. O tempo do resgate vai chegar, começa a chegar. Sem vazio, a nossa presença é já a força da presença. Hoje e ontem, aqui.
[1] Informa Taborda de Vasconcelos (Vasconcelos, 1958: 108): “É único e exemplar o caso de António de Navarro, homem que tem vivido poeticamente, em estado de quase permanente isolamento, o tempo todo da sua meia idade civil e o da sua juventude.” Acrescenta ainda o crítico que o Poeta “vive de ausência e apagamento em face das múltiplas solicitações da vida”.
[2] E não só. Lembro, v.g. , que João Campos publicou nas Edições “Presença” um livro não despiciendo intitulado Mar Vivo (1939) com seis poemas integrados na colectânea “6 Poemas do Mar” (1939: 11-26).
[3] Franco Nogueira di-lo “um dos mais originais poetas modernos” (Nogueira, 1954: 258); João Gaspar Simões diz que António de Navarro se afirma “como um dos casos poéticos mais originais” (Simões, 1976: 304), juntando que ele “mostra uma personalidade a muitos títulos nova na poesia portuguesa” (Id., 1977: 335); Clara Rocha inclui o Poeta nos nomes importantes “do núcleo presencista” (Rocha, 2003: 68). Franco Nogueira, no capítulo VIII “Seis Poetas Maiores” da obra atrás mencionada, elege como figuras gradas Afonso Duarte, José Gomes Ferreira, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga e António de Navarro. Manuel Antunes refere-se-lhe como um poeta indispensável “do movimento modernista em Portugal” (1987: 176). Um exercício legitimador do peso de Navarro (principalmente como presencista) é, por exemplo, a mera observação empírica do “Índice de Autores” de Santarém Andrade (1980: 367-370), que permite concluir só existirem mais menções para, e pela ordem, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões e Fernando Pessoa.
[4] Veja-se a entrevista com o Príncipe de Judá no Diário de Lisboa de 17 de Abril de 1925.
[5] Sobre o “rótulo” apensado a Navarro e aos jovens poetas presencistas, adianta o mesmo Gaspar Simões (Simões, 1977: 142-143): “Não faltavam, porém, motivos para escandalizar a academia, a qual, ao contrário do que estipula a lenda, desmascarada por António Nobre, se gozava de créditos intelectuais, a um pequeno escol o devia. (…) O Braço de Arlequim, de António de Navarro, por exemplo, (…) arrancou uivos às alcateias de capa e batina. De facto, o que desde logo espevitou a troça e deu guita ao papagaio do escândalo foi a colaboração poética do jornal. Além de António de Navarro, que então entalava o pescoço em altos colarinhos de goma a condizer com as camisas, igualmente engomadas, o qual, pouco tempo antes, lançara um manifesto literário-artístico de tom escandaloso, exibindo-se, numa conferência pública, na sala de um teatro às escuras” (sublinhado meu). Óscar Lopes (s.d.: 749), por seu lado, informa que desse grupo do manifesto se destacava António de Navarro.
[6] António Ramos de Almeida (1945: 47) refere-se ao “futurismo formal de António de Navarro”.
[7] O texto integral do Manifesto, em que colaboraram, para além de António de Navarro, Mário Coutinho, Celestino Gomes e Abel Almada, encontra-se disponível em Os Modernistas Portugueses, 1º vol., Porto, s. d., pp. 103-118, com coordenação de Petrus.
[8] Fernando Guimarães (1977: 30) refere que tal poema terá contribuído para “aumentar um possível mal- -estar” e Maria Teresa Arsénio Nunes (1982: 16) diz tratar-se de um trecho que “marcaria a presença desta Presença”.
[9] Este Cancioneiro (AAVV, 1930) foi editado em Lisboa, pela Imprensa Libânio da Silva, tratando-se de um in-fólio de 27-I págs. A abrir informa-se: “é dedicado este CANCIONEIRO à memória dos precursores Cesário Verde, Camilo Pessanha, Ângelo de Lima e Mário de Sá-Carneiro”. Para além de poemas dos autores citados (de Cesário, integra-se “Manhans brumosas”; de Pessanha, “Poema Ninive” e “Gelo de Lim”; e, de Mário de Sá-Carneiro, “Uma das Sete canções de declínio”), a publicação encerra colaboração de Adolfo Rocha (“Inauguração” e “Triunfo”), Adolfo Casais Monteiro (“Vagabundo”, “Film” e “O que hoje”), Alfredo Pedro Guizado (“Recordando” e “Mãos de cega”, Álvaro de Campos (“Addiamento”), Fernando Pessoa (“O menino de sua mãe”, “Gladio”, “Gomes Leal” e “Canção”), António Ferro (“Rua do Oiro”), António de Navarro (“Aroma”, “Methempsicose”, “Canção da amargura” e “O automóvel azul”), António Pedro (“Quarta Feira de Cinzas”, “Canção”, “Canção quebrada a certa luz violenta” e “Diário 8º”), Augusto Ferreira Gomes (“Extrangeiro”), Augusto de Santa-Rita (“O Preto-Papusse-Papão” e “Pápim ao estudo”), Branquinho da Fonseca (“Poema duma epígrafe”), Carlos Queirós (“Barcarola”, “Intermezzo”, “Canção” e “Soneto”), Cortes Rodrigues (“Outro” e “S Ó”), Edmundo de Bettencourt (“Cómico” e “Nebulosa”), Fernanda de Castro (“Sol de Paris” e “Comunhão”), Gil Vaz (“Ophélia”, “Adeus”, “Romance” e “Azul”), Almada Negreiros (“Rondel do Alemtejo”), José Régio (“Espírito”, “O jongleur de estrelas e o seu destino” e “Frente a frente”), Luís de Montalvor (“Antiquário” e “Canção”), Mário Saa (“Xácara das mulheres amadas” e “Xácara do infinito”) e Violante de Cysneiros (“Poema”). Como se vê, a presença participa neste Cancioneiro de corpo e alma, sugerindo a obra, no plano estrutural, o critério que Casais Monteiro veio a adoptar cerca de três décadas depois.
[10] Cf. Cancioneiro, I Salão dos Independentes, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1930, pp. 4-5..
[11] Vide o nº 28 da revista presença.
[12] No nº 31-32 da presença, estampa-se, entre as páginas 11 e 13, um artigo de António de Navarro cujo título é “estudo para um ensaio – Ângelo de Lima”.
[13] Loc. cit. Eis o teor integral da peça jornalística, que, pelo manifesto interesse, transcrevo, com correcção e actualização textuais:
“António de Navarro pode considerar-se dos líricos mais belos da nova geração.
Não faz poesia pela rima, nem procura a dor como uma fácil profissão da sua arte. Vai mais longe, mais alto, descobrindo com louca ansiedade as pontes eternas da emoção, sem nunca se dessedentar, promessas de beleza divina, cantos ignorados de mistério, e cenas misteriosas de vida espiritual. Nestes rápidos dez minutos marca, impressionante, a sua personalidade.
Ides ver como:
- Como escreve?
- Resposta bem simples e bem complicada como tudo afinal aonde procuramos encontrar-nos inteiramente. Que eu responda pelo mais simples, primeiro: em aventura, isto é, sintetizando num momento, que pode surgir em qualquer parte, inesperadamente, uma longa série de transes que podem ir do físico ao espiritual. Foi a Vida que entrou em mim sem eu dar por isso e que um dia veio a revelar-se, consubstanciando-se em palavras. Essas palavras, que se organizam segundo um ritmo que a emoção criou – são a obra. Mas, se eu analisasse com mais minúcia, veria em certos momentos a minha alma fora de mim, tacteando o visível ou mesmo o invisível e senti-la-ia no regresso como a ave que precisa de libertar-se, e, novamente, tocar os centros intelectivos onde as emoções se iluminam duma nova luz.
O artista escreve, pois, sobretudo, com a alma, mas grava com a cabeça. A pena é um simples objecto acidental e de préstimo limitado; as penas, sim, essas ainda valem – levam-nas, ao menos, ao voo dramático que todo o artista precisa de sentir. Há, de facto, escritores que precisam de um ambiente. O meu são os meus sentidos que nunca dormem, e é para eles que eu escrevo, e para me libertar dum grande peso. É, afinal, e só isso – uma forma de alívio. Mas, escrevendo para mim, tudo o que eu faço é para aquele mendigo, é para aquele que olha uma rosa e não vê o mundo, e não vê mesmo no mendigo a mais formidável doutrina social. Escrevo, em última análise, e talvez subconscientemente, para ensinar, mas sem fé nenhuma, num apostolado admirável porque vai contra mim próprio, obrigando-me a acreditar, pelo menos, no mais inverosímil, para ensinar, dizia, o homem a ser bom. Isto é: a ser sensível, a ter a heroicidade de procurar na beleza, que tantos desprezam, porque a não vejam talvez, as armas duma guerra santa da perfeição e da harmonia.
- Por que não publicou ainda nenhum livro?
- Não sei bem – talvez pense demasiadamente na perfeição… e na imperfeição dos homens. E depois ainda – contos largos… Basta dizer-lhe que em Portugal só pode haver poetas ricos. Os outros, embora com valor, e não me refiro a mim, precisam de ter muita força de vontade. A Presença, por obra e graça dos meus amigos, está cheia de versos meus, versos que só me orgulham muito porque são estruturalmente meus. Sim, tenho alguns livros escritos, mas inéditos.
- O que pensa da poesia portuguesa?
- A poesia portuguesa, falo, claro, da poesia contemporânea que muito deve à Presença, e os próprios que a combateram e combatem estão hoje insensivelmente a ser influenciados pelo seu movimento renovador – é das formas literárias de que podemos sentir-nos vaidosos. É rica, variada, profunda. E todos os poetas, os que o são, procuraram em si próprios o alicerce anímico do seu edifício e, por isso, bem pouco devemos aos poetas nossos camaradas doutras literaturas. Hoje, como quase sempre. E as próprias influências individualizaram-se, criando assim uma forma inteiramente nova e distinta. Quer dizer: a força do nosso temperamento traiu aquilo mesmo que buscou. Assim com Junqueiro, com Eugénio de Castro, e por aí fora…Eu já disse quase tudo sobre os nossos poetas – pois se eles são a poesia!... Que são verdadeiramente poetas, aqueles que o são… E, coitados, são duma teimosia admirável, apesar de presos, aqui, entre a Espanha e o Oceano, não há maneira de se resignarem, e lá vão impondo como podem a sua libertação, e, naturalmente, a desta ponta a SW.
Quero, todavia, sem esquecer nenhum, lembrar o nome de Fernando Pessoa, que Portugal e o mundo hão-de descobrir um dia. E sentir-se-ão ainda os portugueses terrivelmente descobridores ao encontrarem Alguém que a vida apagou, porque lhe não sentiu aquela série de qualidades, ou de defeitos, que tornam o homem inferior para si próprio, mas superior, aparente e transitoriamente, para os outros, perante as realidades. E querem uma revelação que será enfim o mais tragicamente interessante destas dúzias de frases, pelo que tem de revelador?... esse admirável espírito ganhou toda a sua vida 300$00 mensais, e sentir-se-ia muito feliz – confessava a um amigo – se pudesse vir a ganhar seiscentos, num lugarzinho modesto em que pensou mas que lhe não facultaram. Era assim este poeta português; dos outros saber-se-á quando morreram. Há ainda um outro, felizmente vivo, que a asa daquele anjo negro da desgraça tocou mais de perto, e, por isso, e porque o esquecimento da vida tem tentado apagá-lo, eu quero deixar aqui o seu nome: é Raul Leal. É um Poeta, uma Vida, e um Carácter.
[14] Também no Diário Económico, de 18 de Outubro de 1995.
[15] Este poema “Bordel” saiu na presença nº 20, integrando mais tarde, em conjunto com “Bacanal”, “Charleston”, “Glauca”, “Os medronheiros”, “Acrobatas”, “Poemas das Aves”, “Incêndio”, “Epitáfio (Para o túmulo do poeta)” e outras duas composições sob a designação “Poema”, a antologia presencista de Adolfo Casais Monteiro, A poesia da “presença”. Estudo e Antologia, que conheceu uma primeira edição em 1959 (Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, “Letras e Artes”-7), uma segunda em 1972 (Lisboa, Moraes Editores, “Círculo de Poesia”) e a recente terceira edição (Lisboa, Cotovia, 2003), com prefácio de Osvaldo Silvestre.
[16] Jorge de Sena (Sena, 1988: 79) refere que António de Navarro era uma continuação do futurismo de Orpheu e que a sua “fascinação do vocabulário tecnicista” foi sendo superada “por uma metaforização de acumulação progressiva”.
[17] De facto, na sua Poesia portuguesa: do “Orpheu” ao Neo-Realismo, Eugénio Lisboa dedica três páginas a Navarro, consignando um menor espaço a outros poetas presencistas, o que parece indiciar alguma bondade para com o poeta, aliás, visível na entrada para Biblos (Lisboa, 1999: 1068-1069), onde a perspectiva um tanto negativa aparece matizada.
[18] João Gaspar Simões, op. cit., p. 308.
[19] Eugénio Lisboa (coordenação), Dicionário cronológico de autores portugueses, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, p. 336.
[20] Osvaldo Manuel Silvestre (Silvestre, 2000: 573) recorda, sintomaticamente a propósito de António de Navarro, que essa debilidade é muitas vezes defendida, nos textos de vanguarda, «como respuesta coherente al caos interior del hombre moderno.»
[21] David Mourão-Ferreira (Ferreira, 1989: 226) defende que António de Navarro “é talvez o que mais directamente prolonga, através do pendor para a visão alucinatória, alguma herança «órfica» do Orpheu”.
[22] Adolfo Casais Monteiro, loc. cit. , p. 31.
[23] Natália Correia, em O Surrealismo na poesia portuguesa (Mira-Sintra, Publicações Europa-América, 1973), inclui António de Navarro e assinala-lhe, com base no poema “Bacanal”, uma linha surrealista de desregramento raciocinado, subsumível na designação de “interpretações delirantes”.
[24] António de Navarro é, indubitavelmente, mais um caso de desatenção literária. Não existe atinência entre o labor do Poeta e a memória reflectida. Para tal, muitas razões terão contribuído, até o malfadado malabarismo poético que lhe é atribuído. Escassamente antologiado, talvez porque actos de desleitura à sua imagem se colaram, seguem-se alguns contributos, em colectâneas fora do estrito domínio da presença, no sentido da atribuição de um lugar de reconhecimento a António de Navarro: Enzio Vólture e Gino Saviotti, Poeti Moderni Portoghesi, “Collana di Studi dell’ Istituto di Cultura Italiana in Portogallo”, Lisbona, Edizioni di “Estudos Italianos em Portugal”, 1942, pp. 82-83 (“África”); Cabral do Nascimento (sel. e notas), As mais belas líricas portuguesas, Lisboa, Portugália Editora, 1945; José Régio e Alberto de Serpa (sel. e pref.), Poesia de Amor. Antologia Portuguesa., Porto, Livraria Tavares Martins, 1945, pp. 292-293 (“Canção”); José Régio e Alberto de Serpa (org.), Alma minha gentil. Antologia da Poesia de Amor Português, Lisboa, Portugália Editora, 1957, pp. 313-314 (“Canção”); Natália Correia, O Surrealismo na poesia portuguesa, Mira-Sintra, Publicações Europa-América, 1973, pp. 299-300 (“Bacanal”); Rodrigo Emílio (sel. e pref.), Vestiram-se os Poetas de Soldados. Canto da Pátria em Guerra. Lisboa, Cidadela, 1973 (“Fito na noite a nossa estrela”); Vasco Oliveira e Cunha et alii (org.), “O Regresso à Condição” Viseu, ut pictura poesis, Viseu, ISPV, 2001 (“Onde a vida foi, fugitiva”). Há, no entanto, uma conclusão óbvia: a de que o Poeta perdeu visibilidade nas últimas décadas. Por exemplo, Reis Brasil, no capítulo XI “Modernismo e Tradição” da sua História da Literatura Portuguesa, depois de destacar os nomes de José Régio e Miguel Torga, abre um lugar para “Outros Poetas”, aí inserindo Adolfo Casais Monteiro e António de Navarro, com notícia circunstanciada. Em final de capítulo, diz-se: “Para findar este capítulo queremos ainda registar os nomes de Saul Dias, Irene Lisboa, Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt, António de Sousa, Alberto de Serpa, Carlos Queirós, Francisco Bugalho e Pedro Homem de Mello.” (Brasil, 1971: 434). Este facto literário é importante e revelador.
[25] Jorge de Sena (1946: 6) integra Navarro nos antologiados que se salvam. Na página seguinte do Mundo Literário, plasma-se um anúncio às Líricas Portuguesas de Cabral do Nascimento, dizendo-se que lá se inserem “308 poesias dos 50 poetas mais representativos dos últimos 50 anos, de António Feijó aos modernos: José Régio, Vitorino Nemésio, António Botto, António de Navarro, Armindo Rodrigues, Alberto de Serpa, Miguel Torga, Branquinho da Fonseca, Casais Monteiro, etc.”. A exemplificação editorial não omitiu o caso de Navarro, o que pode indiciar a aura de prestígio que o nome do poeta concitava.
[26] As palavras são estas: “De facto, António de Navarro é poeta integral, um tão completo e puro poeta que se torna quase impossível distinguir nele o que é humano do que é poético.” (Simões, 1964: 340). Na página seguinte, João Gaspar Simões refere ser Navarro “um continuador de Ângelo de Lima ou um discípulo dos poetas gongóricos”.
[27] Fernando Cabral Martins (1994: 28) vinca esta influência e refere-se mesmo a uma citação que Navarro fez de Mário de Sá-Carneiro. Mais à frente, o mesmo académico diz que Navarro imitará os modernistas (1994: 61).
[28] Cabral Martins (1994: 128) exalça a singularidade do “Estudo para um Ensaio. Ângelo de Lima” que António de Navarro publicou no nº 31-32 da presença, salientando que a justaposição do ensaio e do poema é algo que “rompe com todos os hábitos.”

Este ensaio, resultante do colóquio celebrativo do "Centenário de Branquinho da Fonseca" ocorrido na Universidade de Aveiro e organizado por António Manuel Ferreira, em 2005, foi posteriormente publicado no corpo das actas, em separata e neste mesmo sítio há meses atrás. Libertado aqui de anexos e outras referências, serve aqui de homenagem à Voz Portalegrense e ao Sexo dos Anjos, que simpaticamente a nós se referiram, citando assertos críticos sobre António de Navarro ou assinalando homenagens a Fernanda de Castro e Judith Teixeira. Obrigado, também porque os sentidos possíveis estão em nós.

2006-09-20

na avenida alberto sampaio


na avenida alberto Sampaio
quando me sento no café habitual
espremo os olhos no macadame
à escuta do caminho de outrora
nem caroço nem árvores
nem conversa do vento
só um sopro breve e ácido
e uma estranha diferença
que se repete ao ritmo rápido
dos carros que passam e investem
contra o meu corpo e pensamento
assim gastos e passantes.

Giovanna Franchi e Francisco Marques Leal

Mr. Groove & Vergas

2006-09-19

o 1º modernismo e Judith Teixeira




"Somos o assunto do dia em Lisboa."
(Fernando Pessoa a Cortes-Rodrigues)

A natureza humana mudou. O assunto do dia em Lisboa era reconhecer, de algum modo, que a natureza humana mudara e se desadaptara. Uma Virgínia Woolf, em frases que devieram célebres, sintetizou a emergência do Modernismo do seguinte modo: "On or about December 1910 human nature changed... All human retlations shifted - those between masters and servants, husbands and wives, parents and children. And when human relations change there is at the same time a change in religion, conduct, plotics, and literature."[1] Tal premência do lado de dentro do homem, que tem que ver com agitação, trabalho e visibilidade, e até por aí os lugares modernistas se intersectam com os modos decadentistas, no sentido até da tal sutura sem rompimento, explica-a exemplarmente um Fernando Pessoa, quando diagnosticou, num dos seus textos íntimos, existir em cada homem moderno um neuratésnico que tem de trabalhar. O asserto pessoano em epígrafe é corroborado, nas suas implicações, por um Américo António Lindeza Diogo, por exemplo, que, acentuando o cosmopolitismo do Modernismo, diz que ele é, antes de tudo, "um movimento artístico e literário cosmopolita, com a sua série literária de grandes e pequenas capitais: Paris, Berlim, Viena, Praga, Londres, Dublin, Lisboa."[2] E assim a cidade ganha óbvio interesse, porque, afinal, ela é cultura e o Modernismo que por todo o lado vinga é uma arte tendencialmente urbana, próxima de uma sociedade tecnológica e desenvolvida.[3]
Estranheza, alienação e crise de valores são classificações que facilmente colam aos nossos modernistas, que viviam a poesia como um mito real. Deste modo, o Modernismo é "uma arte da crise", que, como o defende Osvaldo Silvestre, responde, no plano psicossocial, "ao imaginário tecno-científico e urbano da modernidade com uma mimese críptica, ou hipocrática, praticando para tal uma ruína da forma e consequente celebração do valor epifânico do fragmento"[4], não sendo alheios a esta panorâmica agónica traços como o esboroar do campo teológico, com o conexo engurgitamento das esferas racionais, a derrota do sujeito transcendental face à dominação nietzschiana, freudiana e darwiniana, a desolação bélica provocada pela Grande Guerra, ou o primado do cosmopolitismo sobre o tradicionalismo, vividos em conjunto ou em parte, por um sujeito que é peça funcional de um mundo frio ou, ao contrário, por um ser multifronte, estrangeiro dentro de si, olhando-se descentrado e ironicamente plural.
De acordo com o código técnico-compositivo de predominância modernista, a colagem será um estratagema funcional, moderada, na abertura e vertente difusa, pelas repetições e pela disseminação de narrativas mítico-simbólicas de encaixe tectónico, a que um Eliot chamava "método mítico", gerando-se assim, num misto de ironia e de racionalidade, uma corrente de sentido.
O modernismo português é animado pelo inconformismo assinalado, sendo uma "tomada de consciência cultural de uma geração desejosa de renovar a literatura e as artes portuguesas, tomando como modelo o grande movimento do vanguardismo europeu iniciado com o Manifesto futurista de Marinetti, de 1909."[5] Abraçando a modernidade activa, e um excelente exemplo dessa agilidade é o polimorfo Almada Negreiros, o Modernismo português acentua o abandono dos artefactos do passado em detrimento do novismo que o movimento artístico dialecticamente sulcava na ágora lisboeta.
E foi em Lisboa, a partir de 1913, mas também em Goa, nesse mesmo ano, que se veio a formar este movimento, não sendo despiciendo, neste particular, relembrar as informações inovadoras que a lusitanista ítalo-brasileira Sandra Bagno fornece ao defender, com provas irrefutáveis, que o terminus a quo das relações da modernidade literária portuguesa com o futurismo de Marinetti deve ser reposicionado em Julho de 1913[6], por via da publicação, nessa data, da Revista da Índia , que continha, no editorial programático de Paulino Dias[7], uma nítida pregnância de influência marinettiana com o fito expresso da deflagração do renascimento cultural indiano. Sem grande discussão, é certo que, sendo ao tempo a Índia uma possessão portuguesa, a precedência goesa é um facto. No entanto, o movimento modernista lisboeta - que se começa a esboçar no mesmo ano de 1913 e adquire visibilidade em finais de Março ou em Abril de 1915, com a publicação da Orpheu , - parecia ter uma outra consistência grupal, como muito bem o faz notar Luís de Montalvor nesse número nascente: "ORPHEU, necessita de vida e palpitação, e não é justo que se esterilise individual e isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes der orgulho, temperamento e esplendor - mas pelo contrario se unam em selecção e a dêem aos outros que, da mesma especie, como raros e inferiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes falta, - do que resulta um procura esthética de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos..."[8].
O Modernismo português vivia nessa e dessa inquietação, sedento de novidade e de actualização, de demolição e de reconstrução, de inovação técnica versilibrista e de diferença ideológica, apurando-se nas liberdades vocabulares e na tergiversação sintáctica, assumindo desde logo uma estratégia de choque e provocação. "Orpheu abandonou decisivamente o idioma dos avós e inventou, para nós, a poesia moderna que ainda hoje somos"[9], diz um Eugénio Lisboa. Judith Teixeira andou por lá, mulher consoladora em território de homens feridos pelo mal orfeico da dor da perda e pela pose da arrogância e da superioridade. Sem consciência disso, no vezo oxigenante da despertação das almas adormecidas, quase ninguém viu aquela mulher fulgurante de genialidade assertiva, que partilhou conversas e gostos e amigos e escândalos e dirigiu a cosmopolita revista Europa de eco orfaico. Mas tudo isso é perfeitamente normal: também poucos se aperceberam das consequências e do valor do alarme de Orpheu. Estranho, muito estranho, é o silêncio dela, Judith, e dos profissionais da literatura, que lhe foram perdendo o rasto e cavando o por-dizer.
Pessoa chegou ao público, em 1927, por obra da revista Presença. Almada, nesse mesmo ano, sai para Espanha, afirmando emblematicamente que exilada estivera uma geração dentro da própria cultura. Também Judith Teixeira se ausentou do país, em 1927, tudo indica que para Espanha, assim inscrevendo, no sopro da errância, um fim que estava perto no destino da memória próxima e uma ligação clara ao movimento modernista.
Quis o destino que o tempo, "esse grande escultor", viesse alterando, laboriosamente, o injusto esquecimento. Este é mais um passo.


[1] Virginia Woolf, "Mr Bennet and Mrs Brown", in Collected Essays , vol. I, London, Chatto & Windus, p. 320.
[2] Américo António Lindeza Diogo, Modernismo, readymade. Notícias das trincheiras, Braga, Cadernos do Povo, 1997, p. 43.
[3] Cf. Malcolm Bradbury e Janes McFarlane, Modernism. A Guide to European Literature (1890-1930), London, Penguin Books, 1991, nomeadamente o capítulo "The cities of Modernism" (pp. 96-104), assinado por Bradbury.
[4] Osvaldo Silvestre, "Modernismo em Portugal", in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Verbo, col. 842.
[5] Sílvio Castro (dir.), História da Literatura Brasileira, vol. 3, Lisboa, Alfa, 2000, pp. 84-85 (Cap. 41, "Modernismo brasileiro e Modernismo português", do mesmo Sílvio Castro).
[6] Cf. Sandra Bagno, "Il futurismo a Goa e la 'Revista da Índia' ", in Rosa dos Ventos - Atti del convegno 'Trenta anni di culture di lingua portoghese a Padova e a Venezia' , Pádua, Univ. di Padova, 1994, pp. 89-102; id., "O futurismo libertário na Índia Portuguesa", in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias , Lisboa, 26 de Abril de 1995, pp. 28-29; Sílvio Castro, op. cit., pp. 86-87.
[7] Sobre Paulino Dias, veja-se a informação contida em Eugénio Lisboa (coord.), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, pp. 149-150:
" DIAS, Paulino (N. Santa Cruz, Goa, 1874 - m. Nova Goa, 1919). Poeta iconoclasta, pintor, músico e cientista, foi professor no Liceu Central de Nova Goa. Diplomado em Medicina, dedicou-se sobretudo à aplicação industrial das ciências. Usou o pseudónimo hindu de Pitri Das (Escravo do Amor).
De origem indiana, este autor considerava-se como um dos descendentes dos Drávidas, o que muito contribuiu para a sua ligação com a cultura indiana e para o profundo conhecimento que possuía da sua literatura. São exemplos disso o poema Indra, o poema dramatizado Nirvana e a peça Os Párias. Mas não descurou, na sua curta vida, a literatura europeia, que muito o influenciou, sobretudo os movimentos fin-de-siècle, decadentismo e realismo. O seu livro A Lira da Ciência, 1896, é aquela em que mais se reflecte a influência de autores portugueses, especialmente de Herculano e Junqueiro. A sua obra carece de unidade artística e filosófica, pois que se encontra dispersa numa estética científica aliada a um idealismo regenerador e reformista, contra a injustiça do sistema das castas. Deixou volumes inéditos em francês, inglês e português. Entre 1909 e 1910 dirigiu o mensário ilustrado Revista Moderna. Pertenceu ao grande movimento indianista que, após a proclamação da República, viria a conquistar um lugar ao sol na burocracia e nas profissões intelectuais. Colaborou na Revista da Índia e em A Luz do Oriente.
Obras principais: Vasco da Gama, poemeto, 1898; Visnhulal, 1919; No País de Súria, 1935 (edição póstuma); A Deusa do Bronze ." O carácter polimórfico desta figura cultural está ligada, por certo, ao espírito moderno, quanto mais não fosse por esse desdobramento funcional e por esse modo marinettiano de afirmação em 1913, que demonstrava, entre outras coisas, ser Paulino Dias um homem atento às vanguardas literárias.
[8] Luís de Montalvor, "Introducção", in Orpheu. Revista Trimestral de Literatura., Ano I, nº 1 (Janeiro-Fevereiro-Março), Lisboa, 1915, pp. 5-6. Citado a partir da edição facsimilada da lisboeta Contexto, 2ª edição, 1994.
[9] Eugénio Lisboa, Poesia Portuguesa: do 'Orpheu' ao Neo-Realismo, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa-Ministério da Educação e Ciência, 1980, p. 14.