2014-12-31

Carta ainda de 2014

Carta ainda de 2014

Não lembres o inútil torna-o até inexistente
que o que é isso é vulgar sombra do nada
vulto vazio volitando como ácaro de sono
e chupista maduro procurando fazer figura.

Esquece o efémero e o cultor de efemérides
de dias de gente grada para o nada se mostrar
que quem vale o que diz ser há muito o provou
e não gruda em branca cola que logo estala.

Faz de ti os dias limpos de al berto o sopro de mar
o sonho da noite desigual de kim a rosa do povo
florindo nas estradas de pó dos poemas lavrantes
faz de ti isso contra os tempos caídos os fungos.

No sorriso aberto incalculado no fanal dos dentes
todas as águas vêm do sangue são noites encantadas
que correm dos poemas do Cinatti para dentro do ano
que fulgurante te vem aos dedos te queima a pele.

cósmico e fulgurante vem um momento – enche-o e sê.

Natal com António Gedeão


«Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.»

[António Gedeão, excerto de «Dia de Natal».]

2014-12-30

Natal com Fausto José


«São estes os meninos
Que Jesus mais ama,
Vem sentar-te à noite
Junto à sua cama.

Que Jesus, como eles,
Rei da terra e céu,
Entre palhas, pobre,
Em Belém nasceu.»

[Fausto José, excerto de «Canção».]

2014-12-29

Natal com Vitorino Nemésio


«Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.»

[Vitorino Nemésio, excerto de «Natal chique».]

2014-12-28

Natal com José Régio


«A noite fora longa, escura e fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?»

[José Régio, excerto de «Litania do Natal».]

2014-12-27

Natal com Fernando Pessoa


«Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.»

[Fernando Pessoa, excerto de [«Natal... Na província neva.»].

2014-12-26

Natal com Teixeira de Pascoaes


«A primavera, errante no Marão,
Veio cobrir de lírios e de rosas
O berço do Menino. E veio o outono,
E vieram as ermas sombras dolorosas.»

[Teixeira de Pascoaes, excerto de «O Nascimento»]

2014-12-25

Natal com Alberto Osório de Castro


«Khaki girls, tão branquinhas como a neve,
Olhos de mar, do céu de neve leve...

Khaki girls, cai neve em malmequeres...
Talvez Santa Claus vos faz pé-de-alferes...»

[Alberto Osório de Castro, excerto de «Christmas Song»]

2014-12-24

Natal com Camilo Pessanha


«Sorrindo-vos amigas,
Nos ásperos caminhos,
Aos olhos dos velhinhos,
Às almas das mendigas!

Desse Natal de inválidos
Transmito-vos a bênção,
Com que vos recompensam
Os seus sorrisos pálidos.»

[Camilo Pessanha, excerto de «Rosas de inverno»]

2014-12-23

Natal com Guerra Junqueiro


«E a banhada em pranto
Mãe se transfigura,
Por divino encanto,
Numa Virgem pura.»

[Guerra Junqueiro, estrofe final do poema «Natal»]

2014-12-22

Natal com António Nobre

 
[António Nobre, 1889]

«A noite de Natal. Em meu país, agora,
O que não vai até romper o dia, a aurora!
As mesas de jantar na cidade e na aldeia, 
À luz das velas, ou à luz duma candeia,
Entre risadas de crianças e cristais...»

[António Nobre, excerto de «O meu Natal»]

2014-12-21

Natal com Ângelo de Lima


MESSIAS

Viventes! - a Verdade me inspirou!
- Sou Este Vulto que Comove Deus!
- Amai a Causa que Voz Fez...
                                                - se amou.

- Vivei! - Crescei!...
                              e Dominai na Vida!
- Sobre Estai à Fortuna Apetecida...
- E Esperai...
                    - no Destino...
                                        - e amai...
                                                      - os Céus!

[Ângelo de Lima]

2014-12-20

Natal com Afonso Duarte

«E junto às brasas, os meus olhos postos
Nesta evangélica expressão de rostos,
Ergo em graças a Deus as minhas mãos.»

[Afonso Duarte, excerto do poema «Natal»].

2014-12-19

Natal com Tomaz de Figueiredo


«Pelo Natal é o jogo dos pinhões.
A resinosa pinha, na lareira,
abre, suando, e a pineno cheira.»

[Tomaz de Figueiredo, excerto.]

2014-12-18

Natal com Domingos Monteiro


«Soneto do Natal, e eu sonho vê-lo
Na alma pureza virginal da neve,
E avozinha também no teu cabelo,
Na tua voz de além, mansinha e leve.»

[Domingos Monteiro, excerto de «Soneto do Natal».]

2014-12-17

Natal com Pedro Homem de Mello


«Como esse mar onde mal chega o rio,
Como esse poço onde mal sopra o vento,
Aqui me tens, negando o lume e o frio,
E cego e surdo ao próprio pensamento.»

[Pedro Homem de Mello, excerto de «Noite de Natal».]

2014-12-11

Palestra «Mestre Aquilino, a caça e uma gaita que assobia» por Manuel de Lima Bastos

Não traz a bonomia consigo, como o diz Aquilino, «uma sorte de eternidade, seja qual for credo»? Estão todos convidados...

2014-12-10

[casa do tempo]

[casa do tempo]

fundos como abismos eram os dias
quando paradas aí as águas vinham
iluminar os rostos jovens do sonho.

náufragos já ríamos desde os ossos
e pela noite todos os archotes eram
os perfis incertos que agora somos.

na mesa que fito na mão tomo o rito
os rios de sangue como mares bravios
o êxtase da pele ardendo nos dentes.

contra o tempo um muro esta casa minha.

2014-12-01

[LIMIAR]

[LIMIAR]

é dum terraço velho este céu verde
que cobre o tempo e diz um lugar
caído há muito nas portas da cidade.

e como as nuvens todas as cortinas
se afundam como facas nesta pele
onde os fungos são heras e muros.

as pálpebras aos pés o ventre aí.

2014-11-18

[ao contrário de narciso]

[ao contrário de narciso]

nus habitamos o mundo
nele sejamos muro de cal
verdadeiro lugar sem estéril
espelho que diz o que não somos. 

2014-11-10

«Aquilino – a escrita vital» de José Carlos Seabra Pereira


Aquilino – a escrita vital de José Carlos Seabra Pereira

Propondo-se fixar os meandros do vitalismo aquiliniano, José Carlos Seabra Pereira, um dos mais estruturados conhecedores da literatura portuguesa, empreende, em mais de duzentas páginas, a mais importante laceração perspetivística no universo de Aquilino Ribeiro.
Citando e desautorizando chavões, o presente estudo, editado outubro último sob chancela da Verbo, procura ir ao encontro do crítico que Aquilino idealizava e formulou em conhecido prefácio: «antes de mais nada, entrever o escritor na estrutura própria». E assim acontecendo, o excelente estudo do ilustre professor coimbrão, em passagem pelo Instituto Politécnico de Macau (na rota de Camilo Pessanha, de quem também é exímio especialista?), só pode vir a produzir novas e importantes leituras.
Exemplo de rigor e renovada tecelagem, com fios de urdidura originais ou pouco vincados, o livro em apreço convoca intocados vetores de modernidade afinal presentes na obra de Aquilino e estranhamente obnubilados até aos nossos dias. Rescendentes, os caminhos ficam abertos. Assim o parece dizer, por exemplo, a rasa bibliografia que é inferência. Ao jeito de Benjamin, dir-se-ia que quando lido este fundamental ensaio de Seabra Pereira, logo no nosso sangue palpitará um pouco da vida e da arte do criador da crónica romanceada A Casa Grande de Romarigães. E esse pouco só pode ser muito, que tal força tem a escrita vital de Aquilino Ribeiro!  

Viseu, 18 de novembro de 2014
Martim de Gouveia e Sousa

2014-10-21

LUGAR MAIOR: O «JOGO DA CABRA CEGA», DE JOSÉ RÉGIO


LUGAR MAIOR: O JOGO DA CABRA CEGA, DE JOSÉ RÉGIO

O Jogo da cabra cega (1934) de José Régio é um dos maiores romances de sempre e não restrinjo este ato valorativo à literatura portuguesa. Aliás, acho infecundo tratar de literatura como quem trata de pequenos quintais, onde tudo pudesse ser diminuto e incomparável. As obras literárias, as melhores delas, crescem em rizoma e inscrevem-se na pele canónica como marca incindível.
Relembro mesmo a virtuosa admiração que o melhor escoliasta de Régio lhe dedica, e falo de Eugénio Lisboa, dizendo-o em tudo um grande escritor (1993). Não poderia ficar de fora dessa grandiosidade este romance sério e irónico. Mergulhando na atmosfera coimbrã, a intensidade ficcional da obra é tal que chega a ser espantoso que tal criação sobre a interioridade humana e os abismos da escavação interior não conheça mais leitores e mais conversas. Com uma frescura quase única na nossa literatura e em toda ela muito bem posicionado, fruto ainda da mocidade do fabuloso autor da Confissão dum homem religioso e já tão definitivo, este Jogo, não obstante o estreme psicologismo e tom abdicativo, era desde cedo uma das mais estimulantes viagens ficcionais pelas veredas de Deus e do Diabo.
Mário Sacramento diz que o romance regiano é um «dos maiores romances portugueses de todos os tempos» (1966)  e o grande Jorge de Sena di-lo, em 1970, «um dos grandes romances portugueses deste século», e referia-se ao século XX. Muito bem anda Álvaro Salema quando defende que quaisquer parentescos com outros convocam Dostoievski, Proust ou Wilde (1977).
Desde aquele belíssimo incipit «O gosto de vaguear de noite, a horas mortas, era agora o mais querido dos meus prazeres melancólicos» até ao fabuloso e emocionante explicit «A chávena escacou-se no chão de mosaico» estende-se uma urdidura ficcional, de constrito espaço coimbrão, que desvela inenarráveis momentos e uma trágica ironia. E há uma beleza nisso e toda uma diferença que não pode ser esquecida. Jaime Franco e Pedro Serra encravam-se-nos no sangue e abraçam-nos perenemente na ilusão e em metafísicos entreatos arrebatadores. Haverá melhores mundos para além destes?

Viseu, 21 de outubro de 2014

© Martim de Gouveia e Sousa

2014-10-13

[arte do desenho]

[arte do desenho]

é deste ponto que parto
insisto nele com os dentes
porque sei que em breve
como em nietzsche sangue
será e não pedra longe.

devoro o ponto o espaço
sou um círculo de palavras.

como arma desenho-me.

2014-10-12

[farpinhas - dezanove]

[farpinhas - dezanove]


Eu ainda sou do tempo em que os vergilianos não conheciam Vergílio Ferreira, os judithianos nada sabiam de Judith Teixeira, os aquilinianos não possuíam sequer uma obra do autor, os presencistas desconheciam António de Navarro e tudo era assim uma marcha de desconhecimento. Pouco tempo passado, todos são ianos, istas, anos e tudo, sem que o respeito pelo autor seja maior. Não passou muito tempo e tudo parece já poalha da história. Temer o homem de um livro só, como dizia um escritor clássico, é preciso, porque tal gente, verdadeiramente, sabe tudo. E infiltra-se…

2014-10-09

Antitediário nacional com Murilo Mendes: felizmente, respira-se

Murilo Mendes, por Guignard

Antitediário nacional com Murilo Mendes: felizmente, respira-se

A Aquilino Ribeiro e João de Araújo Correia

Quando Murilo Mendes escreve as suas Janelas verdes expende, em simultâneo, no aparato textual e nas múltiplas alusões, um conjunto de afinidades eletivas literárias portuguesas que importa conservar e apreciar. É funda a apreciação de Luciana Stegagno Picchio. Defende a distinta lusófila que «Murilo Mendes sabia Portugal como poucos portugueses o conhecem: sabia-o com o hipocorrectismo do converso, do regressado»[1], acrescentando ainda, entre outras considerações, que a língua portuguesa que tinha recebido do Brasil, «língua fluente de Camões e de Vieira, de Gregório de Matos e de Machado de Assis, mantinha contudo o cheiro de manga do quintal de seus avós brasileiros»[2]. E isso, segundo penso, só pode ser positivo – deixemos, pois, que o cheiro da manga nos invada.
Os líquidos ressonantes de Murilo Mendes são vagas insurgentes, avessas a fórmulas e preconceitos. O texto sobre Guimarães, dedicado ao enormíssimo Vergílio Ferreira – e o paratexto assinala bem a enciclopédia de afetos do escritor de Minas Gerais! -, é um fabuloso caso de completude cultural e de desvelamento de profundos conhecimentos. Vê-se também isso no complexo das janelas que Murilo tão abundantemente entrevê pela cidade e nos cede em situação comunicativa. Não espantam, certamente, os nomes de Gil Vicente, Soror Mariana Alcoforado ou de Almeida Garrett – este, outro viciado do desvelamento -, o mesmo não se podendo dizer da presença de João de Araújo Correia, de incontestável valia e mais modesta fama, que aparece no excurso muriliano como amador de boa facas: « “(como faca de cozinha, não quero haja igual nem mesmo em Guimarães”, assim escreve João de Araújo Correia)»[3].
No capítulo sobre o Porto, dedicado a Óscar Lopes, convoca Murilo Mendes o dito do fortíssimo Teixeira Gomes que vê na Invicta «a cidade mais pitoresca do mundo». Vários nomes literários afluem: Cesário, Silva Pinto, Jaime Cortesão e António Nobre, a «nossa maior poetisa», apodo que o autor brasileiro repisa, para logo dizer: «Nem sempre»[4].
Dedicando capítulos e locais a autores fortes (Alberto de Serpa, Ruben A., Adolfo Casais Monteiro, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, António Gedeão e Natália Nunes, Pedro Tamen, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Orlando Costa, Luiza Neto Jorge, Salette Tavares, Ruy Cinatti, Carlos de Oliveira, António Ramos Rosa, Alberta de Lacerda, José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, Alexandre O’Neill, Herberto Helder, Isabel da Nóbrega e mais uns tantos, Murilo Mendes, de A a D do setor 1, desenrola toda uma literatura e desenha uma sugestiva linha canónica do século XX português. E no miolo há os Pessoas, os Anteros, os Eças, os Pascoaes, os Almadas, os Torgas, os Régios, os Junqueiros, as Florbelas, os Teixeira-Gomes, os Bocages e tantos outros bailando gostosamente sobre pormenores belíssimos noiváveis apenas com um amplo saber que só assiste aos devotados.
Namorantes, os capítulos do setor 2, de A a C, integram, por exemplo, Gil Vicente, Padre António Vieira, Mariana Alcoforado, Bocage, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, Antero de Quental, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Afonso Duarte e Fernando Pessoa, cabendo as dedicatórias aos próprios ou a personalidades de incontestável condição – e lembro José Augusto-França, Ruy Belo, Natália Correia, Bernardo Santareno, José Terra, Mário Cesariny de Vasconcelos…
Por estas janelas murilianas, vejo, claramente, toda uma literatura. «A casa está nele»[5], como diz Eucanaã Ferraz. Estará a literatura em nós?

Viseu, 9 de outubro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa



[1] Luciana Stegagno Picchio, «As Janelas verdes de Murilo Mendes», in Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 11.
[2] Id., ibid., p. 12.
[3] Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 17.
[4] Id., ibid., p. 23.
[5] Eucanaã Ferraz, «Em Portugal, com Murilo Mendes», in Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 216.

2014-10-08

O corpo, o voo, a casa: sobre «Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave», de Eduardo White


O corpo, o voo, a casa: sobre Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave, de Eduardo White

Eduardo White (1963-2014) pode não ser tão conhecido quanto a palavra arte. Falecido há bem pouco, ele transporta consigo, isto é, na sua poesia um irreprimível apelo à «engenharia de ser ave», como o diz, por exemplo, o pequeno e grande livro Poemas de ciência de voar e da engenharia de ser ave (1992), o único livro que do autor possuía até à recente compra do quase póstumo Bom dia, Dia (2014), em hora decisiva publicado pelas Edições Esgotadas. Ora, o título de 1992 entronca desde logo com a necessidade do movimento para que a comunicação se estabeleça e aprofunde. Esta adjunção imagética é um laivo performativo que afirma que a poesia é o que é, e também voo.
Como diz Mia Couto, White, em vez de escrever sobre aves, «escreve em aves». E isso é logo visível no primeiro poema do macrotexto que diz: «No vento e sem milagres, sobem as aves pelo ar. / Nenhum fogo as suspende. Só sangue e movimento. / Matéria carnal.                                                                                                           A casa solar.» (p. 11).  Este sangue e este movimento são o corpo-carne à procura da casa significativa.
A ação sobre o objeto artístico celebrado, nessa ondulação de gestos que é dinâmica supletiva sobre uma poética fortíssima, desenrola-se em teoria na passagem dos versos, dos vocábulos: «Põe a música sobre os dedos, a água, a sede, inclina para dentro o silêncio, o azul, o vento, tens as mãos para fazê-lo, essas ignaras abelhas do mel e do afecto, deixa que se perca toda a sabedoria, rasga-a com os dentes, desterra-a do pensamento». Este trecho poético diz bem o que pode ser um objeto estético sobre outro ou uma outra obra de arte.
Ser arte, mostrá-la aos olhos e fazê-la com o corpo, pode ser mesmo aquele whitiana bebedeira «que queima com lentidão / a cabeça, / traz as luzes desde as vísceras, / o sangue a ferver nas vias tubulantes, / traz a natureza estimulante das paisagens / que temos dentro» (p. 17).
Voar é aqui, pode ser aqui, um corpo que é objeto, obra de arte dinâmica, obra insurgente: «Voemos. / Voar não é senão essa ilusão, / fazê-la possível. Tê-la vivendo. /Voar é estender as mãos / a esse desejo que nos dói / como um punhal insurgente.»
Não será a insurreição o destino do criador e da criação artística,  com o corpo voando ambos e fazendo-se casa habitável?

[Eduardo White, Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave, Lisboa, Caminho, 1992.]

Viseu, 8 de outubro de 2014

©Martim de Gouveia e Sousa

2014-09-28

«Oásis»: Da dignidade estética, da poesia de António Gil


Da dignidade estética, da poesia de António Gil[1]
«Oásis os lugares e instantes sitiados de trevas, de areias
                                                        escaldantes, de água salgada, de ruidosa realidade:».
                                                                                                             (António Gil, Oásis.)

Às vezes, os dias gastam-se, sem rebentação, sem líquidos significativos. Outras vezes, poucas, são fundas esteiras de luz que nos trazem as melhores palavras. Oásis é o que é, sendo um luxo, uma gritante partida por dentro do tempo, uma boca líquida dizendo o breve nome da poesia que é.
Eu gosto desta casa, destas trevas luminosas, escaldantes. Afundemo-nos aqui neste oásis, habitação construída em memoriais corredores, fundos, abertos, aéreos, líquidos, longínquos por estarem perto, sonhados porque vistos na torrente do sangue.
Nos lábios, o mar na boca diz ser viagem, rebentação no corpo e relógio que a água sempre é. Este oásis é distância e sonho, é sede e fastio de maturidade que não sabe outra estação - «recolher o mar como uma criança», diz o poeta.
Aqui o tempo é isso – a infância espalhada nas ruas, as flores nos dedos, o funil do tempo rindo em baixo, no doido carrocel dos lugares onde tudo se guarda. E também as linhas de sal, as memórias vindas das marés, o sal pousado nos cafés da restinga.
Em Oásis, os lugares são de poesia, de ausências ditas, de viagens feitas e desfeitas, de exílios e abandonos. As palavras são também muros que se desvelam, semas que se adentram na casa adentrando-nos num mundo onde os novos e raros vocábulos explodem. Novos e raros, repito, mas sendo os mesmos, isto é, tudo e nada, o mundo.
Um outro pressuposto aqui deixo, vindo de Baudelaire. Aquele que diz a dignidade estética que habita uma poesia, esta, que um dia se tornará antiguidade pela sua modernidade extrativa tão arrebatadora. E isto é dizer-se estarmos perante uma poesia que não pode ser alugada, que rói já o centro literário.
É evidente que o espetro do erro, quando se lê e conhece do autor mais de dez títulos poéticos, é um saboroso estar no mundo em face do poeta António Gil, que há muito insisto surpreendentemente em ter a pretensão de conhecer. Onde, então, a sua verdade original? Está nisto, no pó das palavras, que olhamos, sentimos, escutamos, apreendemos e em nós aparece como fogueira. É a voz do tempo que fala, nas suas múltiplas escorrências, nesta comunhão que se nos ata.
Um último luxo, que é primeiro, destaco agora. Ele inscreve-se, por exemplo, no preceito borgiano[2] verdadeiramente assumido de que «os livros oferecem céus», como se lê desde o início:

 Minhas flores de infância aí jazem insepultas na penumbra dos
livros e suas pétalas estiolam, ardem secretas nos intervalos dos
capítulos, atrás das lombadas ainda cuidadosamente oblíquas...

E, já agora, lembro um outro início, vindo de 1981, que aqui colo, passados mais de 33 anos: «Trouxeram-me as palavras / É quase um abismo ser eu // É inútil pensar / Sigo o caminho das palavras». E seguiu, digo eu, e sabemos nós.
Conatural aos livros e às palavras, António Gil não se explica, lê-se. A sua poesia faz rizoma com o mundo dizendo-lhe o silêncio que neste Oásis se ouve. Uma multiplicidade de silêncio, aliás, com territórios e desterritórios, e espantosas linhas de fuga. Cartografando, esta escrita é – para ouvir e comer sem que isso a signifique. Como elo, este silêncio ouve-se – aqui.
viseu, 26 de setembro de 2014 / martim de gouveia e sousa


Bibliografia de António Gil

impressa

António Gil ( com António Manuel), Poesia nascente, Viseu, Edição dos Autores, 1981.
António Gil ( com Jorge Henrique), Ex passos, Viseu, C.D.C., 1983.
António Gil, a céu aberto, Miraflores, Difel, 2002.
António Gil ( com João Pedro Domingos d’ Alcântara Gomes),  filigrafias, Viseu, edição dos autores, 2002. Grafismo de Eduardo Araújo.
António Gil, Canto desabitado, Viseu, Ave Azul, 2005.
António Gil ( como Nioto Jiang), O jardim das oito pedras, Coimbra, Areias do Tempo, 2008.
António Gil, Indústrias do absoluto, Coimbra, Areias do Tempo, 2010.
António Gil, Obra ao rubro, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2012.
António Gil, Oásis, Viseu, Edições Esgotadas, 2014.

para publicação

António Gil, do corpo contíguo.
António Gil, Ofícios da insónia.
António Gil, Ofícios da insónia. Incursões * guerrilhas * despojos.
António Gil, Restauros.
António Gil, Trânsitos.


Alguma bibliografia sobre António Gil

CALEMA, José, «À maneira de prefácio», in Poesia nascente, Viseu, Edição dos Autores, 1981, pp. 5-6.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «Uma história da habitação: o tempo todo de António Gil», in http://aveazul.blogspot.pt/2006/04/uma-histria-da-habitao-o-tempo-todo-de.html, 20 de abril de 2006.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «António Gil e a céu aberto: para além do poema», in http://aveazul.blogspot.pt/2006/07/antnio-gil-e-cu-aberto-para-alm-do.html, 17 de setembro de 2006.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «Sobre um livro de António Gil: Umas poucas palavras de um editor sem nome», in http://aveazul.blogspot.pt/2009/05/sobre-um-livro-de-antonio-gil-umas.html, 24 de maio de 2009.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «Oásis de António Gil: samar & morfologia», in http://aveazul.blogspot.pt/2014/09/oasis-de-antonio-gil-samar-morfologia.html, 29 de setembro de 2014.




[1] De António Gil, conheço, sem garantir a exaustão, os seguintes títulos: obra impressa - (com António Manuel), Poesia nascente, Viseu, Edição dos Autores, 1981; ( com Jorge Henrique), Ex passos, Viseu, C.D.C., 1983;  a céu aberto, Miraflores, Difel, 2002; ( com João Pedro Domingos d’ Alcântara Gomes),  filigrafias, Viseu, edição dos autores, 2002; Canto desabitado, Viseu, Ave Azul, 2005; ( como Nioto Jiang), O jardim das oito pedras, Coimbra, Areias do Tempo, 2008;  Indústrias do absoluto, Coimbra, Areias do Tempo, 2010; Obra ao rubro, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2012, Oásis, Viseu, Edições Esgotadas, 2014. para publicação - do corpo contíguo; Ofícios da insónia; Ofícios da insónia. Incursões * guerrilhas * despojos; Restauros; e Trânsitos.
[2] Em entrevista, Jorge Luís Borges reconheceu ser todos os livros que lia.

2014-09-27

«Oásis» de António Gil: samar & morfologia


Oásis de António Gil: samar & morfologia

Não temendo dissídios, eis que a poesia de António Gil, passadas mais de três décadas sobre as primícias literárias, entra no confronto titular e na digladiação canónica, arrastando, neste título de linhagem áurica e geográfica, outras titulações e inscrições para novos lugares. Afinal, nas correntes da literatura portuguesa outros Oásis houve que a minha memória guardou: o centenar de João Maria Ferreira, de 1912; o já também longínquo de Manuel Pedroso Gonçalves, de 1957; o Oásis branco (1991), de António Ramos Rosa; o de António Franco Alexandre, de 1992; essoutro de Albino de Almeida Matos, meu saudoso professor de latinidade, de 1994; e outros, que certamente existirão e o tempo se encarregará de nos mostrar e desvelar.
Não viaja este Oásis na peugada da influência. Sem essa angústia, desvela-se-nos o macro texto em águas fundas, unipessoais, vindas da profundeza do ser, desse poço oficinal que é sangue de raras águas e de muitos líquidos. Fechando-se no lugar, rasurando as distâncias, o texto antonino dá-nos o corpo, os arcanos formativos da construção poética, as águas transformadoras, o sangue emergente.
Mas sentemo-nos neste livro como se estivéssemos em Teîma. Recuemos, podendo, a tempos pré-islâmicos ou islâmicos e despertemos os sentidos rumo ao espírito das pedras, das fontes e das árvores, aos ritos dos ventos e das noites. Ou, então, assentemos com os campaniços de Manuel da Fonseca e debrucemo-nos sobre as fogueiras inibidoras dos frios noturnos. De olhos fechados, bem abertos para dentro, é na folha branca e líquida da noite que se escreve esta velada contra o corpo, na erupção interna dos seus líquidos, no extravasamento das águas mais agudas.
Mais desvelo: «os livros oferecem céus», diz o poeta; samar e morfologia, leio. Luminoso desde o dealbar poético, frenético até de irisação, é neste Oásis acerado em calda antiquíssima que se interpenetram fortes travejamentos feitos de breves trevas e escaldantes e salgados caminhos dentro do eu construtor. No «breve nome» titular, afinal, diverso modo de dizer casa da criação, lugar produtivo e oficina poética, nada se esconde, tudo se mostra de uma interioridade devassada, mostrativa: a memória e as suas descidas líquidas aos tempos vividos e inscritos; as cesuras com as distâncias e os mares sanguíneos da produção; a íntima habitação dos dias e as peregrinações interiores; os sonhos, os sonos e o acordar disso; a rebentação constante de tudo e os mares comunicativos; a explosão criativa contra o tempo imarcescível; o primado das águas e da textualidade; os exílios e as sedes, enfim:

teus lábios aquecem-me quando dizes fogo, como
se soprasses a palavra e logo de luz, quase sem te dares conta,
vestisses a flor doravante acesa. O mesmo efeito quando enches o
peito para dizer luz : logo um oásis cristalino se inflama sob o sol. [13, «Os lugares que não murámos»]

Assim, neste lugar constrito e libertador, junto à clepsidra dos elementos e do frio noctívago, a poesia de António Gil entrega-se ao tempo como objeto maturado. Apelando a uma disponibilidade indisputável, da pele à pele interpela o leitor este Oásis, envolvendo-o, levando-nos, através de diversa mas constante monotonia lírica (esta força patética é essência da poesia, lembre-se), para longes desolados e solitários. Nesta velada, samar e morfologia do eu, rói o tempo :

E não há neste mundo nenhuma terra
nenhuma terra capaz de aliviar este exílio
que nos separa todos os dias, de todos os dias
que nunca mais se deixarão tocar… [30, «Os oásis de silêncio»]

Deserto dentro, tudo se abisma neste amparo que é a poesia feita das melhores palavras.

    Viseu, 27 de fevereiro de 2014
    © Martim de Gouveia e Sousa

2014-09-19

AMARGURA E INCOMODIDADE EM «TIO DEUS» DE URBANO TAVARES RODRIGUES



É um modo único de cativar aquele que encontramos na narrativa breve de Urbano Tavares Rodrigues. Sabendo por dentro da «inutilidade das ruínas», do seu caráter forte poeticamente arrebatador, não há tom efémero que Urbano não desbrave, não existe degenerescência que para ele não tenha a sua utilitas.
Com valência estética, os sinais da ruína são mais do que muitos nessa fabulosa short story rodriguiana que é «Tio Deus» e está integrada no livro de novelas Casa de correcção (1968)[1]. E o início da narrativa breve do autor de Bastardos do sol bem que convoca essa beleza triste e admirável da finitude e da devastação. Veja-se como: «Uma porta imemorável, desviada da sua função, arrancada aos gonzos de alguma velha dependência, e agora mascada pela humidade do jardim, com a maçaneta partida, tapa metade da cisterna sobre a qual as crianças se debruçam»[2].
Esta abertura – soberba, diga-se… - fornece ainda vários elementos de adesão, como, por exemplo, o tom ominoso advindo da «humidade do jardim», a «maçaneta partida» e a cisterna em que as crianças se debruçavam. Tais elementos trágicos projetam-se sobre o todo narrativo e entram até em litígio com a escolha titular, maculando, programaticamente, a bondade do apelido Deus. Arrebatador até dor, esta estória encaixa como luva no diagnóstico do ainda pouco mais do que desconhecido José Saramago que, no prefácio à 2ª edição de Casa de correcção, liberta esta esclarecida admonição: «É preciso resistir à repetida tentação de largar o livro, de pensar noutra coisa, de ir ao jardim mais próximo ver como se comportam as flores. É preciso, por outro lado, não ceder à atracção de desanimar dos homens que habitam e se entredevoram nesta “casa de correcção”»[3].
Muito do que se encontra nesta novela fascinante será, no longo e consistente monumento literário de Urbano Tavares Rodrigues, uma constância. Será sempre de olhos abertos o modo indicado para fender uma escrita duríssima e certeira. Que esperar afinal do defeito educativo daquele tio tão insofrido e tão desumano que não seja dor e incómodo, como, aliás, se anunciava já nos claros omina do incipit  da novela? Este tio, que proibira o baloiço, era assim… um deseducador: «Talvez aquela unha do tio não seja assim tão comprida e tão dura, e tão aguçada, de propósito para os magoar. Mas deixa sempre marcas quando lhes agarra os pulsos. Às vezes faz até feridas na cara, quando ele se zanga deveras e os esbofeteia. D. Laurentina assegura que o tio Alexandre sofre quando se vê forçado a castiga-los: tem bom coração, mas a sua obrigação é educar, mandar, não pode comover-se com ninharias»[4].
O tio não permitia um pio. Havia hora certa para tudo. O tio batia metodicamente. O tio morreu um dia. E então os dois rapazinhos decifram uma aérea sigla que diz «liberdade, iniciação, suplício»[5]. E as lágrimas devêm sangue. Irrompendo o sangue, ao sangue liba o bull-dog do tio que crava a dentuça em Jasmim antes de este lhe desferir certa paulada e o degolar, posteriormente, com uma faca. Tudo uma sangueira – estrangulação de animais, vícios sexuais, insujeição, raivas indomináveis e o mais que se sabe conduzirão os jovens por momentos de desregrada liberdade até ao fechamento vegetal de tudo. A tutora, então chegada, conduzi-los-á, de novo, a uma outra ordem noturna. E, no fundo, a criação monstruosa que aquelas crianças eram promanava de abissais desvirtudes dos adultos. Aprende-se isto aqui, com Urbano Tavares Rodrigues, qual flâmula de perenidade…

Viseu, 19 de setembro de 2014

© Martim de Gouveia e Sousa




[1]Urbano Tavares Rodrigues, Casa de correcção, Amadora, Livraria Bertrand, 1968.
[2] Id., ibid., Amadora, Livraria Bertrand,2 ver.1972, p. 19.
[3]José Saramago, «Leitura incómoda», in Urbano Tavares Rodrigues, Casa de correcção, Amadora, Livraria Bertrand,2 rev. 1972, p. 19.
[4] Urbano Tavares Rodrigues, op. cit., p. 20.
[5] Id., ibid., p. 38.

2014-09-13

Grande literatura: veredas – Aquilino Ribeiro e João Guimarães Rosa


Grande literatura: veredas – Aquilino Ribeiro e João Guimarães Rosa
Nas veredas do entorno literário, há elementos que são clave e para sempre permanecerão longe do leitor. E a leitura, na margem, far-se-á, também produtivamente. Nestas histórias de tapeçaria como são estas, as da leitura, existem modos de entretecer, isto é, de expandir a teia, que, como pedra de toque, são um som de afinidades. Por exemplo, eu sei que Raul Brandão é da «família» de Vergílio Ferreira e que ambos, sem peso de influência, são magnos escritores. E da mesma linhagem são os também portugueses Maria Gabriela lLansol, Almeida Faria e Urbano Tavares Rodrigues, todos eles belíssimos artistas também. Ou seja, uma linhagem não define uma supremacia, mas uma transmissão.
É nas veredas do tempo que me encontro agora. São afinal uma poucas décadas de memória. Poucas, mas fundas. É o tempo de sorver essa crónica romanceada que é A Casa Grande de Romarigães, a quem o professor desse ano ainda propedêutico do meu trajeto especificamente universitário, o Padre Dr. Custódio Lopes dos Santos[1], que aqui também homenageio, não regateava elogios e grande valimento de aprendizagem de escrita. Recordo ainda o interessante trabalho que a turma desenvolveu sobre a obra, tendo eu optado, ao tempo, por uma abordagem histórica, literária e genealógica que agradou ao professor e que ele tão copiosa como competentemente adendou. Sei que esse trabalhinho ainda anda aqui por minha casa no mar vasto das papeladas que sempre vou podando em época de revisitação.
Em vereda próxima, e não perdendo nunca a dimensão do contacto com um grande romance aquiliniano, eis que o jesuíta José Alves Pires[2], professor meu e da turma de Literatura Brasileira, omnívoro e estruturadíssimo leitor, convoca para estudo um escritor, então pouco mais do que desconhecido para mim, de nome João Guimarães Rosa. E então, bem mais do que acontecera com o clássico de Aquilino Ribeiro, percorreu-me um estremeção intenso que, viria a aprender à frente, mais não era do que o célebre pestanejamento de George Steiner, sintoma aferidor da qualidade literária experimentada. Foi um fascínio, um deslumbrante sortilégio percorrer aquele livrinho da coleção «Livros do Brasil» de título Miguilim e Manuelzão[3], com as duas estórias mágicas «Campo Geral» e «Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)», a que juntei, logo de seguida, o monumental e intensíssimo Grande sertão: veredas[4].
Gerando veredas e promovendo escolhas, a literatura mostra-se e esconde-se, tornando moventes os seus objetos, matizando celebrações e promovendo inevitáveis personalidades, seres fortes e catalisadores. Incisas me ficaram essas teias de leitura, como outras que não vêm ao caso. Em período claramente formativo, há poucas décadas, pois, a perquirição por veredas e territórios aquilinianos e rosianos não cessa de dar frutos, não deixando o par de ser interessante, até pela tal linhagem a que atrás aludi e pelos mais que muitos pontos de afinidade.
Já disse várias vezes, no não muito que escrevi a respeito, que o incipit de A Casa Grande de Romarigães é um dos mais fulgurantes de todos os romances de língua portuguesa. Como um livro primordial, o palco da crónica romanceada desvela-se nascente: «O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semirrígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que para-quedista!»[5] Genesíaco, em breve, o palco estaria criado para aquela «certa manhã de Outono» em que um homem «atravessou por ali, e não foi pequeno o seu pasmo»[6].
Na memória, nas suas veredas, decantam e ecoam ainda as palavras iniciais de «Campo Geral»: «Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos».[7] E também as daquele tão aquiliniano início de «Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)», sugestivo até de contacto com O Malhadinhas: «Ia haver festa. Naquele lugar – nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra.»[8] E, por último, em vivo e inciso compartimento memorial, destaca-se, na senda assinalada, a fulgurante entrada do romance epopeico Grande sertão: veredas, de que transcrevo breve trecho: «Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no bairro do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem se ver – se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo»[9].
Foi há décadas atrás, poucas, como disse, e desde então via eu nesta sinfonia de textos de autores diferentes uma música afim, uma energia aproximável. Aliás, mais ou menos por essa época, em artigo muito interessante que José Cardoso Pires fez publicar no Jornal de Letras, Artes e Ideias, sob o título «Aquilino, mestre da nave»[10], lemos, entre outras codiciosas reflexões, que Guimarães Rosa fora leitor de Aquilino e que nenhum outro dos ficcionistas contemporâneos citou. Ora isto entroncava na tal casa comum e nas ressonâncias familiares.
Bem mais recentemente, Alexei Bueno veio a defender que a linguagem artística de  Rosa foi claramente influenciada por Aquilino, informando-nos também que pouco mais do que modesta biblioteca rosiana havia três obras do autor de O Malhadinhas: Uma luz ao longe, Cinco réis de gente e Estrada de Santiago. Ora, ainda segundo o crítico brasileiro: «O Malhadinhas, novela de cerca de cem páginas, que apareceu pela primeira vez neste último volume, Estrada de Santiago, […] é o marco da mais profunda afinidade genésica com a prosa de Grande sertão: veredas»[11]. E Bueno apresenta, de seguida, excertos que coonestam a sua teoria. Influenciando-lhe o português e a sintaxe, ideia que não nego, outras fundas e multímodas influências se terão operado no vasto mundo de Guimarães Rosa. Nascentes e vindas de Aquilino.
Hoje celebra –se Aquilino, o seu nascimento, cento e vinte e nove anos que nascem urbi et orbi nos melhores lugares. O ontem e o amanhã nascem ainda dos seus dedos.

Viseu, 13 de setembro de 2014
©Martim de Gouveia e Sousa



[1] Custódio Lopes dos Santos foi autor de obras como A composição em francês no segundo ciclo do curso liceal, Coimbra, Instituto de Estudos Pedagógicos e Psicológicos, 1960; O regime de classes e o regime por disciplinas no ensino liceal, Coimbra, 1960; Paul Geheeb. Mensch und Erzieher, Coimbra, Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagógicos, 1960 (com Walter Schafer); Instruções para difusão do francês no estrangeiro, Coimbra, Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagógicos, 1962; O intercâmbio de estudantes, a difusão do livro, o intercâmbio de locutores e a criação de escolas de tradução referidos a Portugal e ao Brasil: sua contribuição para a unidade da língua portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1968; A denominação “Adamastor” em Os Lusíadas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984.
[2] José Alves Pires (1934-), para além de dispersa e importante colaboração crítica na revista Brotéria, é autor de livros como: João Guimarães Rosa: uma literatura almada, Braga, Brotéria, 1993; e Grandes espirituais da literatura brasileira, Braga, Faculdade de Filosofia da U.C.P., 2002.
[3] João Guimarães Rosa, Miguilim e Manuelzão, «Livros de Brasil», Lisboa, Edição «Livros do Brasil», s.d.
[4] Id., Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 171985.
[5] Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães. Crónica romanceada, Lisboa, Livraria Bertand, 1957, p. 13.
[6] Id., ibid., p. 16.
[7] João Guimarães Rosa, Miguilim e Manuelzão, p. 7.
[8] Id., ibid., p. 131.
[9][9] João Guimarães rosa, Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro, 171985, p. 7.
[10] José Cardoso Pires, «Aquilino, mestre da nave», in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 17 de janeiro de 1984. Este artigo foi mais tarde integrado na obra Dispersos 1 (Literatura), Lisboa, Dom Quixote, 2005, pp. 131-137.
[11] Alexei Bueno, «Ribeiro, Rego, Rosa e Rocha. Afinidades eletivas», in Isabel Morujão e Zulmira Santos, Literatura culta e popular em Portugal e no Brasil. Homenagem a Arnaldo Saraiva, Porto, CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» - Edições Afrontamento, 2011, p. 36.