Oásis
de António Gil: samar &
morfologia
Não temendo dissídios,
eis que a poesia de António Gil, passadas mais de três décadas sobre as
primícias literárias, entra no confronto titular e na digladiação canónica,
arrastando, neste título de linhagem áurica e geográfica, outras titulações e
inscrições para novos lugares. Afinal, nas correntes da literatura portuguesa
outros Oásis houve que a minha
memória guardou: o centenar de João Maria Ferreira, de 1912; o já também
longínquo de Manuel Pedroso Gonçalves, de 1957; o Oásis branco (1991), de António Ramos Rosa; o
de António Franco Alexandre, de 1992; essoutro de Albino de Almeida Matos, meu
saudoso professor de latinidade, de 1994; e outros, que certamente existirão e
o tempo se encarregará de nos mostrar e desvelar.
Não viaja este Oásis na peugada da influência. Sem essa
angústia, desvela-se-nos o macro texto em águas fundas, unipessoais, vindas da
profundeza do ser, desse poço oficinal que é sangue de raras águas e de muitos
líquidos. Fechando-se no lugar, rasurando as distâncias, o texto antonino
dá-nos o corpo, os arcanos formativos da construção poética, as águas
transformadoras, o sangue emergente.
Mas sentemo-nos neste
livro como se estivéssemos em Teîma. Recuemos, podendo, a tempos pré-islâmicos
ou islâmicos e despertemos os sentidos rumo ao espírito das pedras, das fontes
e das árvores, aos ritos dos ventos e das noites. Ou, então, assentemos com os
campaniços de Manuel da Fonseca e debrucemo-nos sobre as fogueiras inibidoras
dos frios noturnos. De olhos fechados, bem abertos para dentro, é na folha
branca e líquida da noite que se escreve esta velada contra o corpo, na erupção
interna dos seus líquidos, no extravasamento das águas mais agudas.
Mais desvelo: «os
livros oferecem céus», diz o poeta; samar
e morfologia, leio. Luminoso desde o dealbar poético, frenético até de irisação,
é neste Oásis acerado em calda
antiquíssima que se interpenetram fortes travejamentos feitos de breves trevas
e escaldantes e salgados caminhos dentro do eu construtor. No «breve nome»
titular, afinal, diverso modo de dizer casa da criação, lugar produtivo e
oficina poética, nada se esconde, tudo se mostra de uma interioridade
devassada, mostrativa: a memória e as suas descidas líquidas aos tempos vividos
e inscritos; as cesuras com as distâncias e os mares sanguíneos da produção; a
íntima habitação dos dias e as peregrinações interiores; os sonhos, os sonos e
o acordar disso; a rebentação constante de tudo e os mares comunicativos; a
explosão criativa contra o tempo imarcescível; o primado das águas e da
textualidade; os exílios e as sedes, enfim:
teus lábios aquecem-me quando
dizes fogo, como
se soprasses a palavra e logo de
luz, quase sem te dares conta,
vestisses a flor doravante acesa.
O mesmo efeito quando enches o
peito para dizer luz :
logo um oásis cristalino se inflama sob o sol. [13, «Os lugares que não murámos»]
Assim, neste lugar constrito e libertador, junto à
clepsidra dos elementos e do frio noctívago, a poesia de António Gil entrega-se
ao tempo como objeto maturado. Apelando a uma disponibilidade indisputável, da
pele à pele interpela o leitor este Oásis,
envolvendo-o, levando-nos, através de diversa mas constante monotonia lírica
(esta força patética é essência da poesia, lembre-se), para longes desolados e
solitários. Nesta velada, samar e
morfologia do eu, rói o tempo :
E não há neste mundo nenhuma
terra
nenhuma terra capaz de aliviar
este exílio
que nos separa todos os dias, de
todos os dias
que nunca mais se
deixarão tocar… [30, «Os oásis de silêncio»]
Deserto dentro, tudo se
abisma neste amparo que é a poesia feita das melhores palavras.
Viseu, 27 de fevereiro de 2014
© Martim de Gouveia
e Sousa
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