2014-09-27

«Oásis» de António Gil: samar & morfologia


Oásis de António Gil: samar & morfologia

Não temendo dissídios, eis que a poesia de António Gil, passadas mais de três décadas sobre as primícias literárias, entra no confronto titular e na digladiação canónica, arrastando, neste título de linhagem áurica e geográfica, outras titulações e inscrições para novos lugares. Afinal, nas correntes da literatura portuguesa outros Oásis houve que a minha memória guardou: o centenar de João Maria Ferreira, de 1912; o já também longínquo de Manuel Pedroso Gonçalves, de 1957; o Oásis branco (1991), de António Ramos Rosa; o de António Franco Alexandre, de 1992; essoutro de Albino de Almeida Matos, meu saudoso professor de latinidade, de 1994; e outros, que certamente existirão e o tempo se encarregará de nos mostrar e desvelar.
Não viaja este Oásis na peugada da influência. Sem essa angústia, desvela-se-nos o macro texto em águas fundas, unipessoais, vindas da profundeza do ser, desse poço oficinal que é sangue de raras águas e de muitos líquidos. Fechando-se no lugar, rasurando as distâncias, o texto antonino dá-nos o corpo, os arcanos formativos da construção poética, as águas transformadoras, o sangue emergente.
Mas sentemo-nos neste livro como se estivéssemos em Teîma. Recuemos, podendo, a tempos pré-islâmicos ou islâmicos e despertemos os sentidos rumo ao espírito das pedras, das fontes e das árvores, aos ritos dos ventos e das noites. Ou, então, assentemos com os campaniços de Manuel da Fonseca e debrucemo-nos sobre as fogueiras inibidoras dos frios noturnos. De olhos fechados, bem abertos para dentro, é na folha branca e líquida da noite que se escreve esta velada contra o corpo, na erupção interna dos seus líquidos, no extravasamento das águas mais agudas.
Mais desvelo: «os livros oferecem céus», diz o poeta; samar e morfologia, leio. Luminoso desde o dealbar poético, frenético até de irisação, é neste Oásis acerado em calda antiquíssima que se interpenetram fortes travejamentos feitos de breves trevas e escaldantes e salgados caminhos dentro do eu construtor. No «breve nome» titular, afinal, diverso modo de dizer casa da criação, lugar produtivo e oficina poética, nada se esconde, tudo se mostra de uma interioridade devassada, mostrativa: a memória e as suas descidas líquidas aos tempos vividos e inscritos; as cesuras com as distâncias e os mares sanguíneos da produção; a íntima habitação dos dias e as peregrinações interiores; os sonhos, os sonos e o acordar disso; a rebentação constante de tudo e os mares comunicativos; a explosão criativa contra o tempo imarcescível; o primado das águas e da textualidade; os exílios e as sedes, enfim:

teus lábios aquecem-me quando dizes fogo, como
se soprasses a palavra e logo de luz, quase sem te dares conta,
vestisses a flor doravante acesa. O mesmo efeito quando enches o
peito para dizer luz : logo um oásis cristalino se inflama sob o sol. [13, «Os lugares que não murámos»]

Assim, neste lugar constrito e libertador, junto à clepsidra dos elementos e do frio noctívago, a poesia de António Gil entrega-se ao tempo como objeto maturado. Apelando a uma disponibilidade indisputável, da pele à pele interpela o leitor este Oásis, envolvendo-o, levando-nos, através de diversa mas constante monotonia lírica (esta força patética é essência da poesia, lembre-se), para longes desolados e solitários. Nesta velada, samar e morfologia do eu, rói o tempo :

E não há neste mundo nenhuma terra
nenhuma terra capaz de aliviar este exílio
que nos separa todos os dias, de todos os dias
que nunca mais se deixarão tocar… [30, «Os oásis de silêncio»]

Deserto dentro, tudo se abisma neste amparo que é a poesia feita das melhores palavras.

    Viseu, 27 de fevereiro de 2014
    © Martim de Gouveia e Sousa

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