2014-08-28

fim de agosto


fim de agosto frio
todo o gelo em mim
escorre ainda na casa
nos gestos líquidos
num tempo longe
e perto nesta laje
gaveta de escuridade
é de desabitação que falo.

onde a morte aí que lírio
sombrio me vem aos dedos
que de mágoa me magoa
que de ser me faz estendido?

redondas as palavras caem
e é do gelo deste fim de agosto.

2014-08-27

DUAS DÚZIAS DE PERPLEXIDADES – «AVE-AZUL» EM CONVERSA COM ALDA PIRES


DUAS DÚZIAS DE  PERPLEXIDADES – AVE-AZUL EM CONVERSA COM ALDA PIRES

Diz-me Alda Pires, quando lhe pedia uma fotografia para este grande momento da revista Ave-Azul e a câmara preparava já o disparo automático: «Mesmo no que respeita a fotografias, sou um bocado avessa a isso. Gosto de preservar a minha quietude. Normalmente, no blogue, uso uma foto de mulheres com quem eu me identifique: Simone de Beauvoir, Rosa Luxemburgo ou outras». A conversa, essa, fica aí. As coisas durarão mesmo aquilo que tiverem que durar. Sem encenação de posteridade, eis o teor de uma conversa sobre o calor de uma mão que é já caminho.
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1. À beira da vida, nascendo na Beira, que moçambicanidade em ti, em ambiência de nomes fortes como os de Eugénio Lisboa, Eduardo Pitta, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Grabato Dias, Fonseca Amaral e outros, todos eles também roídos pela portugalidade?

Alda Pires - De todos os nomes que referes, o de Grabato Dias é aquele de que mais me aproximo. Não tanto pela África contida nas suas obras, uma África ambígua pois coexistem nela duas Beiras: a moçambicana e a beiraltina. E em ambas Beiras também me enquadro, apesar de ter saído da Beira para Lourenço Marques, hoje Maputo, apenas com dois anos de idade. Há sempre Moçambique em mim. Logo,
haverá na minha poesia também, apesar de poder não recorrer aos tons africanos como ferramentas de escrita. Mas, às vezes, lá sai uma ou outra África numa metáfora, numa imagem, até num cheiro das acácias vermelhas que nunca se esquecem e que me acompanha quando escrevo. Ainda sobre o Grabato, um crítico
de Fortaleza,o António Cabrita, considerava o João Pedro Grabato Dias “um homem com gatos nos pulmões” dada a sua capacidade de regenerar as personagens de si mesmo.

2. Olhando-te o percurso (que o tens!), sentes-te uma mulher estimulante ou, pelo contrário, achas-te, um tanto à Nabokov, desinteressante?

A.P.- Essa pergunta é tão ingrata!... Acho que aquilo a que chamas o meu “percurso” me estimulou a ser quem sou e como sou. Não me acho propriamente uma pessoa desinteressante. Sem narcisismos nem falsas modéstias, acho que o interesse que possa eventualmente despertar vale sobretudo pelo facto de ter sido testemunha de muitas experiências de vida, desde a descolonização, ao PREC, os anos de chumbo no Brasil e na Argentina. E esses cenários, sim, considero-os interessantes. É claro que me sinto privilegiada para poder falar deles com a propriedade de quem osnviveu presencialmente.
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3. Fitando os três lustros de vivência moçambicana sem interstícios, que ficou disso na tua poesia?

A.P. - O já referido cheiro das acácias vermelhas. O poeticamente chamado “mercado dos cheiros” num momento posterior, quando já não havia nada para vender. O pôr-do-sol e os seus tons sobre a marginal de Maputo. Malangatana, Craveirinha. Os bailes, a marrabenta. E eu, como criança e adolescente moçambicana, como é evidente.

4. Salienta gostos e aversões e desgostos.

A.P. - Apenas alguns gostos: O por-do-sol e os seus tons sobre a marginal de Maputo... Malangatana, Craveirinha, Mia Couto, o Eduardo White, que resolveu deixar-nos há dias. Mas também: o meu amado Jorge Amado, Cândido Portinari, Eduardo Galeano, Rulfo, Juan Gelman, Benedetti, o Saramago, e o Eça, a Florbela Espanca, o Carlos Paredes, o Chico Buarque, o Sérgio Godinho, o Zeca, esse “moçambicano”... Olha, estes gostos são tão lindos que preferia não falar das aversões e dos desgostos...

5. A escrita é-te uma mão ou um teclado?

A.P. - A mão, decisivamente. O teclado é para registar e editar o que a mão criou.

6. Na escrita, hesitas ou as palavras brotam, físicas e ascendentes?

A. P. - O Hemingway recomendava que escrevêssemos ébrios e editássemos sóbrios. Depende muito: por vezes sai-me tudo à primeira e fica assim mesmo, sem editar. Outras vezes vejo e revejo, leio outra vez, dou a ler, procuro opiniões, rasgo, deitofora, vou buscar outra vez ao lixo... Não sou muito metódica. Funciono com base nas paixões. Na escrita e na vida. E a escrita é vida. As palavras brotam, normalmente. Os momentos de hesitação são para quando edito.

7. Nabokov lia, escrevia e não falava. E a Alda Pires?

A. P. - Aprecio sempre uma boa conversa. Gosto de ter os meus silêncios mas também eles são conversas comigo mesma. E nem sempre estamos de acordo. Aliás: dizem-me os leitores do blogue que a minha escrita traduz aquilo que as pessoas têm vontade de dizer mas que nunca o fizeram. Sinto que melhor elogio não poderei ter nunca. Acho que é uma escrita que respira oralidade. Pelo menos esforço-me por isso.

8. Multímoda, em que trabalhas neste momento, dentro e fora da poesia?

Escrevi o espectáculo CENAS DE GAJA, um monólogo soberbamente interpretado pela Daniela Madanelo , com encenação do Carlos Clara Gomes, para a Companhia DeMente, com quem trabalho desde 2006. Neste momento está na forja o espectáculo MAIS CENAS DE GAJA, uma “sequela” do anterior. Mas poderá não ser um monólogo. De resto, continuo a trabalhar como Cenógrafa e Figurinista para diversas Companhias.

9. A entrevista interessa-te ou nem por isso?

Esta entrevista? Ou as entrevistas, em geral? A qualquer das perguntas a resposta é “sim”. Não se trata duma conversa?

[risos...]

10. A chegada a Portugal em 1974 é um ato revolucionário ou a revolução está só na poesia?

Na altura, com 15 anos, tive que vir para Portugal com ao minha família. Agora, acho que no seu sentido geral, a poesia é sempre um acto revolucionário. Quando cá cheguei senti-me parte dum processo de reconstrução dum País. E, uma vez que não tive oportunidade de reconstruir Moçambique porque as circunstâncias da minha vida assim o ditaram, achei decisivo poder ajudar a reconstruir Portugal. Não foi fácil porque nós, os chamados “retornados” não éramos bem olhados como gente. E ser-se retornada naquela altura, em Viseu, era um caso sério, num local que estava ainda tão infectado pelo fascismo. Pior ainda era ser-se retornada. Nós, as raparigas, pela maneira descontraída como nos vestíamos ou pela nossa maneira africana de conviver, éramos muitas vezes consideradas quase prostitutas.

11. Que Coimbra a de Alda Pires?

É uma Coimbra de Repúblicas e sem praxes nem trajes, uma Coimbra cheirando ainda ao Maio de 68 na sua tardia versão lusa. É uma Coimbra que respira democracia e não hierarquia. Essa é a verdadeira tradição de Coimbra... É a Coimbra em que esclarecíamos dúvidas em tertúlias com os professores no café
Tropical ou no café Moçambique. Era uma Coimbra em que os rapazes usavam patilhas, bigodes e barbas. Era uma Coimbra das calças boca-de-sino e duma espécie de flower-power adaptado ao pós-PREC. Era uma Coimbra em que víamos quase diariamente o Adriano Correia de Oliveira. Era uma Coimbra linda. Era a minha Coimbra da Clepsidra ou, quando havia dinheiro, do caril de camarão no Troika.

12. Pseudonímia, desmultiplicação, outramento, Joana Maldonado… - como se mascara, afinal a mulher e o poeta?

Joana Maldonado foi o meu pseudónimo quando comecei a escrever em Moçambique. Desde então para cá nunca mais o usei literariamente. Usei-o noinício da minha carreira como figurinista, no Brasil. Eu não me mascaro pois nenhum dos meus poemas se refere a mim especificamente. Não faço nada autobiográfico. Acho que acontece o oposto: algumas das minhas personagens mascaram-se de mim para sairem “à rua”. Podem, isso sim, existir situações, circunstâncias, em que posso ou não ser eu. Mas nenhum dos meus poemas se refere a mim enquanto a entidade que vivenciou o que lá é descrito.

13. Que explicação para o fascínio sentido por Alfonsina, Florbela, Parra?

São três mulheres que cantaram a vida e que acabam por atentar contra ela. Além disso, a obra de qualquer uma delas é sublime. Alonsina Storney até no seu suicídio foi poética, entrando pelo mar adentro; Florbela é o que sabemos e Violeta Parra, contraditoriamente, é a autora do fantástico hino “Gracias a La Vida”. A vida de qualquer uma destas três mulheres é um labirinto intrincado e sórdido. E heróico, também.

14. A poesia é paciência, voltar a?

A poesia tanto pode ser “voltar a” e isso pode até ser paciência, como pode ser “ir para” e isso, definitivamente, é impaciência, ansiedade... Mas, para mim, não é uma catarse nostálgica. É aquilo que eu acho que tenho para dizer e que não sei dizer doutra maneira sem ser em poesia.

15. Que ciência nela, na poesia?

Acho que seria frustrante encontrarmos uma ciência que explicasse a poesia. Seria muito redutor. Acho que a poesia é um acto de amor. Está no domínio do emocional e não do racional. Não tentemos também reduzir a poesia à estética. Porque não o é. Toda a estética é definida em função da obra e não o contrário.Quem faz o contrário é formalista. Como definimos a estética dum sentimento? É impossível.

16. Depois da paixão parisiense, que lugar ocupa em ti a marginada Judith Teixeira?

Ocupa um lugar bastante importante pois trata-se duma mulher de coragem que resolveu, na sua época, em Viseu, assumir a sua orientação sexual. Também foi um acto heróico. Agora, ela não escrevia bem por ser lésbica. Ela escrevia bem porque escrevia bem. Há uma outra vivência diferente tanto no caso dela como o meu, pois em determinado período partilhei a vida com uma mulher, mas não foi isso que me capacitou para escrever. Eu não amo géneros. Amo pessoas.

17. E quanto de memória não é água da tua escrita?

É evidente que, por vezes, há algumas coisas minhas – ou de gente que conheço – naquilo que escrevo. Considero-me, talvez, uma fotógrafa social e de emoções que usa um bloco de apontamentos para descrever as coisas e colocar questões.

18. Até que ponto aquela crítica de Eduardo Prado Coelho, em 1970, no suplemento literário do Diário de Lisboa, contribuiu para que Alda Pires se afirmasse como um caso poético, nomeadamente com a belíssima crítica ao longo poema «de como vivemos tão bem durante as promessas…»?

Não conheci essa crítica nessa época. Muito mais tarde tomei contacto, já nos anos 80 ou 90, com ela – creio que no JL - mas não ao ponto de senti-la o suficiente para que me influenciasse. O “de como vivemos...” é um exercício que acaba por ser transversal a vários tipos de promessas. Sei que a tentação, quando falamos de promessas, é de associar imediatamente aos políticos. É uma associação fácil, tentadora e perigosa, isso de associar a mentira à política e todo esse jogo de promessas. Sei que não é fácil discernir, nos tempos em que vivemos. O poema acaba por ser um retrato do que nós somos perante as circunstâncias e não exclui olharmos para dentro de nós mesmos quando prometemos coisas com alguma leviandade. Pouca gente escapa a esta transversalidade.

19. Como escreves?

Normalmente no café, em companhia dos cigarros e do meu caderno de apontamentos. Com caneta de tinta permanente. Sempre. Já não sei quem é que dizia que há algo de erótico na escrita com caneta. Com a caneta e com a alma, é claro. Raras vezes escrevo com o cérebro. O cérebro fica para mais tarde, quando edito, em frente ao computador.
20. O que há de cordial desde «de como vivemos tão bem durante as promessas…» a «gostaria que lesses isto antes de adormeceres»?

Nunca persegui a cordialidade. E nem me preocupo em fazer o frete aos chamados “consensos”. Se há poemas meus que provocam, não os escrevo para que provoquem. Não sou uma “rebelde-sem-causa”. Sou rebelde. Mas toda a minha rebeldia assenta em causas.

21. Para que público escreves?

Para quem me lê. Não tenho um público-alvo.

22. E agora somos o público e queremos um poema.

Um curtinho: 

BEIJO-TE

beijo-te
de longe
mas de perto

23. E agora, um verso.

Três versos... Pode ser?
(…) e não me encontrei / busquei-me nos bolsos / e por todo lado (...)

[risos de assentimento]

24. E, por fim, uma palavra.

FIM


2014-08-22

LIMIARES DA ESCRITA: Rodrigo Emílio, que amor não tarda – «As lágrimas ancoradas à sombra do amor» (1964)


LIMIARES DA ESCRITA:
Rodrigo Emílio, que amor não tarda – As lágrimas ancoradas à sombra do amor (1964)

Atrás da singularidade expressiva, e tal propensão era fortemente buscada, irredutível até, não abandona Rodrigo de Mello, Filho (que o pai era também alguém nas letras), depois Rodrigo Emílio, desde estas primícias, a condição dupla de esteta e de interventor sociopolítico permeado por uma axiologia de consanguinidade e de ideologema.
Não espanta, pois, o passo larvar inscrito nos paratextos: trata-se de um livro escrito no sangue, dedicado ao pai e ao seu exemplo de Mártir, de Mestre e de Guia, que lhe ensinara a ver na Poesia a redenção da Vida, bem como, e principalmente, a João de Castro Osório, Mestre, Amigo e Guia, e «à trágica genialidade da sua escrita». Havia este «ciclo lírico», como se anuncia parenteticamente em subtítulo, ganho o «Prémio de Poesia» de 1963 do «Concurso de Manuscritos» do S.N.I..
Identificando as lágrimas com poemas no que estes têm de hipertrofia do sentir (passim) abre-se o macrotexto com um intensíssimo poema de semas próximos da disforia e do insulamento – assim as palavras da confidência poética trazem a morte, o apodrecimento, a amputação e o isolamento onde o choro equivale a «incêndios de água» onde o sujeito lírico destrói a dor. E, no entanto, a composição colaça logo recoloca o tónus poético em ambiência de persistente amor: «Hei de, ainda, andar e andar / E, ao passar no FIM, / Não darei pelo FIM!...» (p. 17).  
Amiúde comovente, este livro de um Rodrigo Emílio nascente contém poemas geniais de contenção, de central enérgica, de poeticidade. Transcrevo, por exemplo, «A asa e a raiz» (p. 20), dedicado ao também importantíssimo poeta José Valle de Figueiredo ( e com que precisão Valle de Figueiredo aqui encaixa!):

Só em Poemas se diz
Porque a Poesia o abrasa
E a sua alma é uma fonte secreta…

(Raiz
Com instantes de Asa,
- O Poeta!)

Derrame sentimental, incontinência verbal emotiva, contenção enérgica, eis algum do travejamento onde participa também um inegável horacianismo. Estoicismo, epicurismo, ataraxia, moral greco-latina, eis algumas outras particularidades que se desprendem de «Desterro azul» (p. 29):

Não falemos. Ouçamos
O silêncio de todo este azul
Que nos envolve. Bebamos
Todo este ouro solar que nos dissolve
E nos bronzeia. Escutemos
As gargalhadas do mar
A brincar com a areia. E brinquemos
Também. Mas sem falar.


Olhando estas ruas da cidade de Viseu, que Rodrigo Emílio tão bem conheceu e calcorreou, é este o silêncio que ouço, que ouço sempre.

2014-08-17

Aquilino: «à sombra de um dos maiores poetas»


Aquilino: «à sombra de um dos maiores poetas»

Em visita à Casa da Beira Alta no Porto, Aquilino Ribeiro (1885-1963) inscreveu no livro de honra da instituição a aposição que transcrevo: «Viva a nossa Beira minha boa mãe material que me deu o primeiro pão e não me matou a rebeldia de serrano». Estávamos no dia 10 de maio de 1963 e Aquilino faleceria pouco mais de uma quinzena depois. As palavras do escritor, das últimas sendo, guardam testemunhalmente uma etogenia. E a rebeldia assumida, na difícil digladiação com as palavras durante uma vida, no engastado fluir do tempo, levaria a que disseminação têxtil do Mestre fosse alvo de classificações só estranhas na aparência: por exemplo, um dos mais esclarecidos hermeneutas da jeira aquiliniana, quiçá o mais incisivo, Óscar Lopes, di-lo «um dos grandes poetas do século XX», e Eugénio de Andrade, poeta maior que sobrepassou tal século, deixou no livro de visitas, volvidos anos, as palavras lapidares que se seguem: «À sombra de Aquilino Ribeiro, à sombra de um dos maiores poetas, tudo é supérfluo».
Mas como foi o início do poeta Aquilino ainda no respaldo do templo supérfluo? Aquilino, como escritor, inscreveu-se no centro da doxa literária em 1913. Colheu mesmo o beneplácito de um escritor polémico bastante para exacerbar um rumo que não há muito tivera uma outra consagração biográfica – se Aquilino não era ainda verdadeiramente um escritor em 1913, era já um homem de ação.  E, de facto, em 1909, o título Aquilino Ribeiro inaugurava a «Collecção de bibliografias dos principaes propagandistas dos ideaes sãos e generosos» sob a designação geral de «Homens de Acção» e com a presuntiva autoria de um indeterminado EU[1]. Louvando-lhe o génio e o estro, o articulista secciona-lhe o íntimo, cavando-lhe «um dos primeiros logares na categoria dos que teem avançado e luctado»[2], justificando o dito com a justificativa que transcrevo: «Porque o Aquilino, apesar dos seus simples 24 annos, da sua educação primitiva, quasi que jesuítica, e do seu feitio esturdio e bohemio, é um espirito de eleição, caracter primoroso, mas principalmente um revoltado sem rebuço nem desfallecimento.»[3] Tal alor de revolta era já o início do fulgor poético que tomaria o complexo verbal do Mestre que ainda não era e lateralmente se anunciava naquela vontade de uma «radical transformação, desde a evolução dos espíritos ao aluir dos alicerces mais solidos do edificio geral». [4] Enfim, como o diz admiravelmente o autor do panfleto, como adivinhação promanando do conhecimento, Aquilino Ribeiro como «escriptor é um bello contista, original e burilador, e como revolucionario um admiravel exemplo.»[5] Estávamos em 1909 – e a poesia fazia-se com atos de uma poesia corporal de dádiva cujos frutos veríamos um pouco à frente.
O monárquico Carlos Malheiro Dias (1875-1941) viria a prefaciar o livro que inaugurava para o mundo a vida literária de um dos nossos mais produtivos e fecundos escritores. Esse paratexto, nem sempre cuidadosamente lido, dimanava de um intelectual que sobrepujava Aquilino em dois lustros e dele se aproximava em tradição pelos estudos no colégio de Santa Quitéria [6] e também pela frequência universitária[7]. Mas não só: o vezo polémico dos banimentos a ambos assistiu e, se as fugas, expulsões, censuras e afrontas aquilinianas são consabidas, o mesmo não se passará com Malheiro Dias antes de lembrarmos, por exemplo, a necessidade que o escritor sentiu de abandonar o Brasil depois da publicação, em 1896, de A mulata e da reação opositiva de vozes fortes como as de Olavo Bilac e Luís Murat[8]; o encontro com o Brasil[9], em épocas diferentes, é também uma atinência entre os dois escritores.
Carlos Malheiro Dias publicará até 1913, para além do título referido, Scenários: phantasias sobre a história antiga (1894), Apontamentos para a história da Real Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência (1895, história), Corações de todos (1897, drama) Filho das hervas (1900, romance), Os Teles de Albergaria (1901, romance), Paixão de Maria do Céu (1902, romance), O grande Cagliostro (1905, romance), Cartas de Lisboa. Primeira série (1904) [1905, crónicas], Segunda série (1905) [1905, crónicas] e Terceira série (1905-1906) [1907, crónicas], A vencida (1907, contos), Quem é o Rei de Portugal (1908), A espada ao serviço do amor e da honra (1912, conferência),  Do desafio à debandada. I – O pesadelo (1912, história). II. Xeque ao Rei… (1912, história), Zona de tufões (1912, história), Em redor de um grande drama. Subsídios para uma História da Sociedade Portuguesa (1908-1911) [1913, história], As inimigas (1913, drama), Entre precipícios… (Crónicas políticas dos últimos tempos) [1913, história] e O estado actual da causa monárquica (1913, história). Sabida que é a simpática receção que Malheiro Dias dispensou à colaboração de Aquilino na Ilustração Portuguesa, não espanta que entre os dois, mau grado a dissensão ideológica, se tenha firmado uma «sólida amizade»[10], para usar a expressão de João Palma-Ferreira. Entre os dois intelectuais haveria uma mútua admiração, não se esquecendo Aquilino de retribuir simpatias, como acontece, por exemplo, com o texto «Malheiro Dias» publicado na revista Atlântida, em 1917, onde deixa codiciosas pistas para trabalhos ulteriores.
O primeiro livro ficcional de Aquilino Ribeiro, isto é, em que ele é o condutor diegético de primeira instância, passados que começavam a ser os tempos das traduções sem dono a que o escritor também se dera, lega-nos nas inscrições secundárias algumas particularidades, a saber:
1.      A autoridade de quem, para qualquer efeito, aparecia dourado ao público pela aura de mais de dez títulos, alguns deles ainda hoje inquestionáveis romances, inscreve-se lavrante desde a capa de Jardim das Tormentas. Aliás uma mirada atenta à semiótica do código oticografemático releva bem o valor de MALHEIRO DIAS face ao autor nascente.
2.      Na página frontal do anterrosto escreve-se a nota genológica «Novelas», sabendo-se que ora e hoje tal designação permite infirmações e convalidações de igual valor e de equipolente alcance teórico.
3.       Anunciam-se, a anteceder a página de rosto, dois títulos que, não tendo sido publicados, pelo menos sob essa designação, constituem ainda assim importante capítulo da enciclopédia simbólica de Aquilino Ribeiro, desvelando vontades e interesses – refiro-me a Hilário Barrelas em Paris – o que viu e ouviu, este «a aparecer em março, e a La révolution portugaise.
4.      No rosto, os grafemas dos dois autores, Aquilino e Malheiro Dias, têm o mesmo tamanho.
5.      A afetuosa dedicatória à família Tiedemann, passo em acordo com o trajeto familiar que Aquilino então escrevia e que passou a desenhar desde a permanência parisiense e os bancos da Sorbonne.
6.      E, por último, o produtivo e controverso prefácio de Carlos Malheiro Dias, com que seguiremos.

Mas vamos então ao preciso momento em que Malheiro Dias inicia o texto prefacial e acaba «de voltar, lentamente, a última página» de Jardim das tormentas como se se «despedisse com saudade de alguém»[11]. Que diz, afinal, tal última página da obra de Aquilino pertencente à narrativa breve «A revolução»? Isto, para que conste:

… Delphos despediram-lhe golpes furiosos de alfange e de machado. A agua coloriu-se e a cauda vascolejante das serpentes, feridas, derribava arcadas e pulverisava mármores.
Morreram homens, mas os homens venceram. E a ilha verde dos Contins e dos Zorn possuiu a Victoria Alada, a Victoria que cantára o triunfo do genio heleno, e cantaria agora a continuidade gloriosa do esforço humano.
A meiga Rosa que perdera José, as mulheres que perderam os amantes, choravam. Os outros erguiam um hossana ás alturas. Zorn, misterioso, murmurou: é a vida! é a vida![12]

E é, no fundo, este explicit aquiliniano de que Malheiro Dias se despedira saudosamente, que nos conduz desde logo a uma constante energética que habita a maior parte da obra do Mestre da Nave e que tantas vezes ressuma no culminar dos textos e narrativas. Tal central de irradiação condensá-la-ei, por razões de acomodação e de método, na estrutura vitalismo aquiliniano e qualquer simples exemplificação pode ser recolhida na repetição final «é a vida! é a vida!».
O prefácio em apreço vem de alguém que, segundo o pensamento estruturado e interior ao métier de Joaquim Paço d’ Arcos[13], é o herdeiro de Eça e entrega, ao exilar-se, o testemunho desse mérito a Aquilino Ribeiro. Não poupa em palavras Malheiro Dias, dizendo a arte de Aquilino suscitadora de «intellectuaes emoções», vestida pela «luxuosa beleza» e arrebatadora até, «quasi como uma mulher que se possui, em cujas temporas e em cujo peito, sob os nossos labios, sentimos palpitar as arterias e arfar os pulmões». Avança ainda aludindo aos «sitios mais bellos» das «trezentas paginas onde mil sabores diversos se misturam»[14]. Proscrito, Malheiro Dias, não esquecendo a divergência e o antagonismo com o prefaciado, para ambos escolhe um lugar comum que é um sítio outro de encontro – o da fé, que, diferente, os liga na ágora da coragem, da opinião e da crença.
E será desse lugar isento que Malheiro Dias ditará ter encontrado nos contos aquilinianos de Jardim das tormentas uma «linguagem vibratil, nervosissima, onde ha cordas sonoras que vibram ás ondulações mais imperceptiveis», soando «como a linguagem de um Cellini da prosa»[15] que era já um dos grandes virtuosos do estilo. Sério consigo porque honesto para com o outro, o autor do romance Paixão de Maria do Céu, desfere, depois de longo excurso que funcionou um tanto como uma captatio beneuolentiae e iluminação das fronteiras e trincheiras ideológicas, um conjunto de setas de perplexidade sobre a construção do jovem escritor que era Aquilino Ribeiro. Aprecie-se o teor dos reparos:
Mas são bem, na verdade, contos todos os seus contos? Não se melindrará a sua presunção, se eu lhe disser que como taes a alguns não considero? Os seus entrechos revelam-se tão frageis que se quebram antes de chegarem ao fim. Pulverisam-se. Lembram-me repuxos de crystallina agua, que no cume do jacto se desfazem numa humida e irizada poeira. A sua acção, como o jorro d’agua , eleva-se impetuosa, mas logo, mal as iluminações dos seus pensamentos a toucaram e a matizaram, dilue-se num nevoeiro radiante. As suas acções são, por vezes, méros themas symphonicos para desenvolvimento de motivos orchestraes.[16]  

Imprecisão genológica, debilidade compositiva, assequencialidade e preciosismo, por exemplo, são notas que alguns leitores menos avisados deverão reter para travar algum euforismo sobre a carta-prefácio de Malheiro Dias, que, dizendo o que quer, não hesita em dizer o que deve. Em texto crítico incisivo sobre a coletânea de contos, António Manuel Ferreira vinca bem os tormentos da narrativa breve do escritor. «Existe nesta distinção entre opulência verbal e fragilidade narrativa», diz o ensaísta, «uma das linhas de força de alguma crítica aquiliniana do século vinte»[17]. Ora, é precisamente essa a pedra de toque de Malheiro Dias.
E tal debilidade leva mesmo o prefaciador a apontar caminhos ao escritor nascente, certo que parecia estar de que o estilista vivia ainda um momento de excesso e desadequação[18]. Assim acontece, v.g., na parte final do texto prefacial, na qual Malheiro Dias refere que quem assim escreveu quatro[19] dos doze contos fica a dever à literatura nacional «um romance regional onde formigue (…) toda a comparsaria rustica da Beira»[20]. Ora isto, em conjunto com o atrás mencionado, não é propriamente um elogio ao contista e muito menos parece ser, para já, um elogio ao futuro romancista que parecia assim estar confinado ao regionalismo. Similar depreensão tivera já António Manuel Ferreira quando, em nota introdutória ao seu ensaio «Jardim das tormentas: os tormentos do conto aquiliniano», escreve, a dado passo: «Ora, não me parece que este apelo ao romance possa ser considerado um elogio reconhecedor das qualidades do contista.»[21] Sem embargo dos muitos louvores, admiráveis, sem dúvida, se atendermos ao facto de estarmos perante umas primícias literárias, Malheiro Dias adianta ainda algum seguidismo do novo ficcionista, assinalando-lhe influências e modismos.
Mas se eu me refiro a eventuais debilidades dos princípios compositivos do conto literário aquiliniano e à belíssima peça prefacial de Carlos Malheiro Dias, nem sempre laudatória e incisivamente crítica, com que Aquilino quis verdadeiramente abrir um trajeto de escritor, digo também que não me sinto, nesse diagnóstico, desacompanhado. Antes de mim, por exemplo, expenderam juízos próximos dos meus um António Manuel Ferreira[22], um Massaud Moisés[23] e um Joaquim Paço d’Arcos, que, muito pouco ou nada citado, defendeu, há mais de cinquenta anos, que o agudo sentido crítico de Malheiro Dias não se inibiu se deixar no paratexto um reparo que se mantém «como principal senão a uma obra que atinge proporções monumentais»[24]. Indisputável ainda é o rigor criticista do professor da Universidade de S. Paulo, que sempre nos foi legando, num misto de admiração e vigilância, importantes assertos e perplexidades sobre o Mestre da Nave quando desapenso do seu filão geográfico. Por exemplo:
Exaurido o filão, porém, o ficcionista emudece, paralisa-se, indeciso ante duas alternativas: ou mudar de rumo, à procura de novos estímulos ou afinar o instrumento do canto e concentrar-se não no canto mas na afinação. Ou seja, hesita entre glosar ao temas citadinos, vinculados a compromissos ideológicos, mas correndo o risco de falhar por se haver proposto uma equação imaginária fora dos quadros naturais em que se movia, como é o caso, por exemplo, de Mônica e Maria Benigna; e desenvolver o aspecto externo de sua fábrica literária, o estilo. Aqui o núcleo de resistência e aqui o seu calcanhar de Aquiles, porquanto nenhum ficcionista resiste ao tempo em razão do estilo.[25]

E convoca ainda Massaud Moisés os apodos de Franco Nogueira e João Gaspar Simões a Aquilino Ribeiro de, respetivamente, «estilista»[26] e mais prosador do que ficcionista[27], não inibindo também o seu contributo inteligente com a classificação de Aquilino de «menos contista que romancista»[28].
«Artista da prosa, Aquilino sistematicamente expulsava a poesia do seu universo estético»[29], escreve Massaud Moisés. Algures admitiu o próprio Aquilino haver na sua obra de tudo, menos poesia. Mas não foi assim. Ao encontrar um veio que persistentemente trabalhou de alfa a ómega, Aquilino Ribeiro construiu um mar vasto que também é poesia. E todos os reparos críticos conhecidos nunca são contestações no todo. Olhando ao centro, que era início de carreira laboriosamente profunda, até um aparente negativo de Agrippino Grieco[30] se transforma em visível fulgor. Poético, pois claro, como um golpe de Eugénio de Andrade. Patético, de força poética, como o afirma a repetição final de Jardim das tormentas («é a vida! é a vida!») parecendo, no caso, exemplificação bastante para quaisquer páginas teóricas de Jean Cohen.



[1] Cf. EU, Homens de Acção – I: Aquilino Ribeiro, Lisboa, Mendes d’ Almeida, 1909. O panfleto tinha como depositário e proprietário Mendes d’ Almeida, sediado na rua Fernandes da Fonseca, nº 30, e fora composto e impresso na Tipografia A. M. Antunes, que laborava na Calçada da Glória, 6-10 e na Travessa do Fala-Só, 1-5. A publicação inclui um texto proemial «Ao leitor» onde se narram os esforços desenvolvidos debalde no sentido de os editores conseguirem um retrato de Aquilino Ribeiro que ilustrasse a edição, mormente os havidos com um dos «mais sinceros e valiosos amigos» de nome Raul Pires e até com «parentes dos mais próximos». Este Raul Pires traduziu, conjuntamente com Aquilino Ribeiro, a obra de João Grave, A Anarchia. Fim e meios, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, Editor, 1907. Esta data aparece na página de rosto e 1909 aparece na capa. 
[2] Op. cit., p. 6.
[3] Loc. cit., p. 7.
[4] Loc. cit., p. 8.
[5] Loc. cit., p. 16.
[6] Aquilino andou por seminários e colégios religiosos.
[7] Malheiro Dias veio a concluir o Curso Superior de Letras, em Lisboa, e Aquilino veio a estudar na parisiense Sorbonne, embora não viesse a concluir a formatura.
[8] Carlos Maul, muito tempo depois, lembrará ainda: «Esse romance é uma ignomínia que o próprio autor, mais tarde, escondeu e excluiu da sua biografia.» (O Globo, Rio de Janeiro, de 11 de setembro de 1957.
[9] Decantam ainda no nosso cérebro as talvez já titubeantes mas incisivas palavras de Aquilino Ribeiro vindas a lume na revista Brasil (nº 23, Lisboa, Edição do Sepro da Embaixada do Brasil em Lisboa, janeiro de 1964, pp. 1-2), com o título «Últimas palavras de Aquilino Ribeiro sôbre o Brasil» e de que destaco as frases subsequentes: «O mundo do futuro terá aqui um grande laboratório de civilização.» (p. 1) e «Ao Brasil diria que os meus votos são que se torne depressa a grande potência para que está fadada pelas dimensões do território, originalidade em muitos sectores da arte e pelos altos destinos universais. Portugal é um tanto o seu solar. Se um dia o vir à derive, e o inimigo secular adiantar a garra, que o grande Brasil tenha a sua palavra.»(p. 2). Do tempo do fim, de 3 de março de 1963, o texto dá-nos um caminho que nada tem que ver com outras e constrangedoras sujeições hodiernas. Despedindo-se da vida física, ali pela lisboeta rua António Ferreira (a S. Miguel), nº 7, 1º D, a proposição apresentada é uma profunda e significativa coreografia poética..
[10] Na entrada «MALHEIRO DIAS, Carlos», do Dicionário biográfico universal de autores (Lisboa, Artis – Bompiani, 1976, p. 2002), informa-nos João Palma-Ferreira: «Mau grado as suas convicções monárquicas e o apoio que oferece a Paiva Couceiro, mantém uma sólida amizade com Aquilino Ribeiro cuja primeira obra, O Jardim das Tormentas, prefacia, em 1913.» Certamente por lapso tipográfico diz-          -se O Jardim das Tormentas em vez de Jardim das Tormentas.
[11] Cf. Aquilino Ribeiro, Jardim das tormentas, Paris-Lisboa-Rio de Janeiro-S. Paulo-Belo Horizonte, Aillaud, Alves & Cia – Francisco Alves & Cia, 1913, p. VII.
[12] Op.cit., p. 313. Foi mantida a grafia epocal.
[13] Cf. Joaquim Paço d’ Arcos, Carlos Malheiro Dias escritor luso-brasileiro, separa da revista Ocidente, volume LX, Lisboa, 1961, p. 38: «Antes de se exilar, escreveu Carlos Malheiro Dias o prefácio para o primeiro livro de Aquilino Ribeiro: Jardim das Tormentas, publicado nesse ano de 1913. Hoje, a quase cinco décadas de distância, parece simbólico que o herdeiro de Eça de Queirós, desviado embora, como novelista, para um neo-romantismo historicista, mas, apesar disso, o primeiro dentre os romancistas dessa época que vai da morte do autor de Os Maias ao triunfo de Aquilino – parece simbólico que o grande escritor, ao exilar-se, tenha deixado na pátria esse prefácio, como que a transmitir o facho glorioso que Eça, ao morrer, lhe legara e que ele deixara nas mãos poderosas que durante meio século tão galhardamente e tão alto o têm mantido.»  
[14] Até aqui, todas as citações dizem respeito à página VII do prefácio de Carlos Malheiro Dias da 1ª edição de Jardim das tormentas. Foi mantida a grafia epocal.
[15] Loc. cit., p. XV. Foi mantida a grafia epocal.
[16] Loc. cit., p. XV. Foi mantida a grafia epocal.
[17] Cf. António Manuel Ferreira, Sinais de cinza. Estudos de literatura, Guimarães, Opera Omnia, 2012, p. 365.
[18] E até mesmo aquele passo do prefácio que aproxima Eça de Aquilino me parece afinar pelo mesmo diapasão: «… eu lhe quero mais dizer que outro escriptor ainda em Portugal como o sr. Aquilino Ribeiro não conseguiu surpreender e aplicar os segredos de sua esbelta e fina prosodia e da sua adjectivação elegantíssima á sonora linguagem portuguesa.» (op. cit., p. XVI.)
[19] Os quatros contos eram «À hora de vésperas», «A pele do bombo», «Tu não furtarás» e «O remorso», situados, segundo o índice, do 8ª ao 11ºlugar. Os outros, pela ordem, intitulam-se «A catedral de Córdova», «Voluptuoso milagre», «A inversão sentimental», «S. Gonçalo», «O sátiro», «O triunfar da vida», «O solar de Montalvo» e o derradeiro «A revolução», na primeira edição. A edição corrigida , com trabalho concluído em dezembro de 1922, em Santo Amaro de Oeiras, promove algumas alterações titulares e faz desaparecer «Voluptuoso milagre»: «O sátiro» passa a chamar-se «A tentação do sátiro», «O triunfar da vida» devém «Triunfal» e «O solar de Montalvo» é agora «No solar de Montalvo». Várias particularidades e modificações plasmam agora o teor dos textos. Na nova joeira de 1961, para além de outras alterações, o prefácio de Malheiro Dias para a ser uma «Carta-prefácio», «Sam  Gonçalo» é «Sam Gonçalo casamenteiro», «No solar de Montalvo» passa a ser «Os senhores de Montalvo» e «Tu não furtarás» transforma-se em «Os ladrões das almas».
[20] Loc. cit., p. XVIII.
[21] António Manuel Ferreira, Op. cit., p. 367.
[22] Loc. cit.
[23] Massaud Moisés, referindo-se a Aquilino Ribeiro, fala de uma tendência negativa no escritor que é, nomeadamente quando fora do seu habitat, «a de ser um estilo à procura de assunto» (A Literatura Portuguêsa, São Paulo, Cultrix, 1960, p. 360. Aliás, as ideias de Massaud Moisés sobre Aquilino Ribeiro acabam por ser extremamente produtivas, uma vez que, não lhe limitando o génio e a monumentalidade, afirmam persistentemente um caminho construtivo que acaba, nomeadamente na base de desdobramento e ampliação que é o conto, por oferecer aos críticos algumas debilidades. Mas em que autor não existirão elas?  
[24] Cf. Joaquim Paço d’Arcos, Carlos Malheiro Dias escritor luso-brasileiro, Separata da revista Ocidente, volume LX, Lisboa, 1961, p. 39. Comunicação ao IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, na Universidade da Baía, em 1959. Eis o contexto das palavras de Paço d’Arcos: «O seu agudo senso crítico não se deixa, porém, entibiar pela profunda e confessada admiração e depois de louvar “a linguagem dum Celino da prosa”, que é, “desde agora, um dos grandes virtuoses do estilo”, observa, com pertinência: “As suas acções são, por vezes, meros temas sinfónicos para desenvolvimento de motivos orquestrais”. // O reparo mantém-se de pé, como principal senão a uma obra que atinge proporções monumentais» (p. 39).
[25] Massaud Moisés, O conto português, São Paulo, Editora Cultrix – Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 152. Seleção e apresentação crítica de textos, introdução geral e notas de Massaud Moisés.
[26] Cf. Franco Nogueira, Jornal de crítica literária, Lisboa, Livraria Portugália, 1954, pp. 94-95: «Mas um primeiro contacto com os livros de Aquilino Ribeiro leva-nos imediatamente a uma conclusão: a de que a sua obra se nos impõe, antes de tudo, pelo estilo. Em Aquilino, com efeito, o acto de criação é estilo. Em Aquilino, a realidade corporiza-se em estilo. Estilo no sentido mais profundo e mais complexo: o de envolvimento da realidade circundante numa outra realidade formal independente e pessoal, que sobreleva a primeira e lhe empresta uma cor e um significado novos. Aquilino é, acima de tudo, um estilista.»
[27] João Gaspar Simões, Crítica. I (A prosa e o romance contemporâneos), Porto, Livraria Latina Editora, 1942, pp. 86-87: «Mas voltemos a Aquilino Ribeiro. Ninguém hoje contesta em Portugal esta afirmação: Aquilino Ribeiro é o primeiro prosador português contemporâneo. Mais: Aquilino Ribeiro é um dos maiores prosadores da literatura portuguesa. Ninguém contesta tal afirmação, porque nenhuma pode ser tão facilmente comprovada. Eis o que nem sempre acontece com as afirmações entre nós proferidas. Repare-se, porém, que se afirma: Aquilino Ribeiro é o primeiro prosador português contemporâneo, um dos maiores prosadores da literatura portuguesa. A palavra prosador é a palavra indiscutível nesta afirmação.»
[28] Massaud Moisés, Op. cit., p. 154.
[29] Massaud Moisés, loc. cit., p. 154.
[30] Num interessantíssimo artigo intitulado «Decadência?», Agrippino Grieco refere o seguinte: «Aquilino Ribeiro, que estreou com uma coletânea encantadora, caiu na imitação de Anatole France, num vago diletantismo de palrador de café, de Rivarol de porta de charutaria» (Agrippino Grieco, Obras completas de Agrippino Grieco 1: Vivos e mortos, 2ª edição revista, Rio de Janeiro – São Paulo, Livraria José Olympio Editora, 1947, p. 134).