DUAS DÚZIAS DE PERPLEXIDADES – AVE-AZUL EM CONVERSA COM ALDA PIRES
Diz-me Alda Pires, quando lhe pedia uma fotografia para este grande
momento da revista Ave-Azul e a
câmara preparava já o disparo automático: «Mesmo no que respeita a fotografias,
sou um bocado avessa a isso. Gosto de preservar a minha quietude. Normalmente,
no blogue, uso uma foto de mulheres com quem eu me identifique: Simone de
Beauvoir, Rosa Luxemburgo ou outras». A conversa, essa, fica aí. As coisas
durarão mesmo aquilo que tiverem que durar. Sem encenação de posteridade, eis o
teor de uma conversa sobre o calor de uma mão que é já caminho.
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1. À beira da vida, nascendo na Beira, que moçambicanidade em ti, em ambiência de nomes fortes como os de Eugénio Lisboa, Eduardo Pitta,
Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Grabato Dias, Fonseca Amaral e outros, todos eles
também roídos pela portugalidade?
Alda Pires - De todos os nomes que referes, o de Grabato
Dias é aquele de que mais me aproximo. Não tanto pela África contida nas suas obras, uma
África ambígua pois coexistem nela duas Beiras: a moçambicana e a beiraltina. E
em ambas Beiras também me enquadro, apesar de ter saído da Beira para
Lourenço Marques, hoje Maputo, apenas com dois anos de idade. Há sempre Moçambique
em mim. Logo,
haverá na minha poesia também, apesar de poder não recorrer
aos tons africanos como ferramentas de escrita. Mas, às vezes, lá sai uma ou
outra África numa metáfora, numa imagem, até num cheiro das acácias vermelhas
que nunca se esquecem e que me acompanha quando escrevo. Ainda sobre o
Grabato, um crítico
de Fortaleza,o António Cabrita, considerava o João Pedro
Grabato Dias “um homem com gatos nos pulmões” dada a sua capacidade de
regenerar as personagens de si mesmo.
2. Olhando-te o percurso (que o tens!), sentes-te uma mulher
estimulante ou, pelo contrário, achas-te, um tanto à Nabokov, desinteressante?
A.P.- Essa pergunta é tão ingrata!... Acho que aquilo a que
chamas o meu “percurso” me estimulou a ser quem sou e como sou. Não me acho
propriamente uma pessoa desinteressante. Sem narcisismos nem falsas modéstias, acho
que o interesse que possa eventualmente despertar vale sobretudo pelo facto de
ter sido testemunha de muitas experiências de vida, desde a descolonização, ao
PREC, os anos de chumbo no Brasil e na Argentina. E esses cenários, sim,
considero-os interessantes. É claro que me sinto privilegiada para poder falar
deles com a propriedade de quem osnviveu presencialmente.
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3. Fitando os três lustros de vivência moçambicana sem
interstícios, que ficou disso na tua poesia?
A.P. - O já referido cheiro das acácias vermelhas. O
poeticamente chamado “mercado dos cheiros” num momento posterior, quando já não havia nada
para vender. O pôr-do-sol e os seus tons sobre a marginal de Maputo.
Malangatana, Craveirinha. Os bailes, a marrabenta. E eu, como criança e adolescente
moçambicana, como é evidente.
4. Salienta gostos e aversões e desgostos.
A.P. - Apenas alguns gostos: O por-do-sol e os seus tons
sobre a marginal de Maputo... Malangatana, Craveirinha, Mia Couto, o Eduardo White, que
resolveu deixar-nos há dias. Mas também: o meu amado Jorge Amado, Cândido
Portinari, Eduardo Galeano, Rulfo, Juan Gelman, Benedetti, o Saramago, e o Eça,
a Florbela Espanca, o Carlos Paredes, o Chico Buarque, o Sérgio Godinho, o Zeca,
esse “moçambicano”... Olha, estes gostos são tão lindos que
preferia não falar das aversões e dos desgostos...
5. A escrita é-te uma mão ou um teclado?
A.P. - A mão, decisivamente. O teclado é para registar e
editar o que a mão criou.
6. Na escrita, hesitas ou as palavras brotam, físicas e
ascendentes?
A. P. - O Hemingway recomendava que escrevêssemos ébrios e
editássemos sóbrios. Depende muito: por vezes sai-me tudo à primeira e fica assim
mesmo, sem editar. Outras vezes vejo e revejo, leio outra vez, dou a ler,
procuro opiniões, rasgo, deitofora, vou buscar outra vez ao lixo... Não sou
muito metódica. Funciono com base nas paixões. Na escrita e na vida. E a escrita é vida. As
palavras brotam, normalmente. Os momentos de hesitação são para quando edito.
7. Nabokov lia, escrevia e não falava. E a Alda Pires?
A. P. - Aprecio sempre uma boa conversa. Gosto de ter os
meus silêncios mas também eles são conversas comigo mesma. E nem sempre estamos de acordo.
Aliás: dizem-me os leitores do blogue que a minha escrita traduz aquilo que
as pessoas têm vontade de dizer mas que nunca o fizeram. Sinto que melhor elogio
não poderei ter nunca. Acho que é uma escrita que respira oralidade. Pelo menos
esforço-me por isso.
8. Multímoda, em que trabalhas neste momento, dentro e fora
da poesia?
Escrevi o espectáculo CENAS DE GAJA, um monólogo
soberbamente interpretado pela Daniela Madanelo , com encenação do Carlos
Clara Gomes, para a Companhia DeMente, com quem trabalho desde 2006. Neste momento está na forja o espectáculo MAIS CENAS DE GAJA, uma “sequela” do
anterior. Mas poderá não ser um monólogo. De resto, continuo a trabalhar
como Cenógrafa e Figurinista para diversas Companhias.
9. A entrevista interessa-te ou nem por isso?
Esta entrevista? Ou as entrevistas, em geral? A qualquer das
perguntas a resposta é “sim”. Não se trata duma conversa?
[risos...]
10. A chegada a Portugal em 1974 é um ato revolucionário ou
a revolução está só na poesia?
Na altura, com 15 anos, tive que vir para Portugal
com ao minha família. Agora, acho que no seu sentido geral, a poesia é sempre um acto
revolucionário. Quando cá cheguei senti-me parte dum processo de reconstrução dum
País. E, uma vez que não tive oportunidade de reconstruir Moçambique porque as
circunstâncias da minha vida assim o ditaram, achei decisivo poder ajudar a
reconstruir Portugal. Não foi fácil porque nós, os chamados “retornados”
não éramos bem olhados como gente. E ser-se retornada naquela altura, em
Viseu, era um caso sério, num local que estava ainda tão infectado pelo
fascismo. Pior ainda era ser-se retornada. Nós, as raparigas, pela maneira descontraída como
nos vestíamos ou pela nossa maneira africana de conviver, éramos muitas vezes
consideradas quase prostitutas.
11. Que Coimbra a de Alda Pires?
É uma Coimbra de Repúblicas e sem praxes nem trajes, uma
Coimbra cheirando ainda ao Maio de 68 na sua tardia versão lusa. É uma Coimbra
que respira democracia e não hierarquia. Essa é a verdadeira tradição de
Coimbra... É a Coimbra em que esclarecíamos dúvidas em tertúlias com os
professores no café
Tropical ou no café Moçambique. Era uma Coimbra em que os
rapazes usavam patilhas, bigodes e barbas. Era uma Coimbra das calças
boca-de-sino e duma espécie de flower-power adaptado ao pós-PREC. Era uma
Coimbra em que víamos quase diariamente o Adriano Correia de Oliveira. Era uma
Coimbra linda. Era a minha Coimbra da Clepsidra ou, quando havia dinheiro, do
caril de camarão no Troika.
12. Pseudonímia, desmultiplicação, outramento, Joana
Maldonado… - como se mascara, afinal a mulher e o poeta?
Joana Maldonado foi o meu pseudónimo quando comecei a
escrever em Moçambique. Desde então para cá nunca mais o usei
literariamente. Usei-o noinício da minha carreira como figurinista, no Brasil.
Eu não me mascaro pois nenhum dos meus poemas se refere a mim especificamente. Não
faço nada autobiográfico. Acho que acontece o oposto: algumas das
minhas personagens mascaram-se de mim para sairem “à rua”. Podem, isso sim,
existir situações, circunstâncias, em que posso ou não ser eu. Mas nenhum dos
meus poemas se refere a mim enquanto a entidade que vivenciou o que lá é
descrito.
13. Que explicação para o fascínio sentido por Alfonsina,
Florbela, Parra?
São três mulheres que cantaram a vida e que acabam por
atentar contra ela. Além disso, a obra de qualquer uma delas é sublime. Alonsina
Storney até no seu suicídio foi poética, entrando pelo mar adentro; Florbela é o que
sabemos e Violeta Parra, contraditoriamente, é a autora do fantástico hino “Gracias a
La Vida”. A vida de qualquer uma destas três mulheres é um labirinto intrincado
e sórdido. E heróico, também.
14. A poesia é paciência, voltar a?
A poesia tanto pode ser “voltar a” e isso pode até ser
paciência, como pode ser “ir para” e isso, definitivamente, é impaciência, ansiedade... Mas,
para mim, não é uma catarse nostálgica. É aquilo que eu acho que tenho para
dizer e que não sei dizer doutra maneira sem ser em poesia.
15. Que ciência nela, na poesia?
Acho que seria frustrante encontrarmos uma ciência que
explicasse a poesia. Seria muito redutor. Acho que a poesia é um acto de amor. Está no
domínio do emocional e não do racional. Não tentemos também reduzir a
poesia à estética. Porque não o é. Toda a estética é definida em função da obra
e não o contrário.Quem faz o contrário é formalista. Como definimos a estética
dum sentimento? É impossível.
16. Depois da paixão parisiense, que lugar ocupa em ti a
marginada Judith Teixeira?
Ocupa um lugar bastante importante pois trata-se duma mulher
de coragem que resolveu, na sua época, em Viseu, assumir a sua orientação
sexual. Também foi um acto heróico. Agora, ela não escrevia bem por ser lésbica.
Ela escrevia bem porque escrevia bem. Há uma outra vivência diferente tanto no caso
dela como o meu, pois em determinado período partilhei a vida com uma mulher, mas
não foi isso que me capacitou para escrever. Eu não amo géneros. Amo pessoas.
17. E quanto de memória não é água da tua escrita?
É evidente que, por vezes, há algumas coisas minhas – ou de
gente que conheço – naquilo que escrevo. Considero-me, talvez, uma fotógrafa
social e de emoções que usa um bloco de apontamentos para descrever as coisas e
colocar questões.
18. Até que ponto aquela crítica de Eduardo Prado Coelho, em
1970, no suplemento literário do Diário de Lisboa, contribuiu para que Alda
Pires se afirmasse como um caso poético, nomeadamente com a belíssima crítica ao longo poema
«de como vivemos tão bem durante as promessas…»?
Não conheci essa crítica nessa época. Muito mais tarde tomei
contacto, já nos anos 80 ou 90, com ela – creio que no JL - mas não ao ponto de
senti-la o suficiente para que me influenciasse. O “de como vivemos...” é um exercício
que acaba por ser transversal a vários tipos de promessas. Sei que a tentação,
quando falamos de promessas, é de associar imediatamente aos políticos. É uma
associação fácil, tentadora e perigosa, isso de associar a mentira à política
e todo esse jogo de promessas. Sei que não é fácil discernir, nos tempos em que
vivemos. O poema acaba por ser um retrato do que nós somos perante as
circunstâncias e não exclui olharmos para dentro de nós mesmos quando prometemos coisas
com alguma leviandade. Pouca gente escapa a esta transversalidade.
19. Como escreves?
Normalmente no café, em companhia dos cigarros e do meu caderno
de apontamentos. Com caneta de tinta permanente. Sempre. Já não
sei quem é que dizia que há algo de erótico na escrita com caneta. Com a
caneta e com a alma, é claro. Raras vezes escrevo com o cérebro. O cérebro fica
para mais tarde, quando edito, em frente ao computador.
20. O que há de cordial desde «de como vivemos tão bem
durante as promessas…» a «gostaria que lesses isto antes de adormeceres»?
Nunca persegui a cordialidade. E nem me preocupo em fazer o
frete aos chamados “consensos”. Se há poemas meus que provocam, não os escrevo
para que provoquem. Não sou uma “rebelde-sem-causa”. Sou rebelde. Mas
toda a minha rebeldia assenta em causas.
21. Para que público escreves?
Para quem me lê. Não tenho um público-alvo.
22. E agora somos o público e queremos um poema.
Um curtinho:
BEIJO-TE
beijo-te
de longe
mas de perto
23. E agora, um verso.
Três versos... Pode ser?
(…) e não me encontrei / busquei-me nos bolsos / e por todo
lado (...)
[risos de assentimento]
24. E, por fim, uma palavra.
FIM
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