2004-03-31

eis a superfície intensa do passado. silêncio quente que vai mostrando. pequena nascente do mel, luz opaca vinda de 1900. leitor atento, repara na humidade do tempo e nos fungos da devoração. é esta a fonte transformada que já somos. eis o lume em tua casa.

2004-03-28

Volto ao passado e aos fulgurantes anos de 1899-1901. Assim:

DE AVE AZUL OU DO OBSCURO DOMÍNIO: UMA REVISTA DE VISEU QUASE ESQUECIDA (I)


No dia 15 de Janeiro de 1899, saiu a lume, em Viseu, uma revista literária de arte e crítica, sob a direcção de Beatriz Pinheiro e Carlos de Lemos. Tal facto, o aparecimento de uma publicação de teor artístico na cidade de Grão Vasco, nessa dobragem de século, "caso é para surprehender mesmo quem use antaglypho" (Ave Azul , nº1). E é-o ainda hoje, volvidos cem anos sobre esse esforço pioneiro, único e, diga-se, irrepetível.
Essa revista, sem a inspiração do lucro ou a mania da celebridade, não obedecendo a quaisquer escolas literárias, pretendeu "gorgear a sua canção de sonho; ou melhor: realisar o sonho da sua canção."(Ibid.) E assim Ave Azul abriu as asas, "confiadamente, ao sol de Deus, no ceo azul como ella, acima das impuresas da terra, acima das paixões do homem, acima das miserias do seculo - aethere puro ..." (Ibid.), e voou com a ave de Minerva por dois intensos e fecundos anos.
Ainda na mesma nota de abertura, o poeta Carlos de Lemos anuncia de forma clara que Ave Azul é uma revista de arte e crítica, onde se recolherão versos, prosas e rudimentos de estética.
Face ao expendido, que importância terá tido ou poderá ter esse projecto, que justifique esta reaparição de um ruído de poucos conhecido?
Analisando rapidamente o trabalho então desenvolvido nesses dois anos, pela compulsão dos textos originais e originários, diremos que o primeiro fascículo da Série 1.ª de 15 de Janeiro de 1899 contém o manifesto de acção assinado por Carlos de Lemos, aberto ao eclectismo literário finissecular e à perenidade da memória e do sonho. Sem teorias da arte por que terçar senão as do bom gosto, este primeiro número encerra, para lá dos predominantes textos dos directores - destacam-se, por parte de Carlos de Lemos, os textos "João de Deus", "A Pintura e a Escultura em Vizeu" e a atenção prestada aos lusófilos e à bibliografia epocal, e, da responsabilidade de Beatriz Pinheiro, a parcelar incursão lírico-dramática "Anhelia" -, a presença importante do" “Musset português" Fausto Guedes Teixeira, com o poema "O Nosso Lar", composição do livro no prelo Esperança Nossa. O 2º número traz-nos, na honrosa coluna "Salla de Visitas", as participações líricas dos conceituados Eugénio de Castro ("Epigramma"), Manuel da Silva Gaio ("Canção dos tristes amores", do livro nascente Mondego ), Carlos de Mesquita ( poema que, sob o influxo de epígrafe verlainiana, se inicia com o verso "O ceu de perola velado") e Afonso Lopes Vieira ("0 meu Epitaphio"). Adentro do escopo crítico, é justo que realcemos ainda a atenção dedicada por Beatriz Pinheiro ao livro de contos de Ana de Castro Osório Infelizes e por Carlos de Lemos aos Versos Lusitanos do já citado Afonso Lopes Vieira. O 3º fascículo encerra um fragmento do romance no prelo Ambições de Ana de Castro Osório, um poema intitulado "Beijos" dedicado à escritora de Mangualde por Paulino d' Oliveira, seu marido, e a recensão de Carlos de Lemos a Saudades do Ceo de Eugénio de Castro. Avançando um pouco, o nº 5 da revista, com matéria defluente do exemplar anterior, conclui a breve narrativa "Vida e morte de Santa Affra" de Henrique de Vasconcelos, mostra o interessante poema de Carlos de Mesquita "Dança macabra", propõe, dentro da nova secção "Galeria Feminina", um soneto de Amélia Janny - poetisa que, no dizer de Costa Pimpão em Gente Grada, foi "muito conhecida de várias gerações que passaram por Coimbra" -, a par de duas outras escritoras menos conhecidas (Rosina e Florência Pereira de Moraes), reage ao quadro "Depois da refeição" do pintor Almeida e Silva através de um texto sin-cero de admiração de Beatriz Pinheiro, destacando-se ainda, sob a égide do título en-globante "Poetas da Beira ", o soneto “Voz do Céu" de Álvaro de Albuquerque e o poema coado de simplicidade "Pão de Amor" da autoria de António Correia d' Oliveira.
O 6º fascículo vale desde logo pela presença, na sua "Salla de Visitas", de três poemas de Camilo Pessanha, sob a designação genérica de "Lirismo Fruste", e assinalados com aquele "Macau, 1895", bem como pelos textos de Carlos de Lemos: o primeiro, o poema "Estrela d'Alva", a completar em próximo número, e o segundo, a recensão ao livro Esperança Nossa de Fausto Guedes Teixeira. O nº 7, na senda feminina, que é, aliás, cada vez mais uma preocupação da revista viseense, encerra um interessante conto de Beatriz Pinheiro intitulado "O Crime" e dois estimáveis sonetos de Theresa Luso ("Confidente" e "Crepusculo e alvorada"). Nos fascículos 8 e 9 desta primeira série colaboram ainda Afonso Lopes Vieira com o poema "A Dama Pé de Cabra", Eugénio de Castro com "Odes de Horácio" e o director Carlos de Lemos, que pela primeira vez deixa a "Chronica" de entrada a Beatriz Pinheiro, participando com um excurso recenseador sobre obra de Severo Portela A Crença de Anthero , autor este que o director de Ave Azul reverenciava, como facilmente se depreende do seu primeiro livro Miragens (1887-1891), publicado em 1893 pela Universidade de Coimbra, que reproduz uma carta de Antero de Quental a si dirigida e se inicia com o conjunto de poemas "Antherianas". A revista nº 10, prosseguindo agora com editorial de Beatriz Pinheiro, tem em si, entre outros, textos de Henrique de Vasconcelos ("O terror da Morte"), de Júlio de Lemos (“Na alcova de Esther") e de Carlos de Lemos ("A Emancipação da Mulher"). O fascículo seguinte, o nº 11, contém um "Sonnet d' Automne" de Philéas Lebesgue e uma estimulante polémica sobre a emancipação da mulher. O último fascículo do ano e da série de 1899, com regresso de Carlos de Lemos à "Chronica" inicial, desenvolve-se sob toada natalícia e aborda a personalidade poética de João Lúcio. E assim, com as omissões e os subjectivos destaques que um trabalho de desvelamento como este comporta, se cumpriram em quinhentas e setenta e seis páginas os voos desta debutante Ave Azul finissecular.
O ano de 1900 viu nascer a 2ª série de Ave Azul: os fascículos 1 e 2, que saem em conjunto, encerram uma empenhada "Chronica" de Beatriz Pinheiro de Lemos sobre o estatuto da mulher, os poemas "A Sombra" de João Lúcio e "Hora inefável" de Carlos de Lemos, importantes textos do escritor nascido em Lalim de Tarouca sobre Almeida Garrett e a emancipação da mulher, bem como um indicioso registo bibliográfico sobre obras saídas ao tempo (Alma Infantil de Ana de Castro Osório e livros de poesia de João de Barros, Cândido Guerreiro...); o fascículo 3º, de Março desse ano, abre com a célebre crónica de Carlos de Lemos sobre Oaristos de Eugénio de Castro, seguindo-se, no modo narrativo, "A Torre" de Henrique de Vasconcelos, no modo lírico, "Trovas" de Maria Veleda, e ainda, ambos por Carlos de Lemos, a recensão ao livro Mondego de Manoel da Silva Gaio e um importante texto polemizante sobre a emancipação da mulher que deverá ser apreciado em continuidade desde o final da 1ª Série; o exemplar de Abril continua o texto de Henrique de Vasconcelos, volta ao tema do emancipalismo feminino com Beatriz Pinheiro e veicula uma reflexão de Maria Veleda sobre Cândido Guerreiro; a revista n° 5 abre com uma crónica de Carlos de Lemos sobre o feminismo e faculta a "Salla de Visitas" a Maria Veleda, que aí publica "Trovas para acalentar"; no fascículo 6, com crónica de Beatriz Pinheiro, destacam-se a narrativa de Ana de Castro Osório "O Magusto", poemas de Pinho de Almeida e de Afonso Lopes Vieira, recensões a livros deste último (O Meu Adeus), de Eugénio de Castro (Constança ) e de António Correia de Oliveira (Antes do Fim do Dia ), bem como a continuação da polémica emancipalista desta vez assinada por Beatriz Pinheiro; a revista 8-9, de Agosto-Setembro, com Carlos de Lemos a assegurar a "Chronica", transcreve "A Philosophia da Natureza dos Naturalistas" de Antero de Quental, reinscreve o nome colaborador de Afonso Lopes Vieira, volta à carga com" A emancipação feminina" de Maria Velleda e Carlos de Lemos publica, adentro do modo lírico, "Palingenesia" e "Vox rerum"; a penúltima revista, constituída pelos fascículos 10 e 11, de Outubro e Novembro de 1900, convoca os nomes de Manoel da Silva Gaio, João e António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Júlio de Lemos, Fausto Guedes Teixeira, Roberto de Mesquita, Carlos de Mesquita, Gomes Leal ("Carta Preambular" sobre o livro Poema do Lar de Agostinho de Oliveira) e Almeida e Silva ("Um quadro da escola de Grão Vasco"), não sendo também despiciendo para a compreensão da recepção epocal o "Registo Bibliographico" com recensões de Carlos de Lemos a Dôr e Vida de Tomás da Fonseca, a Agonias de António Cardielos ou a O pomar de frutos, de João de Barros; por fim, a revista nº12, de Dezembro de 1900, abre com uma crónica assinada pela direcção que repõe na lembrança toda a actividade dos dois anos de Ave Azul , convocando para este último voo nomes como os de Carlos de Mesquita, João Correia de Oliveira ou Álvaro de Albuquerque. Por sobre as setecentas e vinte páginas publicadas em 1900 caía o tempo do fim e do silenciamento.

Por tudo o que atrás se disse, e como súmula do conteúdo percorrido, é justo concluir-se que:
a) a revista teve colaboradores nacionais de méri tos confirmados ( Afonso Lopes "íeira, Ana de Castro Osório, .\ntónio Correia de Oliveira, Ca!nilo Pessanha, Carlos de .\lesquita, Eugénio de Castro, Gomes Leal, Guedes l'eixeira ou M. da Silva Gaio são aqui mera exemplificação) e foi participada por autores estrangeiros (":.,ry René d'Yvermont, Gaston Fafet, ,\larc-Lcgrand, Philéas Lebcsque, Rafacl Altamira ou Thomazo Cannizzaro...);
b) em Ave-Azul terão colaborado ccrca de sessenta autores, num labor que ultrapassou o milhar de páginas (1296 pp.);
c) a publicação viseense teve, na 1.. série, as secções "Chronica", "Poetas da Beira", "Salla de Visitas", "Artes & Letras", "Portugal Lá Fora", "Registo Bibliographico", "Galeria Feminina", "Revista das Revistas" e "Carteira de Ave-Azuf', com as inovadoras "Flores Exoticas", "Bibliographia Infantil" e "LJ'ra Coimbrã", a partir da 2. série;
d) Ave-Azul teve um papel importantc, nesse virar de século, no panorama literário nacional, tendo ficado arquifamoso aquele texto de Carlos de I~emos, de pendor ensaístico, sobre o "nephelibatismo" ( Ave-Azul, II Série, Fasc. 3, Março de 1900. Sobre esse texto fala, por exemplo, João Gaspar Simões, na obra citada infi.a , a páginas 31 e 44).

I. Mas, afinal, que impacto ou repercussão teve esta actividade na crítica literária e nos estudiosos, desde então até aos nossos dias? Terá sido o projecto de Beatriz Pinheiro e Carlos de Lemos um enformador da literatura cinzenta, voz inaudível e provinciana espartilhada pelo mau gosto e pela impreparação? Ou, pelo contrário, uma actividade literária no sentido do critério e da qualidade?
Sem avançarmos para já quaisquer valorações axiológicas, socorrendo-nos de alguma bibliografia, de fácil acesso aos curiosos pela coisa literária , e conservando a diacronia de publicação, avançaremos dizendo que existem referências à revista de Viseu em:
2 . Por tudo o que ficou dito, e concluindo-se do interesse da publicação, espera-se que a originária Ave-Azul , com as suas duas séries, venha a merecer um trabalho de especialistas - pede-se urgentemente uma edição facsimilada... (ela estará aí, penso) - que definitivamente corte com um horizonte de memória lateral e esfumada. Provado ficou, assim o esperamos, que nesta Ave habita uma literatura por redescobrir. E assim, nesta arqueologia do conhecimento, se cumpre, no sentido de Coleridge, a possibilidade do regresso a Deus. Mas, se tudo permanecer na sombra, no reino do obscuro domínio, como falar dela e dos raios reflectidos?

2004-03-26

hoje lembro o passado. verão de 1998: o nº 0 de "Ave-Azul", ainda jornal. o editorial, programa de uns tantos, dizia:

"Este jornal, eco de um século"

"De rumorosas águas e baixios sombrios arranca agora esta ave. Elemento-água, como a própria vida, incorpora o éter dos voos por fazer. De si sopra uma voz antiga, de um Carlos de Lemos e de uma Beatriz Pinheiro, patronos desta velha forja, esquecida, obscuro domínio de uns quantos, brisa emocionada das flautas dos pastores sicilianos.

Ave, cessa o teu sono secular. Seremos a viagem que quiseres. Este é um espaço teu, animal exausto, redivivo, gume feérico no restolhar da sílaba, silêncio claro dos poetas de sempre.

Azul te seja o horizonte, ouve-nos, "que o dia te seja limpo", que do teu silêncio se construam as páginas de todas as artes, que de ti brote a dança do encantamento.

Ave-Azul, sopramos-te, agora..."

Eis o sumário do publicado:

António Manuel Ferreira, "Duas personagens de <>: Vénus e Baco" (ensaio).

Aiam Otsuaf, "Machina Mundi" (ensaio).

Anabela Ferreira Borges, "Beijos de amor" (trad. do poema "Vivamus, mea Lesbia, atque amemus" de Catulo).

Teresa Meruje, "D. Miguel da Silva" (divulgação).

Olga Albuquerque, "Os Nossos Sinos" (poesia).

Afonso Labatt, "O poeta irónico", "Nítido Inverno" e "Passado sem futuro" (poesia).

António Gil, "O sol saltou sobre a cidade"*, "Caminhando só sobre a minha última", "Ainda é possível reconstruir", "Reflectindo cheguei a este ponto" e "Uma manada de potros selvagens se alvoroça".

* O sol saltou sobre a cidade
e afogou-se no mar.

Ao contrário dos outros cegos
ainda vejo o mundo
como se o pudesse tactear.

José Carlos Seabra Pereira, "Carlos de Lemos: a obra poética e a acção literária" (ensaio).

António Fonseca Caloba, "Papel pensativo", "Vida de nadas", "Mãos despidas", "Palavras floridas" e "Soneto incompleto" (poesia).

Paulo Neto, "Mário Cesariny de Vasconcelos" (ensaio).

Martim de Gouveia e Sousa, "António de Albuquerque: o nobre revolucionário arrependido" (ensaio).

António Fonseca Caloba, "Pedinte..." (conto).


Acaba a publicação com um dito de Frei Johan Alvarez, assim:

"O que vos parecer digno
de reprensom ou de coregimento
seia posto a minha inorançia e sinpreza e non
a outra maleçioso engano."

Tal a condição humana.

azul e uma língua bífida. afinal, fado alexandrino vindo dos pastores sicilianos: "Por uma perna me agarras, a meio / da noite que se parte em mil bocados, / e embora durma sei que estou desperto / noutra ruga do tempo, ondes existes." (António Franco Alexandre, "Duende")
é da ruga do tempo a viagem que começa. do tempo aberto começado. espera...

2004-03-25

azul e uma língua bífida, digo.assim, fado alexandrino e sopro sonetista das velhas flautas sicilianas: "Por uma perna me agarras, a meio / da noite que se parte em mil bocados, / e embora durma sei que estou desperto / noutra ruga do tempo, onde existes." (António Franco Alexandre, "Duende")
partimos da ruga do tempo, sem alarde, explosão dentro do corpo duradoura. afinal três inimagináveis séculos aqui connosco, leitor remoto. espera, talvez amanhã...

2004-03-24

o corpo incha contra a lama que o envolve. com antónio pedro, digo que a história que vou contar é apenas uma narrativa. Vinda da velha casa, quente, fundamente ardente. em breve, a história da poesia. Ou melhor, a história da literatura contada por uma novíssima ave, também azul.

2004-03-23

de novo, cheio. a melancolia do conseguimento cai no corpo.

2004-03-22

a literatura começa aqui. exige o acto atenção segura. desconfias? breve, essa qualidade, cede ao momento e dirás ter visto o início colado ao tempo.
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