2014-09-28

«Oásis»: Da dignidade estética, da poesia de António Gil


Da dignidade estética, da poesia de António Gil[1]
«Oásis os lugares e instantes sitiados de trevas, de areias
                                                        escaldantes, de água salgada, de ruidosa realidade:».
                                                                                                             (António Gil, Oásis.)

Às vezes, os dias gastam-se, sem rebentação, sem líquidos significativos. Outras vezes, poucas, são fundas esteiras de luz que nos trazem as melhores palavras. Oásis é o que é, sendo um luxo, uma gritante partida por dentro do tempo, uma boca líquida dizendo o breve nome da poesia que é.
Eu gosto desta casa, destas trevas luminosas, escaldantes. Afundemo-nos aqui neste oásis, habitação construída em memoriais corredores, fundos, abertos, aéreos, líquidos, longínquos por estarem perto, sonhados porque vistos na torrente do sangue.
Nos lábios, o mar na boca diz ser viagem, rebentação no corpo e relógio que a água sempre é. Este oásis é distância e sonho, é sede e fastio de maturidade que não sabe outra estação - «recolher o mar como uma criança», diz o poeta.
Aqui o tempo é isso – a infância espalhada nas ruas, as flores nos dedos, o funil do tempo rindo em baixo, no doido carrocel dos lugares onde tudo se guarda. E também as linhas de sal, as memórias vindas das marés, o sal pousado nos cafés da restinga.
Em Oásis, os lugares são de poesia, de ausências ditas, de viagens feitas e desfeitas, de exílios e abandonos. As palavras são também muros que se desvelam, semas que se adentram na casa adentrando-nos num mundo onde os novos e raros vocábulos explodem. Novos e raros, repito, mas sendo os mesmos, isto é, tudo e nada, o mundo.
Um outro pressuposto aqui deixo, vindo de Baudelaire. Aquele que diz a dignidade estética que habita uma poesia, esta, que um dia se tornará antiguidade pela sua modernidade extrativa tão arrebatadora. E isto é dizer-se estarmos perante uma poesia que não pode ser alugada, que rói já o centro literário.
É evidente que o espetro do erro, quando se lê e conhece do autor mais de dez títulos poéticos, é um saboroso estar no mundo em face do poeta António Gil, que há muito insisto surpreendentemente em ter a pretensão de conhecer. Onde, então, a sua verdade original? Está nisto, no pó das palavras, que olhamos, sentimos, escutamos, apreendemos e em nós aparece como fogueira. É a voz do tempo que fala, nas suas múltiplas escorrências, nesta comunhão que se nos ata.
Um último luxo, que é primeiro, destaco agora. Ele inscreve-se, por exemplo, no preceito borgiano[2] verdadeiramente assumido de que «os livros oferecem céus», como se lê desde o início:

 Minhas flores de infância aí jazem insepultas na penumbra dos
livros e suas pétalas estiolam, ardem secretas nos intervalos dos
capítulos, atrás das lombadas ainda cuidadosamente oblíquas...

E, já agora, lembro um outro início, vindo de 1981, que aqui colo, passados mais de 33 anos: «Trouxeram-me as palavras / É quase um abismo ser eu // É inútil pensar / Sigo o caminho das palavras». E seguiu, digo eu, e sabemos nós.
Conatural aos livros e às palavras, António Gil não se explica, lê-se. A sua poesia faz rizoma com o mundo dizendo-lhe o silêncio que neste Oásis se ouve. Uma multiplicidade de silêncio, aliás, com territórios e desterritórios, e espantosas linhas de fuga. Cartografando, esta escrita é – para ouvir e comer sem que isso a signifique. Como elo, este silêncio ouve-se – aqui.
viseu, 26 de setembro de 2014 / martim de gouveia e sousa


Bibliografia de António Gil

impressa

António Gil ( com António Manuel), Poesia nascente, Viseu, Edição dos Autores, 1981.
António Gil ( com Jorge Henrique), Ex passos, Viseu, C.D.C., 1983.
António Gil, a céu aberto, Miraflores, Difel, 2002.
António Gil ( com João Pedro Domingos d’ Alcântara Gomes),  filigrafias, Viseu, edição dos autores, 2002. Grafismo de Eduardo Araújo.
António Gil, Canto desabitado, Viseu, Ave Azul, 2005.
António Gil ( como Nioto Jiang), O jardim das oito pedras, Coimbra, Areias do Tempo, 2008.
António Gil, Indústrias do absoluto, Coimbra, Areias do Tempo, 2010.
António Gil, Obra ao rubro, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2012.
António Gil, Oásis, Viseu, Edições Esgotadas, 2014.

para publicação

António Gil, do corpo contíguo.
António Gil, Ofícios da insónia.
António Gil, Ofícios da insónia. Incursões * guerrilhas * despojos.
António Gil, Restauros.
António Gil, Trânsitos.


Alguma bibliografia sobre António Gil

CALEMA, José, «À maneira de prefácio», in Poesia nascente, Viseu, Edição dos Autores, 1981, pp. 5-6.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «Uma história da habitação: o tempo todo de António Gil», in http://aveazul.blogspot.pt/2006/04/uma-histria-da-habitao-o-tempo-todo-de.html, 20 de abril de 2006.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «António Gil e a céu aberto: para além do poema», in http://aveazul.blogspot.pt/2006/07/antnio-gil-e-cu-aberto-para-alm-do.html, 17 de setembro de 2006.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «Sobre um livro de António Gil: Umas poucas palavras de um editor sem nome», in http://aveazul.blogspot.pt/2009/05/sobre-um-livro-de-antonio-gil-umas.html, 24 de maio de 2009.
GOUVEIA E SOUSA, Martim de, «Oásis de António Gil: samar & morfologia», in http://aveazul.blogspot.pt/2014/09/oasis-de-antonio-gil-samar-morfologia.html, 29 de setembro de 2014.




[1] De António Gil, conheço, sem garantir a exaustão, os seguintes títulos: obra impressa - (com António Manuel), Poesia nascente, Viseu, Edição dos Autores, 1981; ( com Jorge Henrique), Ex passos, Viseu, C.D.C., 1983;  a céu aberto, Miraflores, Difel, 2002; ( com João Pedro Domingos d’ Alcântara Gomes),  filigrafias, Viseu, edição dos autores, 2002; Canto desabitado, Viseu, Ave Azul, 2005; ( como Nioto Jiang), O jardim das oito pedras, Coimbra, Areias do Tempo, 2008;  Indústrias do absoluto, Coimbra, Areias do Tempo, 2010; Obra ao rubro, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2012, Oásis, Viseu, Edições Esgotadas, 2014. para publicação - do corpo contíguo; Ofícios da insónia; Ofícios da insónia. Incursões * guerrilhas * despojos; Restauros; e Trânsitos.
[2] Em entrevista, Jorge Luís Borges reconheceu ser todos os livros que lia.

2014-09-27

«Oásis» de António Gil: samar & morfologia


Oásis de António Gil: samar & morfologia

Não temendo dissídios, eis que a poesia de António Gil, passadas mais de três décadas sobre as primícias literárias, entra no confronto titular e na digladiação canónica, arrastando, neste título de linhagem áurica e geográfica, outras titulações e inscrições para novos lugares. Afinal, nas correntes da literatura portuguesa outros Oásis houve que a minha memória guardou: o centenar de João Maria Ferreira, de 1912; o já também longínquo de Manuel Pedroso Gonçalves, de 1957; o Oásis branco (1991), de António Ramos Rosa; o de António Franco Alexandre, de 1992; essoutro de Albino de Almeida Matos, meu saudoso professor de latinidade, de 1994; e outros, que certamente existirão e o tempo se encarregará de nos mostrar e desvelar.
Não viaja este Oásis na peugada da influência. Sem essa angústia, desvela-se-nos o macro texto em águas fundas, unipessoais, vindas da profundeza do ser, desse poço oficinal que é sangue de raras águas e de muitos líquidos. Fechando-se no lugar, rasurando as distâncias, o texto antonino dá-nos o corpo, os arcanos formativos da construção poética, as águas transformadoras, o sangue emergente.
Mas sentemo-nos neste livro como se estivéssemos em Teîma. Recuemos, podendo, a tempos pré-islâmicos ou islâmicos e despertemos os sentidos rumo ao espírito das pedras, das fontes e das árvores, aos ritos dos ventos e das noites. Ou, então, assentemos com os campaniços de Manuel da Fonseca e debrucemo-nos sobre as fogueiras inibidoras dos frios noturnos. De olhos fechados, bem abertos para dentro, é na folha branca e líquida da noite que se escreve esta velada contra o corpo, na erupção interna dos seus líquidos, no extravasamento das águas mais agudas.
Mais desvelo: «os livros oferecem céus», diz o poeta; samar e morfologia, leio. Luminoso desde o dealbar poético, frenético até de irisação, é neste Oásis acerado em calda antiquíssima que se interpenetram fortes travejamentos feitos de breves trevas e escaldantes e salgados caminhos dentro do eu construtor. No «breve nome» titular, afinal, diverso modo de dizer casa da criação, lugar produtivo e oficina poética, nada se esconde, tudo se mostra de uma interioridade devassada, mostrativa: a memória e as suas descidas líquidas aos tempos vividos e inscritos; as cesuras com as distâncias e os mares sanguíneos da produção; a íntima habitação dos dias e as peregrinações interiores; os sonhos, os sonos e o acordar disso; a rebentação constante de tudo e os mares comunicativos; a explosão criativa contra o tempo imarcescível; o primado das águas e da textualidade; os exílios e as sedes, enfim:

teus lábios aquecem-me quando dizes fogo, como
se soprasses a palavra e logo de luz, quase sem te dares conta,
vestisses a flor doravante acesa. O mesmo efeito quando enches o
peito para dizer luz : logo um oásis cristalino se inflama sob o sol. [13, «Os lugares que não murámos»]

Assim, neste lugar constrito e libertador, junto à clepsidra dos elementos e do frio noctívago, a poesia de António Gil entrega-se ao tempo como objeto maturado. Apelando a uma disponibilidade indisputável, da pele à pele interpela o leitor este Oásis, envolvendo-o, levando-nos, através de diversa mas constante monotonia lírica (esta força patética é essência da poesia, lembre-se), para longes desolados e solitários. Nesta velada, samar e morfologia do eu, rói o tempo :

E não há neste mundo nenhuma terra
nenhuma terra capaz de aliviar este exílio
que nos separa todos os dias, de todos os dias
que nunca mais se deixarão tocar… [30, «Os oásis de silêncio»]

Deserto dentro, tudo se abisma neste amparo que é a poesia feita das melhores palavras.

    Viseu, 27 de fevereiro de 2014
    © Martim de Gouveia e Sousa

2014-09-19

AMARGURA E INCOMODIDADE EM «TIO DEUS» DE URBANO TAVARES RODRIGUES



É um modo único de cativar aquele que encontramos na narrativa breve de Urbano Tavares Rodrigues. Sabendo por dentro da «inutilidade das ruínas», do seu caráter forte poeticamente arrebatador, não há tom efémero que Urbano não desbrave, não existe degenerescência que para ele não tenha a sua utilitas.
Com valência estética, os sinais da ruína são mais do que muitos nessa fabulosa short story rodriguiana que é «Tio Deus» e está integrada no livro de novelas Casa de correcção (1968)[1]. E o início da narrativa breve do autor de Bastardos do sol bem que convoca essa beleza triste e admirável da finitude e da devastação. Veja-se como: «Uma porta imemorável, desviada da sua função, arrancada aos gonzos de alguma velha dependência, e agora mascada pela humidade do jardim, com a maçaneta partida, tapa metade da cisterna sobre a qual as crianças se debruçam»[2].
Esta abertura – soberba, diga-se… - fornece ainda vários elementos de adesão, como, por exemplo, o tom ominoso advindo da «humidade do jardim», a «maçaneta partida» e a cisterna em que as crianças se debruçavam. Tais elementos trágicos projetam-se sobre o todo narrativo e entram até em litígio com a escolha titular, maculando, programaticamente, a bondade do apelido Deus. Arrebatador até dor, esta estória encaixa como luva no diagnóstico do ainda pouco mais do que desconhecido José Saramago que, no prefácio à 2ª edição de Casa de correcção, liberta esta esclarecida admonição: «É preciso resistir à repetida tentação de largar o livro, de pensar noutra coisa, de ir ao jardim mais próximo ver como se comportam as flores. É preciso, por outro lado, não ceder à atracção de desanimar dos homens que habitam e se entredevoram nesta “casa de correcção”»[3].
Muito do que se encontra nesta novela fascinante será, no longo e consistente monumento literário de Urbano Tavares Rodrigues, uma constância. Será sempre de olhos abertos o modo indicado para fender uma escrita duríssima e certeira. Que esperar afinal do defeito educativo daquele tio tão insofrido e tão desumano que não seja dor e incómodo, como, aliás, se anunciava já nos claros omina do incipit  da novela? Este tio, que proibira o baloiço, era assim… um deseducador: «Talvez aquela unha do tio não seja assim tão comprida e tão dura, e tão aguçada, de propósito para os magoar. Mas deixa sempre marcas quando lhes agarra os pulsos. Às vezes faz até feridas na cara, quando ele se zanga deveras e os esbofeteia. D. Laurentina assegura que o tio Alexandre sofre quando se vê forçado a castiga-los: tem bom coração, mas a sua obrigação é educar, mandar, não pode comover-se com ninharias»[4].
O tio não permitia um pio. Havia hora certa para tudo. O tio batia metodicamente. O tio morreu um dia. E então os dois rapazinhos decifram uma aérea sigla que diz «liberdade, iniciação, suplício»[5]. E as lágrimas devêm sangue. Irrompendo o sangue, ao sangue liba o bull-dog do tio que crava a dentuça em Jasmim antes de este lhe desferir certa paulada e o degolar, posteriormente, com uma faca. Tudo uma sangueira – estrangulação de animais, vícios sexuais, insujeição, raivas indomináveis e o mais que se sabe conduzirão os jovens por momentos de desregrada liberdade até ao fechamento vegetal de tudo. A tutora, então chegada, conduzi-los-á, de novo, a uma outra ordem noturna. E, no fundo, a criação monstruosa que aquelas crianças eram promanava de abissais desvirtudes dos adultos. Aprende-se isto aqui, com Urbano Tavares Rodrigues, qual flâmula de perenidade…

Viseu, 19 de setembro de 2014

© Martim de Gouveia e Sousa




[1]Urbano Tavares Rodrigues, Casa de correcção, Amadora, Livraria Bertrand, 1968.
[2] Id., ibid., Amadora, Livraria Bertrand,2 ver.1972, p. 19.
[3]José Saramago, «Leitura incómoda», in Urbano Tavares Rodrigues, Casa de correcção, Amadora, Livraria Bertrand,2 rev. 1972, p. 19.
[4] Urbano Tavares Rodrigues, op. cit., p. 20.
[5] Id., ibid., p. 38.

2014-09-13

Grande literatura: veredas – Aquilino Ribeiro e João Guimarães Rosa


Grande literatura: veredas – Aquilino Ribeiro e João Guimarães Rosa
Nas veredas do entorno literário, há elementos que são clave e para sempre permanecerão longe do leitor. E a leitura, na margem, far-se-á, também produtivamente. Nestas histórias de tapeçaria como são estas, as da leitura, existem modos de entretecer, isto é, de expandir a teia, que, como pedra de toque, são um som de afinidades. Por exemplo, eu sei que Raul Brandão é da «família» de Vergílio Ferreira e que ambos, sem peso de influência, são magnos escritores. E da mesma linhagem são os também portugueses Maria Gabriela lLansol, Almeida Faria e Urbano Tavares Rodrigues, todos eles belíssimos artistas também. Ou seja, uma linhagem não define uma supremacia, mas uma transmissão.
É nas veredas do tempo que me encontro agora. São afinal uma poucas décadas de memória. Poucas, mas fundas. É o tempo de sorver essa crónica romanceada que é A Casa Grande de Romarigães, a quem o professor desse ano ainda propedêutico do meu trajeto especificamente universitário, o Padre Dr. Custódio Lopes dos Santos[1], que aqui também homenageio, não regateava elogios e grande valimento de aprendizagem de escrita. Recordo ainda o interessante trabalho que a turma desenvolveu sobre a obra, tendo eu optado, ao tempo, por uma abordagem histórica, literária e genealógica que agradou ao professor e que ele tão copiosa como competentemente adendou. Sei que esse trabalhinho ainda anda aqui por minha casa no mar vasto das papeladas que sempre vou podando em época de revisitação.
Em vereda próxima, e não perdendo nunca a dimensão do contacto com um grande romance aquiliniano, eis que o jesuíta José Alves Pires[2], professor meu e da turma de Literatura Brasileira, omnívoro e estruturadíssimo leitor, convoca para estudo um escritor, então pouco mais do que desconhecido para mim, de nome João Guimarães Rosa. E então, bem mais do que acontecera com o clássico de Aquilino Ribeiro, percorreu-me um estremeção intenso que, viria a aprender à frente, mais não era do que o célebre pestanejamento de George Steiner, sintoma aferidor da qualidade literária experimentada. Foi um fascínio, um deslumbrante sortilégio percorrer aquele livrinho da coleção «Livros do Brasil» de título Miguilim e Manuelzão[3], com as duas estórias mágicas «Campo Geral» e «Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)», a que juntei, logo de seguida, o monumental e intensíssimo Grande sertão: veredas[4].
Gerando veredas e promovendo escolhas, a literatura mostra-se e esconde-se, tornando moventes os seus objetos, matizando celebrações e promovendo inevitáveis personalidades, seres fortes e catalisadores. Incisas me ficaram essas teias de leitura, como outras que não vêm ao caso. Em período claramente formativo, há poucas décadas, pois, a perquirição por veredas e territórios aquilinianos e rosianos não cessa de dar frutos, não deixando o par de ser interessante, até pela tal linhagem a que atrás aludi e pelos mais que muitos pontos de afinidade.
Já disse várias vezes, no não muito que escrevi a respeito, que o incipit de A Casa Grande de Romarigães é um dos mais fulgurantes de todos os romances de língua portuguesa. Como um livro primordial, o palco da crónica romanceada desvela-se nascente: «O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semirrígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que para-quedista!»[5] Genesíaco, em breve, o palco estaria criado para aquela «certa manhã de Outono» em que um homem «atravessou por ali, e não foi pequeno o seu pasmo»[6].
Na memória, nas suas veredas, decantam e ecoam ainda as palavras iniciais de «Campo Geral»: «Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos».[7] E também as daquele tão aquiliniano início de «Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)», sugestivo até de contacto com O Malhadinhas: «Ia haver festa. Naquele lugar – nem fazenda, só um reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra.»[8] E, por último, em vivo e inciso compartimento memorial, destaca-se, na senda assinalada, a fulgurante entrada do romance epopeico Grande sertão: veredas, de que transcrevo breve trecho: «Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no bairro do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem se ver – se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo»[9].
Foi há décadas atrás, poucas, como disse, e desde então via eu nesta sinfonia de textos de autores diferentes uma música afim, uma energia aproximável. Aliás, mais ou menos por essa época, em artigo muito interessante que José Cardoso Pires fez publicar no Jornal de Letras, Artes e Ideias, sob o título «Aquilino, mestre da nave»[10], lemos, entre outras codiciosas reflexões, que Guimarães Rosa fora leitor de Aquilino e que nenhum outro dos ficcionistas contemporâneos citou. Ora isto entroncava na tal casa comum e nas ressonâncias familiares.
Bem mais recentemente, Alexei Bueno veio a defender que a linguagem artística de  Rosa foi claramente influenciada por Aquilino, informando-nos também que pouco mais do que modesta biblioteca rosiana havia três obras do autor de O Malhadinhas: Uma luz ao longe, Cinco réis de gente e Estrada de Santiago. Ora, ainda segundo o crítico brasileiro: «O Malhadinhas, novela de cerca de cem páginas, que apareceu pela primeira vez neste último volume, Estrada de Santiago, […] é o marco da mais profunda afinidade genésica com a prosa de Grande sertão: veredas»[11]. E Bueno apresenta, de seguida, excertos que coonestam a sua teoria. Influenciando-lhe o português e a sintaxe, ideia que não nego, outras fundas e multímodas influências se terão operado no vasto mundo de Guimarães Rosa. Nascentes e vindas de Aquilino.
Hoje celebra –se Aquilino, o seu nascimento, cento e vinte e nove anos que nascem urbi et orbi nos melhores lugares. O ontem e o amanhã nascem ainda dos seus dedos.

Viseu, 13 de setembro de 2014
©Martim de Gouveia e Sousa



[1] Custódio Lopes dos Santos foi autor de obras como A composição em francês no segundo ciclo do curso liceal, Coimbra, Instituto de Estudos Pedagógicos e Psicológicos, 1960; O regime de classes e o regime por disciplinas no ensino liceal, Coimbra, 1960; Paul Geheeb. Mensch und Erzieher, Coimbra, Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagógicos, 1960 (com Walter Schafer); Instruções para difusão do francês no estrangeiro, Coimbra, Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagógicos, 1962; O intercâmbio de estudantes, a difusão do livro, o intercâmbio de locutores e a criação de escolas de tradução referidos a Portugal e ao Brasil: sua contribuição para a unidade da língua portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1968; A denominação “Adamastor” em Os Lusíadas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984.
[2] José Alves Pires (1934-), para além de dispersa e importante colaboração crítica na revista Brotéria, é autor de livros como: João Guimarães Rosa: uma literatura almada, Braga, Brotéria, 1993; e Grandes espirituais da literatura brasileira, Braga, Faculdade de Filosofia da U.C.P., 2002.
[3] João Guimarães Rosa, Miguilim e Manuelzão, «Livros de Brasil», Lisboa, Edição «Livros do Brasil», s.d.
[4] Id., Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 171985.
[5] Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães. Crónica romanceada, Lisboa, Livraria Bertand, 1957, p. 13.
[6] Id., ibid., p. 16.
[7] João Guimarães Rosa, Miguilim e Manuelzão, p. 7.
[8] Id., ibid., p. 131.
[9][9] João Guimarães rosa, Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro, 171985, p. 7.
[10] José Cardoso Pires, «Aquilino, mestre da nave», in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 17 de janeiro de 1984. Este artigo foi mais tarde integrado na obra Dispersos 1 (Literatura), Lisboa, Dom Quixote, 2005, pp. 131-137.
[11] Alexei Bueno, «Ribeiro, Rego, Rosa e Rocha. Afinidades eletivas», in Isabel Morujão e Zulmira Santos, Literatura culta e popular em Portugal e no Brasil. Homenagem a Arnaldo Saraiva, Porto, CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» - Edições Afrontamento, 2011, p. 36. 

2014-09-08

TRANSVERSALIDADE E DINAMISMO: recensão a «PROBLEMÁTICA DA FÉ E EXPERIÊNCIA CRISTÃ NA LITERATURA PORTUGUESA»


TRANSVERSALIDADE E DINAMISMO:

recensão a PROBLEMÁTICA DA FÉ E EXPERIÊNCIA CRISTÃ NA LITERATURA PORTUGUESA


A interacção entre a literatura e a religião na sociedade contemporânea portuguesa é indesmentível. Um signo se abre, no entanto, desde logo – o da necessária superação do velho olhar dissociativo entre domínios que, em propriedade, se entrecruzam e se afectam, manifestando nos objectos nomeados um modo constitutivo de repulsa ou de adesão. Não há, assim, quanto a este particular, criação literária neutra e semantica-mente intransitiva.
Em perquirição por mar vasto, cedendo à tentação necessária de escolhas e exclusões, que outra via não havia, o estudo do Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira é, a um tempo, lacunar e exemplarmente completo. Quaisquer tentames ensaísticos insertos na temática proposta e levados a cabo até ao momento, penso terem ficado pela abordagem miúda, particular, generalizante ou amplificadora. Lembro, a propósito, pelo valor intrínseco e também exemplificativo das contingências apontadas, as obras de Zacarias de Oliveira (O Padre no romance português, Lisboa, União Gráfica, 1960) e de Álvaro Ribeiro (Escritores Doutrinados, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1965) – nesta, refiro-me ao primeiro capítulo.
Abrindo a segunda metade do século xx na insolvência produtiva do inquietismo do Segundo Modernismo, é também com Moreira das Neves que melhor se tipifica o intimismo  espiritual de experiência cristã. De facto, o escritor religioso que é Padre Moreira das Neves, poeta mais do que estimável desde a década de 30, aparece aureolado nessa dobragem com uma força tutelar. O Senhor D. Miguel Trindade Salgueiro vê nele, por 1953, um ser “iluminado de imagens poéticas”, constituindo-se cada livro seu como “asas de graça que desce de Deus e para Deus eleva” (Prefácio a O Anjo das Três Loucuras: Sílvia Cardoso do Padre Moreira das Neves).
Os “farrapos molhados de sangue” atirados ao papel pelo Padre Moreira das Neves apontam a força da fé e da experiência cristã como caminho de fulguração literária. Referindo-se a Dona Sílvia Cardoso, surte o exemplo do religioso: “Com sete espadas no coração / E sete cruzes pesando aos ombros, / Passou no mundo como um clarão / De luar de neve por entre escombros.” (op. cit., p. 145) 
Tal irisação plasma-se indiciosamente, seis anos passados, na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (1959) de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, pela abertura florilégica com poemas de Sebastião da Gama, adentro do canonismo cristão e católico (“Oração de todas as horas” e “Cristo”), logo avançando para o afim “Apontamento” de Vasco Miranda, pseudónimo do Padre Arnaldo Cardoso Ferreira, poeta e ensaísta que bem testemunha a experiência cristã na literatura portuguesa, seja pela faceta poética (reunida integralmente em Dizer, Amar (1946-1971), 1972), seja ainda pela colaboração diversa em jornais e revistas (Mundo Literário, Quatro Ventos, Árvore, Cadernos do Meio-Dia, Horizonte, Gazeta Literária, etc.).
Não denegando que só uma linguagem mitogénica permite os grandes conseguimentos poéticos, sabendo bem que, no sentido de Álvaro Ribeiro, as autênticas poesias “algo nos dizem da vida do espírito” (op. cit. , p. 19), Seabra Pereira encontra, no quadro das correntes literárias do primeiro quartel do século XX, a linha sobrevivente do espiritualismo religioso, que invade, sem transbordamento, a segunda metade secular. São exemplo da problemática da fé importantes composições de Mário Beirão, nomeadamente as contidas em Mar de Cristo (Lisboa, Portugália, 1957), servindo de suficiente exemplo, pelo inquietismo, a quadra do itálico e inicial soneto “Sobrevivente”: Sobrevivente sou; sobrevivente, / Por vontade de Deus, para cantar / Dum Povo, que se fez à noite e ao Mar, / A sua cruz e a sua glória ingente. Lembro ainda, no rasto do que é também obsessão criadora em Mário Beirão, os dois últimos versos do citado poema, que permitem aferir as confinações rituais e as interpelações produtivas do vate sobrevivente, num explicit que é também “profissão de fé messiânica” (Seabra Pereira): “Porque ajoelhas, humilde e transportado? / Porque o Espírito Santo é ao teu lado!”.
Mas não só. Para esta epistemologia da inquietação religiosa de gosto neorromântico, traz ainda o ensaísta os nomes de Afonso Lopes Vieira, António Corrêa de Oliveira, António Sardinha, Manuel Ribeiro, Teixeira de Pascoaes e Anrique Paço d’ Arcos. Aduz também um descontínuo Américo Durão, que vai encontrando a sua legitimação literária na aproximação ao religiosismo, que, em propriedade, nunca abandonara, tanto mais que o tradicionalismo e a matização do simples se tinham vindo a impor cada vez mais desassombradamente, como o comprova a edição definitiva do Poema de Humildade (Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1964) e aquele desejo derradeiro de se chegar “cantando às mãos de Deus!”. Tal aproximação a uma vivência de espiritualismo católico, entronca – e isso foi codiciosamente entrevisto por Seabra Pereira – com a poesia de Fernanda de Castro, que, vinda de há décadas, persistentemente vaza a segunda parte do século apontando o encontro com Deus. “Encontrei Deus”, dirá a Poetisa, na debutante década de 50, pelo fim de Trinta e nove poemas (1952).
A casa mítica de Deus e da inquietação cristã é motivo de encontro e reencontro com um conjunto de escritores advenientes do Segundo Modernismo. Destacam-se José Régio e Miguel Torga. O primeiro, pese embora a admonição de Branquinho da Fonseca (“ergue a voz aos céus dum Deus que é ainda ele próprio ou que não sabe se existe ou o que é”), transporta consigo, desde as primeiras criações, “uma experiência religiosa nunca rejeitada” (Eugénio Lisboa), que irrompe pelo meio século com a força da inquietação gerada anteriormente, tudo fazendo crer tratar-se de um ser “visceralmente religioso” (João Marques). Aliás, na senda de Antero Pacheco Moreira (1926), César de Frias (1932), Augusto Pires de Lima (1942) ou Guilherme de Faria (1947), Régio (com Alberto de Serpa) antologiará um conjunto de textos tocados de fé, sob o anteriano título Na Mão de Deus (1958), o que é razão não despicienda para a afirmação de uma tendência. Álvaro Ribeiro (op. cit.), depois de afirmar que a preocupação teológica de Régio “está significante no título dos seus livros”, acrescenta que brilha na sua poesia “a verdade de que Deus é transcendente”.  
Torga, por seu lado, “lavra a terra” num mundo seu incómodo e que, ainda assim, não foge ao “discurso teológico” (Fernão de Magalhães Gonçalves”), pese embora a súmula que Seabra Pereira encontra em Zacarias de Oliveira e que este respiga no poema do Diário VII   “Não sei amar, ou amo o que me foge”.
Frisa ainda o ensaísta a centralidade de Vitorino Nemésio nesta adjunção da religiosidade literária, salientando no escritor açoriano a sua doutrinação integral que lhe permite a aproximação ao divino pela reflexão filosófica, pela revelação e pelo misticismo. Mas outras figuras, de “forte manifestação católica de crença perentória e de devoção afervorada” (Seabra Pereira), aparecem convocadas: António Manuel Couto Viana ou Adelino Feijó Teixeira, e mais o padre salesiano Cassiano Nogueira Guimarães, o padre Horácio Nogueira, Miguel Trigueiros, Maria de Santa Isabel, Fernando de Paços, João Maia, S. J. e Nuno de Sampayo – este último, aliás, publicado como outros atrás pelas Edições “Critério” de Braga, manifesta uma elevação religiosa que interessa ver recordada: “Pousas na minha orla como um sopro, / É suave como a amada que não tenho, / Pleno como a pátria que não conheço, / E eu cresço como um choupo na Tua mão / E encho de flores brancas o Teu regaço.” (A Orla e o Tempo, 1956).
Outras e não menores nomes, por obra das qualidades ingénitas, são trazidos para o debate do augusto mistério da fé na literatura portuguesa : são casos exemplares, pela indenegável força canónica, os tavoleiros Sebastião da Gama e David Mourão-Ferreira. Da Távola Redonda ao Graal vai um lastro de catolicização e de alargamento do fluxo da fé literária, despontando vocações literárias ou afinando-se nexos criadores (A. Quadros, Goulart Nogueira, António Salvado, Herberto Helder, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, etc.). Veja-se, por exemplo, como a reavivação do “caos do poeta” que Herberto Helder é passa, não obstante o tom problematizante, pela “empatia profunda  e uma comunhão de sentidos entre as ideias que norteiam o livro bíblico” (J. Amadeu C. da Silva) e Os Selos
Leitor íntegro, escutador atento e sensível, Seabra Pereira avança pelas décadas poéticas com a mestria de quem conhece os lindes de uma ética cristã e não se exime à formulação interpretativa. Tirando consequências, a hermenêutica seabrina corta década a década o tecido poético, gerando em cada encaixe novas interpretações e novos laços de fé. Não havendo leitura sem pré-conceito (Gadamer), e tal nota seria aqui dispensável, cito, sem particular norte, alguns passos luminosos a que não aludi na diacronia que interrompo: os dedicados a António Osório, a Pedro Tamen e a Ruy Belo; aos romancistas Francisco Costa, Ruben A. ou Vergílio Ferreira (como Cinatti, alvo de tese de doutoramento em Teologia); a Bernardo Santareno e a Agustina Bessa-Luís; a Rodrigo Emílio e a José Valle de Figueiredo; Mário Cláudio e José Saramago, etc.
 Podendo notar-se algum desequilíbrio no espaço dedicado aos diferentes modos literários, diga-se que tal lacuna, nomeadamente no modo dramático, é prova de uma menor permeabilidade de certos géneros e subgéneros literários à problemática religiosa e de um certo desinvestimento estético. Quanto a omissões, diga-se que o alargamento da rede operativa, que tentacularmente avança e retoma a produção literária de cinquenta anos, não ganharia maior eficácia e mais elevado grau explicativo. Ainda assim, e assinalado o seu carácter despiciendo, afirmo que a completude carece de estudo mais sistemático e continuado dos agentes sociais de cultura (dentro e fora da fé), que poderão, por sua vez, encontrar ânimo para esta acariação, na avaliação de Frias Martins à década poética de 1974-1984, que evidencia nela o peso do imaginário  e do léxico judaico-cristaõ. Lembre-se, a propósito, o caso de António Franco Alexandre, que, afirmando a fecundidade do texto bíblico (em Ave-Azul, por exemplo, e na própria obra), inscreve na sua modulação poética uma particular tensão produtiva, que assenta não só na ambiência vizinha  da de Santa Teresa d’Ávila (cf. Moradas, 1987), como também na carnalidade teológica de “le tiers exclu, fantasia política” de Quatro Caprichos (1999). Avance, pois, quem quiser.
A literatura contemporânea  ressuma ainda uma forte influência da Igreja. Parece certo, no entanto, que tal presença se foi esbatendo ou transmutando por outras vias. Dois casos assinalo que o parecem denegar, tanto mais que, tratando-se de homens da Igreja, são também importantes casos poéticos da década de 90: refiro-me a José Tolentino Mendonça, Reitor do Pontifício Colégio Português, e ao malogrado beneditino Daniel Faria. Este último, aliás, deixa-nos aquele convite à ação - a cristãos católicos e a desapegados de qualquer fé. “A porta mora à espera”, diz o poeta em Explicação das Árvores e de outros Animais (1998). É desta habilidade para sulcar a literatura que se afirma a transversalidade e o dinamismo de passos continuados e dispersos que cada vez mais urge coligir. A sábia e completa perspetiva de Seabra Pereira sobre a problemática da fé e a experiência cristã na literatura portuguesa é um importante avanço e um convite a novas investidas. Tire dela o leitor todas as vantagens e pense ainda acrescentar, com a sua vigilância, esta qualidade provisória.     

2014-09-07

[FARPINHAS – DEZOITO]

[FARPINHAS – DEZOITO]

Os turrinhas são uma evidência nacional: ligeiros, falsos sabedores, egoístas, presunçosos, pau para toda a colher e atentos a tudo como o Manel das mãozinhas, eis que os turrinhas são imenso território nacional. Mas serão?
Aconteceu-me hoje, como tantas outras vezes, acordar num outro qualquer dia de quaisquer anos. Não me espantei. Há sempre em nós um desejo de evasão no tempo e no espaço! Na Brasileira do Chiado soavam, graves, dez horas da manhã. Pessoanamente sentado, a bica ardilosamente despertava-me para o dia. Que café o dessa manhã de 26 de outubro de 1990! Repito a verdade: a bica é excelente e leio «o jornal» de José Silva Pinto. Estou agora na página 11 e aprecio a crónica de Augusto Abelaira «Basílio Horta contra a ambiguidade» - afinal, Basílio Horta, ao candidatar-se, o que Lucas Pires recusara, assumia corajosamente e, já agora, republicanamente uma propositura contra os consensos e pântanos. É esta independência que aprecio: um bom escritor só pode ser um bom opinador, ao contrário dos atuais fazedores de opinião que, pagos a peso de ouro, dizem com os partidos e os poderes. Augusto Abelaira, também grande escritor, expendeu um ato antiturrinha. E muito bem!
Passo para a página 12 e fixo-me em três títulos: «Soares critica PSD», «João Soares  relança minoria» e «Jotas às turras». Quase um qualquer volvido, que mesmidade! Nem o explicit do queirosiano Os Maias é assim tão assim. Mas vejamos: a última notícia traz a foto de um jovem, um certo António José Seguro, e o início do texto é catafórico. Transcrevo: «António José Seguro, líder da JS, e Pedro Passos Coelho, líder da JSD, almoçaram na quarta-feira para tentarem resolver o diferendo que tem oposto as duas organizações a propósito do MASP. O encontro não foi, no entanto, suficiente para clarificar, para já, a guerrilha que se instalou entre as duas «jotas», à volta da constituição do MASP-Jovem. A JSD que ser convidada, mas Seguro defende que quem quiser participar deve oferecer-se».
E no passado tudo se explica. Ser turrinha afinal, é precisamente isto: desejar consensos, querer ser convidado e oferecer-se. Há muitos turrinhas por aí. Pedem-me um exemplo? Aí vai: o presidente Cavaco é um formidável turrinha. Mas há mais: quem achar que a nossa vida é forçosamente o PS e o PSD também o é. Basílio Horta, naquele tempo, não era turrinha. Ao contrário, António José Seguro e Pedro Passos Coelho sempre foram turrinhas. E isto explica o presente.  

Viseu, 7 de setembro de 2014

© Martim de Gouveia e Sousa 

2014-09-05

URBANO TAVARES RODRIGUES e a ligação ao necessário em «Terra vermelha»


URBANO TAVARES RODRIGUES e a ligação ao necessário em «Terra vermelha»

Urbano Tavares Rodrigues é um dos mais importantes ficcionistas dos dois séculos portugueses que nos cabem e dizer isto é nada dizer – que poderão dizer as evidências? Começando na tautologia, vício de pensamento que é aqui admiração, muitos serão os cultores e detratores do autor, alguns até «sonâmbulos chupistas» de ocasião, para utilizar a expressão forjada pelo impagável Luiz Pacheco para tratar de um plágio polémico que envolveu dois escritores que também aprecio, nomeadamente o «plagiado».
Urbano Tavares Rodrigues, poeta até ao recorte mais íntimo, possui a elegância de um príncipe das letras que, em contínuo, respira arte e sentido. Dizê-lo criador de coisas belas é ainda não esquecer a rudeza de tudo, a poesia disso, o desespero lúcido do real. Vetorial, poética e económica, a prosa de Urbano é ágil como uma vertigem, tocante como uma vivência e comovedora como funda emoção.
«Terra vermelha» abre com uma dedicatória «À memória de Carlos Maria de Araújo» (1921-1962), poeta deslembrado e autor de dois livros. Trata-se de um iluminante paratexto que se projeta em emblema sobre toda a obra do autor de Bastardos do sol  e, obviamente, sobre a narrativa breve em análise. Sobre a lírica de Carlos Maria de Araújo, diz Jorge de Sena tratar-se de uma poesia «extremamente despojada e densa, de uma intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas, dessas trevas que tão terrivelmente cobrem a vida e o mundo». E este diagnóstico poético aplica-se a Urbano integralmente.
Lapidar e direto, o incipit projeta-se na ambiência, desfibrando-se em agudas sensações: «À aproximação de Serpa a planície torna-se vermelha. É a argila que lhe dá essa cor forte de sangue de boi»[1]. Repiso agora os semas e vocábulos que abrem esta fictiva sinfonia: ‘planície vermelha’ e ‘cor forte de sangue de boi’. Tragédia abatendo sobre os homens, a gente esfalfou-se e «ficou sem vintém». E depois, logo ali, desde o início ficcional, uma substantiva admonição recobre a narrrativa: «Muitas dessas courelas que uma charrua de sonho e de raiva lavrava contra o destino foram engrossar os latifúndios» (loc. cit.). E o resultado de tal injustíssima destinação logo tinge a mancha tipográfica anunciando o desenlace do novelo quase sofocliano: «Houve seareiros que deram o nó de peito e se penduraram pelo pescoço da pernada de uma sobreira; outros amaltesaram-se, andam por aí com os cães, babando-se, os artelhos á mostra, mortos até pelos filhos, que deles se envergonham». E o pobre do Joaquim Trovoada, um dos melhores, sem dúvida, que não resistiu e «amandou uma trancada» no cabo da guarda.
Mas tudo mudará um dia, obrigatoriamente, assim o escreve esperançosamente o narrador, que, participante, lamenta que tanta gente por ali não tenha podido escolher uma outra vida: «E é muito provável que sim, que muitos deles se entenderiam hoje melhor do que eu com campos magnéticos e energias potenciais. Mas não puderam, não podem ainda escolher a sua vida; perderam-se para si próprios e para todos nós nestes feudos atrasados, refractários à indústria rural»[2]. E, no entanto, não existem desvios e ciladas, de facto, existentes, que coartem à personagem de primeira pessoa «uma lúcida esperança, uma esperança desconfiada, vigiada, mas firme»[3]. E uma consciência acerada de que o diassistema linguístico, isto é, a língua natural, não obstante os estropiamentos censórios nos inquéritos realizados, é fundante para o mundo: «- Mas o português é a língua através da qual tomo uma determinada consciência do mundo, a que está certa com a minha natureza mais profunda. […] Além disso, o meu nexo com esta gente – e isto é o principal – só se estabelece verdadeiramente através da nossa língua»[4].
No entanto, a dorsalidade e a exigência ética, meios para a manutenção da integridade, serão atacados pela própria vida que exige capacidade de assegurar a subsistência e difícil é ganhar, assim sendo, para as «exigências de homem só», quanto mais para uma vida a dois que a mulher amiga, afinal, assegura. E será de voz feminil, tão cara esta como todas as outras ao gentleman que Urbano Tavares Rodrigues foi – e é, permita-se! -, que se levantará o eco da lição do porvir:

- Um dia estes inquéritos, todos os inquéritos deste género que por aí houver nas gavetas, serão publicados na íntegra – diz a Lu – e então prestarão um serviço: darão a estes homens subevoluídos, subalimentados, esmagados por uma servidão ancestral, qualquer coisa de muito necessário: consciência de si próprios, da sua condição, dos seus direitos, do seu papel no mundo moderno.[5]  

Outro dissídio, porém, se incrusta em Cirilo – entre Lu e ele há agora aquela Georgina, de eco garrettiano, que entrou e na casa de ambos se instalou, jovenzinha alarmante e inconsciente - «e com esses peitos tão altos (maiores que os da Lu)»[6]!
Na viagem noturna alentejana, com duas belas mulheres céu e inferno, liga-se Cirilo ao seu Anteu, estacionando a viatura e recolhendo isoladamente ao seu barranco pessoal: «Ó meu barranco pessoal, ó azinheira torta, terra que se esboroa sob estes sapatos de camurça que as silvas vão lacerar! Penhascos, zambujeiros, moinhos árabes do longe, o meu Guadiana barrento! Porque será que me apetece chorar?»[7].
Até à mais profunda emoção, até ao sangue da terra continuará a escavar Cirilo. Eis o emblema da marcha dos homens bons que se transmitem e nos oferecem a dignidade. É um fim poético que dilucida uma luta necessária que tem raízes e consequências. Trata-se de um conto que nos lega contas, pestanejamento e responsabilidade.

Viseu, 5 de setembro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa




[1] Urbano Tavares Rodrigues, Dias lamacentos, Amadora, Livraria Bertrand, 2.º rev. 1973, p. 21.  
[2] Id. ibid., pp. 22-23.
[3] Id. ibid., p. 23.
[4] Id. ibid., p. 24.
[5] Id. ibid., p. 25.
[6] Id. ibid., p. 34.
[7] Id. ibid., pp. 35-36.