Grande literatura: veredas – Aquilino Ribeiro e João Guimarães Rosa
Nas veredas do entorno literário, há elementos que
são clave e para sempre permanecerão longe do leitor. E a leitura, na margem,
far-se-á, também produtivamente. Nestas histórias de tapeçaria como são estas,
as da leitura, existem modos de entretecer, isto é, de expandir a teia, que,
como pedra de toque, são um som de afinidades. Por exemplo, eu sei que Raul
Brandão é da «família» de Vergílio Ferreira e que ambos, sem peso de influência,
são magnos escritores. E da mesma linhagem são os também portugueses Maria
Gabriela lLansol, Almeida Faria e Urbano Tavares Rodrigues, todos eles
belíssimos artistas também. Ou seja, uma linhagem não define uma supremacia,
mas uma transmissão.
É nas veredas do tempo que me encontro agora. São
afinal uma poucas décadas de memória. Poucas, mas fundas. É o tempo de sorver
essa crónica romanceada que é A Casa
Grande de Romarigães, a quem o professor desse ano ainda propedêutico do
meu trajeto especificamente universitário, o Padre Dr. Custódio Lopes dos
Santos[1],
que aqui também homenageio, não regateava elogios e grande valimento de
aprendizagem de escrita. Recordo ainda o interessante trabalho que a turma
desenvolveu sobre a obra, tendo eu optado, ao tempo, por uma abordagem
histórica, literária e genealógica que agradou ao professor e que ele tão
copiosa como competentemente adendou. Sei que esse trabalhinho ainda anda aqui
por minha casa no mar vasto das papeladas que sempre vou podando em época de
revisitação.
Em vereda próxima, e não perdendo nunca a dimensão
do contacto com um grande romance aquiliniano, eis que o jesuíta José Alves
Pires[2],
professor meu e da turma de Literatura Brasileira, omnívoro e estruturadíssimo
leitor, convoca para estudo um escritor, então pouco mais do que desconhecido
para mim, de nome João Guimarães Rosa. E então, bem mais do que acontecera com
o clássico de Aquilino Ribeiro, percorreu-me um estremeção intenso que, viria a
aprender à frente, mais não era do que o célebre pestanejamento de George
Steiner, sintoma aferidor da qualidade literária experimentada. Foi um
fascínio, um deslumbrante sortilégio percorrer aquele livrinho da coleção
«Livros do Brasil» de título Miguilim e
Manuelzão[3],
com as duas estórias mágicas «Campo Geral» e «Uma estória de amor (Festa de
Manuelzão)», a que juntei, logo de seguida, o monumental e intensíssimo Grande sertão: veredas[4].
Gerando veredas e promovendo escolhas, a literatura
mostra-se e esconde-se, tornando moventes os seus objetos, matizando celebrações
e promovendo inevitáveis personalidades, seres fortes e catalisadores. Incisas
me ficaram essas teias de leitura, como outras que não vêm ao caso. Em período
claramente formativo, há poucas décadas, pois, a perquirição por veredas e
territórios aquilinianos e rosianos não cessa de dar frutos, não deixando o par
de ser interessante, até pela tal linhagem a que atrás aludi e pelos mais que
muitos pontos de afinidade.
Já disse várias vezes, no não muito que escrevi a
respeito, que o incipit de A Casa
Grande de Romarigães é um dos mais fulgurantes de todos os romances de
língua portuguesa. Como um livro primordial, o palco da crónica romanceada
desvela-se nascente: «O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso,
penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não
senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se
agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em
sua tela semirrígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um
pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço.
Que para-quedista!»[5]
Genesíaco, em breve, o palco estaria criado para aquela «certa manhã de Outono»
em que um homem «atravessou por ali, e não foi pequeno o seu pasmo»[6].
Na memória, nas suas veredas, decantam e ecoam ainda
as palavras iniciais de «Campo Geral»: «Um certo Miguilim morava com sua mãe,
seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da
Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em
ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covão em trecho de
matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos».[7]
E também as daquele tão aquiliniano início de «Uma estória de amor (Festa de
Manuelzão)», sugestivo até de contacto com O
Malhadinhas: «Ia haver festa. Naquele lugar – nem fazenda, só um reposto,
um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o
cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do
campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como
engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de
mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na
Samarra.»[8]
E, por último, em vivo e inciso compartimento memorial, destaca-se, na senda
assinalada, a fulgurante entrada do romance epopeico Grande sertão: veredas, de que transcrevo breve trecho: «Nonada.
Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira
em árvores no quintal, no bairro do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso
faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum
bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem se ver – se viu -; e com
máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito
como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de
gente, cara de cão: determinaram – era o demo»[9].
Foi há décadas atrás, poucas, como disse, e desde
então via eu nesta sinfonia de textos de autores diferentes uma música afim,
uma energia aproximável. Aliás, mais ou menos por essa época, em artigo muito
interessante que José Cardoso Pires fez publicar no Jornal de Letras, Artes e Ideias, sob o título «Aquilino, mestre da
nave»[10],
lemos, entre outras codiciosas reflexões, que Guimarães Rosa fora leitor de
Aquilino e que nenhum outro dos ficcionistas contemporâneos citou. Ora isto
entroncava na tal casa comum e nas ressonâncias familiares.
Bem mais recentemente,
Alexei Bueno veio a defender que a linguagem artística de Rosa foi claramente influenciada por Aquilino,
informando-nos também que pouco mais do que modesta biblioteca rosiana havia
três obras do autor de O Malhadinhas:
Uma luz ao longe, Cinco réis de gente e Estrada de Santiago. Ora, ainda segundo
o crítico brasileiro: «O Malhadinhas, novela de cerca de cem páginas,
que apareceu pela primeira vez neste último volume, Estrada de Santiago, […] é o marco da mais profunda
afinidade genésica com a prosa de Grande sertão: veredas»[11]. E Bueno apresenta, de seguida,
excertos que coonestam a sua teoria. Influenciando-lhe o português e a sintaxe,
ideia que não nego, outras fundas e multímodas influências se terão operado no
vasto mundo de Guimarães Rosa. Nascentes e vindas de Aquilino.
Hoje celebra –se Aquilino, o seu
nascimento, cento e vinte e nove anos que nascem urbi et orbi nos melhores lugares. O ontem e o amanhã nascem ainda
dos seus dedos.
Viseu, 13 de setembro de 2014
©Martim de Gouveia e Sousa
[1]
Custódio Lopes dos Santos foi autor de obras como A composição em francês no segundo ciclo do curso liceal, Coimbra,
Instituto de Estudos Pedagógicos e Psicológicos, 1960; O regime de classes e o regime por disciplinas no ensino liceal,
Coimbra, 1960; Paul Geheeb. Mensch und
Erzieher, Coimbra, Instituto de Estudos Psicológicos e Pedagógicos, 1960
(com Walter Schafer); Instruções para
difusão do francês no estrangeiro, Coimbra, Instituto de Estudos
Psicológicos e Pedagógicos, 1962; O
intercâmbio de estudantes, a difusão do livro, o intercâmbio de locutores e a
criação de escolas de tradução referidos a Portugal e ao Brasil: sua
contribuição para a unidade da língua portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora,
1968; A denominação “Adamastor” em Os
Lusíadas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984.
[2]
José Alves Pires (1934-), para além de dispersa e importante colaboração
crítica na revista Brotéria, é autor
de livros como: João Guimarães Rosa: uma
literatura almada, Braga, Brotéria, 1993; e Grandes espirituais da literatura brasileira, Braga, Faculdade de
Filosofia da U.C.P., 2002.
[3] João
Guimarães Rosa, Miguilim e Manuelzão,
«Livros de Brasil», Lisboa, Edição «Livros do Brasil», s.d.
[4] Id., Grande
sertão: veredas, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 171985.
[5]
Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de
Romarigães. Crónica romanceada, Lisboa, Livraria Bertand, 1957, p. 13.
[6] Id., ibid.,
p. 16.
[7] João
Guimarães Rosa, Miguilim e Manuelzão,
p. 7.
[8] Id., ibid.,
p. 131.
[10]
José Cardoso Pires, «Aquilino, mestre da nave», in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 17 de janeiro de 1984.
Este artigo foi mais tarde integrado na obra Dispersos 1 (Literatura), Lisboa, Dom Quixote, 2005, pp. 131-137.
[11]
Alexei Bueno, «Ribeiro, Rego, Rosa e Rocha. Afinidades eletivas», in Isabel
Morujão e Zulmira Santos, Literatura
culta e popular em Portugal e no Brasil. Homenagem a Arnaldo Saraiva, Porto, CITCEM
– Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» -
Edições Afrontamento, 2011, p. 36.
Sem comentários:
Enviar um comentário