recensão a PROBLEMÁTICA DA FÉ E
EXPERIÊNCIA CRISTÃ NA LITERATURA PORTUGUESA
A interacção entre a literatura e a religião na
sociedade contemporânea portuguesa é indesmentível. Um signo se abre, no
entanto, desde logo – o da necessária superação do velho olhar dissociativo
entre domínios que, em propriedade, se entrecruzam e se afectam, manifestando
nos objectos nomeados um modo constitutivo de repulsa ou de adesão. Não há,
assim, quanto a este particular, criação literária neutra e semantica-mente
intransitiva.
Em perquirição
por mar vasto, cedendo à tentação necessária de escolhas e exclusões, que outra
via não havia, o estudo do Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira é, a um
tempo, lacunar e exemplarmente completo. Quaisquer tentames ensaísticos
insertos na temática proposta e levados a cabo até ao momento, penso terem
ficado pela abordagem miúda, particular, generalizante ou amplificadora.
Lembro, a propósito, pelo valor intrínseco e também exemplificativo das
contingências apontadas, as obras de Zacarias de Oliveira (O Padre no
romance português, Lisboa, União Gráfica, 1960) e de Álvaro Ribeiro (Escritores
Doutrinados, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1965) – nesta,
refiro-me ao primeiro capítulo.
Abrindo a
segunda metade do século xx na insolvência produtiva do inquietismo do Segundo
Modernismo, é também com Moreira das Neves que melhor se tipifica o
intimismo espiritual de experiência
cristã. De facto, o escritor religioso que é Padre Moreira das Neves, poeta
mais do que estimável desde a década de 30, aparece aureolado nessa dobragem
com uma força tutelar. O Senhor D. Miguel Trindade Salgueiro vê nele, por 1953,
um ser “iluminado de imagens poéticas”, constituindo-se cada livro seu como “asas
de graça que desce de Deus e para Deus eleva” (Prefácio a O Anjo das Três
Loucuras: Sílvia Cardoso do Padre Moreira das Neves).
Os “farrapos
molhados de sangue” atirados ao papel pelo Padre Moreira das Neves apontam a
força da fé e da experiência cristã como caminho de fulguração literária.
Referindo-se a Dona Sílvia Cardoso, surte o exemplo do religioso: “Com sete
espadas no coração / E sete cruzes pesando aos ombros, / Passou no mundo como
um clarão / De luar de neve por entre escombros.” (op. cit., p.
145)
Tal irisação
plasma-se indiciosamente, seis anos passados, na Antologia da Novíssima
Poesia Portuguesa (1959) de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro,
pela abertura florilégica com poemas de Sebastião da Gama, adentro do canonismo
cristão e católico (“Oração de todas as horas” e “Cristo”), logo avançando para
o afim “Apontamento” de Vasco Miranda, pseudónimo do Padre Arnaldo Cardoso
Ferreira, poeta e ensaísta que bem testemunha a experiência cristã na
literatura portuguesa, seja pela faceta poética (reunida integralmente em Dizer,
Amar (1946-1971),
1972), seja ainda pela colaboração diversa em jornais e revistas (Mundo
Literário, Quatro Ventos, Árvore, Cadernos do Meio-Dia,
Horizonte, Gazeta Literária, etc.).
Não denegando
que só uma linguagem mitogénica permite os grandes conseguimentos poéticos,
sabendo bem que, no sentido de Álvaro Ribeiro, as autênticas poesias “algo nos
dizem da vida do espírito” (op. cit. , p. 19), Seabra Pereira encontra,
no quadro das correntes literárias do primeiro quartel do século XX, a linha
sobrevivente do espiritualismo religioso, que invade, sem transbordamento, a
segunda metade secular. São exemplo da problemática da fé importantes
composições de Mário Beirão, nomeadamente as contidas em Mar de Cristo (Lisboa,
Portugália, 1957), servindo de suficiente exemplo, pelo inquietismo, a quadra
do itálico e inicial soneto “Sobrevivente”: Sobrevivente sou;
sobrevivente, / Por vontade de Deus, para cantar / Dum Povo, que se fez à noite
e ao Mar, / A sua cruz e a sua glória ingente. Lembro ainda, no rasto do
que é também obsessão criadora em Mário Beirão, os dois últimos versos do
citado poema, que permitem aferir as confinações rituais e as interpelações
produtivas do vate sobrevivente, num explicit que é também “profissão de
fé messiânica” (Seabra Pereira): “Porque ajoelhas, humilde e transportado? /
Porque o Espírito Santo é ao teu lado!”.
Mas não só.
Para esta epistemologia da inquietação religiosa de gosto neorromântico, traz ainda o
ensaísta os nomes de Afonso Lopes Vieira, António Corrêa de Oliveira, António
Sardinha, Manuel Ribeiro, Teixeira de Pascoaes e Anrique Paço d’ Arcos. Aduz
também um descontínuo Américo Durão, que vai encontrando a sua legitimação
literária na aproximação ao religiosismo, que, em propriedade, nunca
abandonara, tanto mais que o tradicionalismo e a matização do simples se tinham
vindo a impor cada vez mais desassombradamente, como o comprova a edição
definitiva do Poema de Humildade (Lisboa, Sociedade de Expansão
Cultural, 1964) e aquele desejo derradeiro de se chegar “cantando às mãos de
Deus!”. Tal aproximação a uma vivência de espiritualismo católico, entronca – e
isso foi codiciosamente entrevisto por Seabra Pereira – com a poesia de
Fernanda de Castro, que, vinda de há décadas, persistentemente vaza a segunda
parte do século apontando o encontro com Deus. “Encontrei Deus”, dirá a
Poetisa, na debutante década de 50, pelo fim de Trinta e nove poemas
(1952).
A casa mítica
de Deus e da inquietação cristã é motivo de encontro e reencontro com um
conjunto de escritores advenientes do Segundo Modernismo. Destacam-se José
Régio e Miguel Torga. O primeiro, pese embora a admonição de Branquinho da
Fonseca (“ergue a voz aos céus dum Deus que é ainda ele próprio ou que não sabe
se existe ou o que é”), transporta consigo, desde as primeiras criações, “uma
experiência religiosa nunca rejeitada” (Eugénio Lisboa), que irrompe pelo meio
século com a força da inquietação gerada anteriormente, tudo fazendo crer
tratar-se de um ser “visceralmente religioso” (João Marques). Aliás, na senda
de Antero Pacheco Moreira (1926), César de Frias (1932), Augusto Pires de Lima
(1942) ou Guilherme de Faria (1947), Régio (com Alberto de Serpa) antologiará
um conjunto de textos tocados de fé, sob o anteriano título Na Mão de Deus
(1958), o que é razão não despicienda para a afirmação de uma tendência. Álvaro
Ribeiro (op. cit.), depois de afirmar que a preocupação teológica de
Régio “está significante no título dos seus livros”, acrescenta que brilha na
sua poesia “a verdade de que Deus é transcendente”.
Torga, por seu
lado, “lavra a terra” num mundo seu incómodo e que, ainda assim, não foge ao
“discurso teológico” (Fernão de Magalhães Gonçalves”), pese embora a súmula que
Seabra Pereira encontra em Zacarias de Oliveira e que este respiga no poema do Diário
VII “Não sei amar, ou amo o que me
foge”.
Frisa ainda o
ensaísta a centralidade de Vitorino Nemésio nesta adjunção da religiosidade
literária, salientando no escritor açoriano a sua doutrinação integral que lhe
permite a aproximação ao divino pela reflexão filosófica, pela revelação e pelo
misticismo. Mas outras figuras, de “forte manifestação católica de crença perentória
e de devoção afervorada” (Seabra Pereira), aparecem convocadas: António Manuel
Couto Viana ou Adelino Feijó Teixeira, e mais o padre salesiano Cassiano
Nogueira Guimarães, o padre Horácio Nogueira, Miguel Trigueiros, Maria de Santa
Isabel, Fernando de Paços, João Maia, S. J. e Nuno de Sampayo – este último,
aliás, publicado como outros atrás pelas Edições “Critério” de Braga, manifesta
uma elevação religiosa que interessa ver recordada: “Pousas na minha orla como
um sopro, / É suave como a amada que não tenho, / Pleno como a pátria que não
conheço, / E eu cresço como um choupo na Tua mão / E encho de flores brancas o
Teu regaço.” (A Orla e o Tempo, 1956).
Outras e não
menores nomes, por obra das qualidades ingénitas, são trazidos para o debate do
augusto mistério da fé na literatura portuguesa : são casos exemplares, pela
indenegável força canónica, os tavoleiros Sebastião da Gama e David
Mourão-Ferreira. Da Távola Redonda ao Graal vai um lastro de
catolicização e de alargamento do fluxo da fé literária, despontando vocações
literárias ou afinando-se nexos criadores (A. Quadros, Goulart Nogueira,
António Salvado, Herberto Helder, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, etc.).
Veja-se, por exemplo, como a reavivação do “caos do poeta” que Herberto Helder
é passa, não obstante o tom problematizante, pela “empatia profunda e uma comunhão de sentidos entre as ideias
que norteiam o livro bíblico” (J. Amadeu C. da Silva) e Os Selos.
Leitor
íntegro, escutador atento e sensível, Seabra Pereira avança pelas décadas
poéticas com a mestria de quem conhece os lindes de uma ética cristã e não se
exime à formulação interpretativa. Tirando consequências, a hermenêutica
seabrina corta década a década o tecido poético, gerando em cada encaixe novas
interpretações e novos laços de fé. Não havendo leitura sem pré-conceito
(Gadamer), e tal nota seria aqui dispensável, cito, sem particular norte,
alguns passos luminosos a que não aludi na diacronia que interrompo: os
dedicados a António Osório, a Pedro Tamen e a Ruy Belo; aos romancistas
Francisco Costa, Ruben A. ou Vergílio Ferreira (como Cinatti, alvo de tese de
doutoramento em Teologia); a Bernardo Santareno e a Agustina Bessa-Luís; a
Rodrigo Emílio e a José Valle de Figueiredo; Mário Cláudio e José Saramago,
etc.
Podendo notar-se algum desequilíbrio no espaço
dedicado aos diferentes modos literários, diga-se que tal lacuna, nomeadamente
no modo dramático, é prova de uma menor permeabilidade de certos géneros e
subgéneros literários à problemática religiosa e de um certo desinvestimento
estético. Quanto a omissões, diga-se que o alargamento da rede operativa, que
tentacularmente avança e retoma a produção literária de cinquenta anos, não
ganharia maior eficácia e mais elevado grau explicativo. Ainda assim, e
assinalado o seu carácter despiciendo, afirmo que a completude carece de estudo
mais sistemático e continuado dos agentes sociais de cultura (dentro e fora da
fé), que poderão, por sua vez, encontrar ânimo para esta acariação, na
avaliação de Frias Martins à década poética de 1974-1984, que evidencia nela o
peso do imaginário e do léxico judaico-cristaõ.
Lembre-se, a propósito, o caso de António Franco Alexandre, que, afirmando a
fecundidade do texto bíblico (em Ave-Azul, por exemplo, e na própria
obra), inscreve na sua modulação poética uma particular tensão produtiva, que
assenta não só na ambiência vizinha da
de Santa Teresa d’Ávila (cf. Moradas, 1987), como também na carnalidade
teológica de “le tiers exclu, fantasia política” de Quatro Caprichos
(1999). Avance, pois, quem quiser.
A literatura
contemporânea ressuma ainda uma forte
influência da Igreja. Parece certo, no entanto, que tal presença se foi
esbatendo ou transmutando por outras vias. Dois casos assinalo que o parecem
denegar, tanto mais que, tratando-se de homens da Igreja, são também
importantes casos poéticos da década de 90: refiro-me a José Tolentino
Mendonça, Reitor do Pontifício Colégio Português, e ao
malogrado beneditino Daniel Faria. Este último, aliás, deixa-nos aquele convite
à ação - a cristãos católicos e a desapegados de qualquer fé. “A porta mora à
espera”, diz o poeta em Explicação das Árvores e de outros Animais
(1998). É desta habilidade para sulcar a literatura que se afirma a
transversalidade e o dinamismo de passos continuados e dispersos que cada vez
mais urge coligir. A sábia e completa perspetiva de Seabra Pereira sobre a
problemática da fé e a experiência cristã na literatura portuguesa é um
importante avanço e um convite a novas investidas. Tire dela o leitor todas as
vantagens e pense ainda acrescentar, com a sua vigilância, esta qualidade
provisória.
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