URBANO TAVARES
RODRIGUES e a ligação ao necessário em «Terra vermelha»
Urbano Tavares Rodrigues é um dos mais importantes
ficcionistas dos dois séculos portugueses que nos cabem e dizer isto é nada
dizer – que poderão dizer as evidências? Começando na tautologia, vício de
pensamento que é aqui admiração, muitos serão os cultores e detratores do
autor, alguns até «sonâmbulos chupistas» de ocasião, para utilizar a expressão
forjada pelo impagável Luiz Pacheco para tratar de um plágio polémico que
envolveu dois escritores que também aprecio, nomeadamente o «plagiado».
Urbano Tavares Rodrigues, poeta até ao recorte mais
íntimo, possui a elegância de um príncipe das letras que, em contínuo, respira
arte e sentido. Dizê-lo criador de coisas belas é ainda não esquecer a rudeza
de tudo, a poesia disso, o desespero lúcido do real. Vetorial, poética e
económica, a prosa de Urbano é ágil como uma vertigem, tocante como uma
vivência e comovedora como funda emoção.
«Terra vermelha» abre com uma dedicatória «À memória
de Carlos Maria de Araújo» (1921-1962), poeta deslembrado e autor de dois
livros. Trata-se de um iluminante paratexto que se projeta em emblema sobre
toda a obra do autor de Bastardos do sol e, obviamente, sobre a narrativa breve em
análise. Sobre a lírica de Carlos Maria de Araújo, diz Jorge de Sena tratar-se
de uma poesia «extremamente
despojada e densa, de uma intensa severidade formal e de vigorosa emoção
contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas, dessas
trevas que tão terrivelmente cobrem a vida e o mundo». E este diagnóstico
poético aplica-se a Urbano integralmente.
Lapidar e direto, o incipit
projeta-se na ambiência, desfibrando-se em agudas sensações: «À aproximação de
Serpa a planície torna-se vermelha. É a argila que lhe dá essa cor forte de
sangue de boi»[1]. Repiso agora os semas e
vocábulos que abrem esta fictiva sinfonia: ‘planície vermelha’ e ‘cor forte de
sangue de boi’. Tragédia abatendo sobre os homens, a gente esfalfou-se e «ficou
sem vintém». E depois, logo ali, desde o início ficcional, uma substantiva
admonição recobre a narrrativa: «Muitas dessas courelas que uma charrua de
sonho e de raiva lavrava contra o destino foram engrossar os latifúndios» (loc. cit.). E o resultado de tal
injustíssima destinação logo tinge a mancha tipográfica anunciando o desenlace
do novelo quase sofocliano: «Houve seareiros que deram o nó de peito e se
penduraram pelo pescoço da pernada de uma sobreira; outros amaltesaram-se,
andam por aí com os cães, babando-se, os artelhos á mostra, mortos até pelos
filhos, que deles se envergonham». E o pobre do Joaquim Trovoada, um dos
melhores, sem dúvida, que não resistiu e «amandou uma trancada» no cabo da
guarda.
Mas tudo mudará um dia, obrigatoriamente, assim o escreve
esperançosamente o narrador, que, participante, lamenta que tanta gente por ali
não tenha podido escolher uma outra vida: «E é muito provável que sim, que
muitos deles se entenderiam hoje melhor do que eu com campos magnéticos e
energias potenciais. Mas não puderam, não podem ainda escolher a sua vida;
perderam-se para si próprios e para todos nós nestes feudos atrasados,
refractários à indústria rural»[2].
E, no entanto, não existem desvios e ciladas, de facto, existentes, que coartem
à personagem de primeira pessoa «uma lúcida esperança, uma esperança
desconfiada, vigiada, mas firme»[3]. E
uma consciência acerada de que o diassistema linguístico, isto é, a língua
natural, não obstante os estropiamentos censórios nos inquéritos realizados, é
fundante para o mundo: «- Mas o português é a língua através da qual tomo uma
determinada consciência do mundo, a que está certa com a minha natureza mais
profunda. […] Além disso, o meu nexo com esta gente – e isto é o principal – só
se estabelece verdadeiramente através da nossa língua»[4].
No entanto, a dorsalidade e a exigência ética, meios para a manutenção
da integridade, serão atacados pela própria vida que exige capacidade de
assegurar a subsistência e difícil é ganhar, assim sendo, para as «exigências de
homem só», quanto mais para uma vida a dois que a mulher amiga, afinal,
assegura. E será de voz feminil, tão cara esta como todas as outras ao gentleman que Urbano Tavares Rodrigues
foi – e é, permita-se! -, que se levantará o eco da lição do porvir:
- Um dia estes inquéritos, todos os inquéritos deste
género que por aí houver nas gavetas, serão publicados na íntegra – diz a Lu –
e então prestarão um serviço: darão a estes homens subevoluídos,
subalimentados, esmagados por uma servidão ancestral, qualquer coisa de muito
necessário: consciência de si próprios, da sua condição, dos seus direitos, do
seu papel no mundo moderno.[5]
Outro dissídio, porém, se incrusta em Cirilo – entre
Lu e ele há agora aquela Georgina, de eco garrettiano, que entrou e na casa de
ambos se instalou, jovenzinha alarmante e inconsciente - «e com esses peitos
tão altos (maiores que os da Lu)»[6]!
Na viagem noturna alentejana, com duas belas
mulheres céu e inferno, liga-se Cirilo ao seu Anteu, estacionando a viatura e
recolhendo isoladamente ao seu barranco pessoal: «Ó meu barranco pessoal, ó
azinheira torta, terra que se esboroa sob estes sapatos de camurça que as
silvas vão lacerar! Penhascos, zambujeiros, moinhos árabes do longe, o meu
Guadiana barrento! Porque será que me apetece chorar?»[7].
Até à mais profunda emoção, até ao sangue da terra
continuará a escavar Cirilo. Eis o emblema da marcha dos homens bons que se transmitem
e nos oferecem a dignidade. É um fim poético que dilucida uma luta necessária
que tem raízes e consequências. Trata-se de um conto que nos lega contas,
pestanejamento e responsabilidade.
Viseu, 5 de setembro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa
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