É um modo único de cativar aquele que encontramos na
narrativa breve de Urbano Tavares Rodrigues. Sabendo por dentro da «inutilidade
das ruínas», do seu caráter forte poeticamente arrebatador, não há tom efémero
que Urbano não desbrave, não existe degenerescência que para ele não tenha a
sua utilitas.
Com valência estética, os sinais da ruína são mais
do que muitos nessa fabulosa short story rodriguiana
que é «Tio Deus» e está integrada no livro de novelas Casa de correcção (1968)[1].
E o início da narrativa breve do autor de Bastardos
do sol bem que convoca essa beleza triste e admirável da finitude e da
devastação. Veja-se como: «Uma porta imemorável, desviada da sua função,
arrancada aos gonzos de alguma velha dependência, e agora mascada pela humidade
do jardim, com a maçaneta partida, tapa metade da cisterna sobre a qual as
crianças se debruçam»[2].
Esta abertura – soberba, diga-se… - fornece ainda
vários elementos de adesão, como, por exemplo, o tom ominoso advindo da
«humidade do jardim», a «maçaneta partida» e a cisterna em que as crianças se
debruçavam. Tais elementos trágicos projetam-se sobre o todo narrativo e entram
até em litígio com a escolha titular, maculando, programaticamente, a bondade
do apelido Deus. Arrebatador até dor, esta estória encaixa como luva no
diagnóstico do ainda pouco mais do que desconhecido José Saramago que, no
prefácio à 2ª edição de Casa de correcção,
liberta esta esclarecida admonição: «É preciso resistir à repetida tentação de
largar o livro, de pensar noutra coisa, de ir ao jardim mais próximo ver como
se comportam as flores. É preciso, por outro lado, não ceder à atracção de
desanimar dos homens que habitam e se entredevoram nesta “casa de correcção”»[3].
Muito do que se encontra nesta novela fascinante
será, no longo e consistente monumento literário de Urbano Tavares Rodrigues,
uma constância. Será sempre de olhos abertos o modo indicado para fender uma
escrita duríssima e certeira. Que esperar afinal do defeito educativo daquele
tio tão insofrido e tão desumano que não seja dor e incómodo, como, aliás, se
anunciava já nos claros omina do incipit da novela? Este tio, que proibira o baloiço,
era assim… um deseducador: «Talvez aquela unha do tio não seja assim tão
comprida e tão dura, e tão aguçada, de propósito para os magoar. Mas deixa
sempre marcas quando lhes agarra os pulsos. Às vezes faz até feridas na cara,
quando ele se zanga deveras e os esbofeteia. D. Laurentina assegura que o tio
Alexandre sofre quando se vê forçado a castiga-los: tem bom coração, mas a sua
obrigação é educar, mandar, não pode comover-se com ninharias»[4].
O tio não permitia um pio. Havia hora certa para
tudo. O tio batia metodicamente. O tio morreu um dia. E então os dois
rapazinhos decifram uma aérea sigla que diz «liberdade, iniciação, suplício»[5].
E as lágrimas devêm sangue. Irrompendo o sangue, ao sangue liba o bull-dog do
tio que crava a dentuça em Jasmim antes de este lhe desferir certa paulada e o
degolar, posteriormente, com uma faca. Tudo uma sangueira – estrangulação de
animais, vícios sexuais, insujeição, raivas indomináveis e o mais que se sabe
conduzirão os jovens por momentos de desregrada liberdade até ao fechamento
vegetal de tudo. A tutora, então chegada, conduzi-los-á, de novo, a uma outra
ordem noturna. E, no fundo, a criação monstruosa que aquelas crianças eram
promanava de abissais desvirtudes dos adultos. Aprende-se isto aqui, com Urbano
Tavares Rodrigues, qual flâmula de perenidade…
Viseu, 19 de setembro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa
[1]Urbano
Tavares Rodrigues, Casa de correcção,
Amadora, Livraria Bertrand, 1968.
[2] Id., ibid.,
Amadora, Livraria Bertrand,2 ver.1972, p. 19.
[3]José
Saramago, «Leitura incómoda», in Urbano Tavares Rodrigues, Casa de correcção, Amadora, Livraria Bertrand,2 rev. 1972,
p. 19.
[4] Urbano
Tavares Rodrigues, op. cit., p. 20.
[5] Id., ibid.,
p. 38.
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