2012-07-31

Ler nas férias (1): "Olivia" de Olivia



Olivia, por Olivia escrito, é um romance de formação. Atrás do despiste autoral esconde-se o nome de Dorothy Bussy (1865-1960), autora de um único romance - este, que recobre biograficamente os seus anos juvenis e a descoberta do amor sáfico, o primeiro amor.

O romance foi anonimamente publicado em Londres, em 1946. A escrita é arejada, leve, despertando, no entanto, sentimentos violentos e uma toada dolorida e vibrante, características próprias, aliás, de quem inocentemente enceta a descoberta.
A obra apareceu em Portugal, em 1959, com chancela da lisboeta Editora Ulisseia e tinha o nº 13 da coleção "Sucessos Literários". A tradução é de Natércia Freire, a capa de Sebastião Rodrigues e a fotografia de Sena da Silva. A assinalar a linhagem gay, o prefácio é de Rosamond Leheman (que poderia perfeitamente ser a autora). Tem ainda uma introdução da referida Natércia Freire.
Para mim, que o li pela edição mencionada, é um romance obrigatório.

2012-07-30

kurbiella


um pouco mais de temperatura
e o mundo magnético nas mãos
todo o calor da forja nos dedos
ao corpo ditará as doses ardentes
quando didaticamente a vergasta
apontar aos pés - a dor aí a poesia.

um pouco mais de dieta um leito
aquecido onde möller o pintor
será esquecido pela musa do poeta
e só então opitz dirá as palavras
as melhores delas sussurradas aí
a poesia antecedendo as cinzas.

também kurbiella foi mãe de blimunda
e isso só o sabe a pintura a poesia...

2012-07-29

jacob


nem só as paredes tremem
toda a exclusão te assusta
por isso os vais transpondo
aos muros dos lugares chegas
e todo o exercício fazes aí
não lembrando os sufocados
em tanta cama e comida...

margarete é o poder o centro.

2012-07-28

margarete


tudo começa aí na pimenta
vasco da gama no sangue
o poder no centro labiríntico
da arte da boa cozinha o ar
suspenso de fascínio o beijo
lábil cumprindo rituais antigos
vasco da gama no sangue
a rota dos líquidos na abadia
as paredes dançando de gula
os dedos trabalhando os cereais
as rugas disso esmaecendo aí
no burilado fino o pão o vinho
sobre as costeletas os nabinhos
vasco da gama no sangue
as descobertas as viagens o vento
o enigma das especiarias a pimenta
um prato fundo sem nome a morte
um leitão um banho batismal o ouro
da pele sob os dentes mordentes
vasco da gama no sangue
a cozinha ao coração um grito.

2012-07-27

slichting


dentro da forja os dedos
o calor tudo fundindo aí
eis o milagre as palavras
espadas trespassando-nos
solidão contra a amnésia.

2012-07-26

dorothea



[DOROTHREA]
enche-te a luz o corpo
e do belo gesto um raio
de luz cruza-te a carne
espraiando-se na brancura.

floresce o amor em teus olhos
e do dardo ferido um homem
jaz no ardimento chão aos pés
toda a gramática é corpo verbo.

incerta a aliança humana
o barro e o casamento fizeram
um poema de sangue único nó
um relâmpago fendente.

visionária já nisso toda a água
do ventre se fez gente ignota
uma mão sibilinamente romana
do ouro vagaroso fez pedra.

queima agora a radiação da pedra
junto ao corpo e ao breve espaço
um coração em joia humedece-se
na clausura serve-a a morte aí…    

2012-07-25

adalberto



nem a peso de ouro uma morte se consente
porque mestwina a tanta pompa juntou ferro
que idade para ti Adalberto assim tão santo
que do carvalho haveis colhido a santidade?

um sacrílego pecado muito cedo foi martírio
e ai de quem duvide um gume do milagre disso
que à força e com pancada na cabeça o sangue
trouxe a morte em vara de sal de taumaturgo.

2012-07-24

mestwina


e de repente dois seios nunca mais três
e o sofrimento em golfadas de sangue
caindo na intrepidez dos dedos a boca
sem sorvo habitual definhando ao lado
todo o fanal dos líquidos declinando
uma estranha ferida aberta no peito...

sem centro o matriarcado tombou perto
e degolado estava também o século dez.

então alucinado o homem estremeceu aí.

até hoje vime ao vento o fôlego é masculino.

2012-07-23

edek ainda


partir é o que importa e mesmo um pé e sua dor
não parecem impedimento maior. a prumo a faca
um ardor longo espalha-se no sangue uma estaca
estiola a pele e nem toda a água aplaca a carne
a desabrochada fogueira devorando os tecidos...

vertebral o sonho esmaece com a chegada a casa.

2012-07-22

wigga


entre teus braços rompe ainda um terceiro seio
tuas mãos são fundíssimas raízes de alabastro
que suportam todas as pedras todos os medos
afundados na terra como daninhas  ocas ideias
umbilical o meu olhar prende-se nesta fundura
desce ao chão ao rizoma último ao fundo de mim.

2012-07-21

edek


não há humidade neste mundo em que fundo estou
hábil corro depós feras e domino todas as águas
certeiros os músculos retesados do corpo mandam
e todo o bailado na colina do tempo mostra edek
jovialíssimo estupefacto mirando a nassa fabulosa
donde ressaltou um linguado falante categórico...

desde a fábula todo o homem caça e pesca o fim
dos tempos virá sábio pela boca de um linguado.

2012-07-20

ava


neoliticamente vem esta ava
depurou-se no tempo e veio
velha mãe original sobre edek
estilizou-se e é cadeia de mito.

três vezes chegou três vezes
à boca um antigo amargor veio.

2012-07-19

cadáver adiado


algures o brilho no nevoeiro da imagem
uma resplendência de prata e de ouro
entra pelas veias como mundo ardendo
nos pulmões volteia um rumor crepita
labareda de tudo fundente constelação
dilacerante torrente abandonada cerca
estes os dedos abismado o sangue cose
toda a história corpórea de um rizoma
as múltiplas raízes respirando na cripta
inundadas e fundidas nas águas do porvir
e tu aí a palpitação disso este escrever-se.

2012-07-18

marimorte de fernando pessoa


nem uma onda negra vinda do tejo esquece aquele dia
navegando nas águas todo o sabor antigo veio à boca
lembrando lucrecianamente as leis os velhos cansaços
e sendo o tempo de partir reconheço tudo ter sido aqui
aquilo que já não vejo as lentes ofuscadas esta fixidez
gelada a pele colada nas hastes o falso brilho nas mãos.

fundíssimo um relâmpago iluminou os olhos dentro o mar.

2012-07-17

mora


cansado veio de roma de ao pé da porta
abriu-a romanamente uma túnica de neve
aproximou-se com todos os gritos e vagas
e arúspice desceu aos mares tudo dizendo
sobre os átomos de pessoa dentro do vento.

loucamente o disse alto o disse sem saber.

2012-07-16

bernardo


sonolentos sobre as telhas caem os olhos
encostando toda a angústia às luzes da noite
estar aqui fitando a cidade a morte nos dentes
as breves fulgurações as mudanças dos poentes
explodir no vento e reentrar logo na mesma janela.

olho de mim um terraço violeta nisso a tristeza aí.

2012-07-15

reis em averno


dos pulsos e dos dedos imaginário entrou
cansado dos brasis como estrangeirado
cruzou por todas as odes de píndaro
e sentado viajou por todos os rios e mares
declinando as doenças o ideal monarquista
tímido e circunspecto veio vindo de si
neoclássico ser falsamente nascido sendo
um negro rio brilhante no lugar de averno.

2012-07-14

caeiro


então na noite todas as trevas vieram
caíram sobre a dor sobre as horas
implacáveis desfizeram o nevoeiro
e toda a paz era território empestado.

chegou a hora com o mestre dentro
toda a cal do mundo escorria ao chão
em carrossel as chuvas os ventos a vida
as estações sobrepondo lentos os meses.

não pensar nisso: ser espiga ao vento.

2012-07-13

um fantasma


pela noite um fantasma plana
entra pelos tímpanos grita
como pele dentro da pele
um estranho amor aos lábios
vem como velha absolvição
água dentro de balde um gelo.

2012-07-12

adeus


um pequeno quarto quase mortalha
modesto estreito em cama de ferro
onde do chão ao teto a noite respira
escassamente a roupa abrevia a dor
e da brancura de tudo nasce o carvão
que risca a vida toda a finitude o fim.

um copo de água afoga o comprimido
enquanto as veias recebem o injetável.

catarina, vem, sê todo o láudano em mim.

2012-07-11

coelho pacheco


qual álvaro de campos eis te nas máquinas
nos negros óleos passantes todos os êmbolos
em ti penetrantes lembrando certas odes
outras vozes mesmo as pessoanas poesias
assim eras pessoa uma certa face um rosto
que afinal não mais do que diferente sangue
poeta na revolução participante como sinal.

pacheco existiu existe ainda porque pessoa é.

2012-07-10

moitinho de almeida


aí estás tu à direita
e chove em mim
em todas as vísceras
há um halo de fato
preto como o meu.

desço as escadas aí
um torrão chamando
nisso toda a agrura
coada pela amizade
de alguns indefetíveis.

afundo na rua a chuva
oblíqua a tabacaria perto
e solícito tu aí moitinho.

manacés


afundado na doença
pessoa semi-hediondo
fez seu pst a manacés
que rápido lhe aí viesse
fazer cerce o corte final
enquanto olhava carneiro
ouvindo o ciciar derradeiro.

em baixo o táxi que espere.

2012-07-09

Sobre "As crónicas do inverno" de Carlos Clara Gomes




Sobre “As crónicas do inverno” de Carlos Clara Gomes

Situado entre dois mundos cinzentos que estranhamente se encaixam, não fora a logo marginada primavera de abril, o plot textual (lírico, avassalador, pachequiano e atualíssimo) convoca uma tensão dramática entre um eu admonitório e um tu sofredor. A breve trecho, como no drama regiano, há um eu que é um outro e um outro que é um eu. Ninguém fica, de facto, de fora deste voo rasante sobre a memória, os lugares, os heróis e os cheiros. Todos dentro do fogo devorador, do tempo que não espera, eis que uma breve e súbita alegria irrompe do íntimo comum – finalmente, a possibilidade de sermos.
Com uma sintaxe insinuante e evocativa, o trabalho de Carlos Clara Gomes, superiormente coadjuvado instrumentalmente e na voz por André F. Cardoso, conduz-nos a um alto lugar. Da devastação e do opróbrio reinantes construirá cada um de nós um texto novo, porque cansados destes invernos que não procriam.
Está de parabéns a Fnac de Viseu, que permitiu que pudéssemos privar, no dia 8 de julho, pelas 16 horas, com uma representação tão necessária. Uma saudação especial à Companhia DeMente por este segundo incêndio na cidade de Viseu.
Como diria Günter Grass, e parafraseando um tanto um trecho inicial do seu Der Butt [O Linguado], cada eu é um eu “em todos os tempos”. Tal pregnância generalizante faz deste espetáculo uma obrigação, que chegará em breve, na terceira estação…  

morada

afundo neste chão eis a cama
o vasto céu em espelho os olhos
o abismo de mim nestas sombras
a respiração na neblina a garganta
as feridas do acordar as árvores
toda a morada de mim nas folhas.

2012-07-05

nos braços um gato

toda a vocação nos braços
lado a lado a mansidão da pele
entra pelo coração mordente
o calor nas mãos expele o grito
pregado a mim suave o veludo
onde plantado um gato orbita.

nos ossos as mãos todo o calor.

2012-07-04

verlaine


ver longe verlaine
toda a lã ver ver
aquecer a mesa
encostá-lo a mim.

2012-07-01

grécia

entre a palavra e o céu
estas as pedras a história
da caligrafia a anatomia
de tudo - esta árvore.