2006-01-31

um dia, em Samos


um dia, em Samos, nem ânforas
ou hídrias matam a sede do amor
cílices e lécitos derramam-se
tapete dentro junto às crateras
dos poros cerâmicos da teia
alheando-se do entorno e do vício
dos fungos velhos da cidade

súbito um fio pende a pique
sobre a luz do dia que inunda
o quadro têxtil do tempo lento
que espera dia após dia
pelo regresso do viajante

sentada de mãos distraídas
penélope espera a chegada
de ulisses na próxima centúria.

2006-01-30

no princípio havia um caminho

No ínicio havia um caminho. Em 1943, na "Biblioteca da Nova Geração", aparece o primeiro romance de Vergílio Ferreira, escrito entre Coimbra e Melo, de Janeiro a Dezembro de 1939. Propondo agir sobre a esterilidade, a obra vergiliana é ainda hoje, com o seu halo presencista, um interessantíssimo documento ficcional que emparceira com objectos literários de José Régio, Tomaz de Figueiredo, Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões, Fernando Namora, Marmelo e Silva e outros, todos com a afinidade temática da vivência estudantil coimbrã. O romance lírico tão capazmente tipificado por Rosa Maria Goulart encontra aqui já o seu início:
Era-lhe doce vaguear à beira do rio, a horas mortas, e ver as luzes espelhadas nas águas. Nas ruas reinava
um sossego de cemitério e ele podia passeá-las à vontade.
Interrogando-nos, é de alarme que Vergílio fala desde a década de 30:
Mas porque custa tanto a encontrar o caminho?

Vergílio e a neve do início genesíaco

Uma visita muito recente à Biblioteca Vergílio Ferreira, em Gouveia, mostrou-me, uma vez mais, que existem instituições e lugares que prezam os seus melhores. O saco de que recortei a ilustração é prova disso, pese embora o ligeiro descuido ortográfico. Disseminar a figura e o pensamento deste "príncipe das letras" (Isabel Mendes Ferreira dixit) é caminhar para a revelação.

2006-01-28

nos 90 anos de Vergílio Ferreira

É espantoso que o silêncio tenha sido a pedra de toque celebrativa de uma data marginal e deslembrada. Todas lembram o genial Mozart, esquecendo esse homem invulgar que foi e é Vergílio Ferreira. Como ele - poeta, romancista, contista, ensaísta, filósofo, professor, pensador... -, poucos mais, assim deleuziano e preso à pele e à corrente do olhar, ligando o fio discursivo às várias artes e aos múltiplos saberes. Nessa margem percorrida está o centro donde toma a palavra e a dissemina sem reserva, deus e colector de uma intimidade colada aos sentidos.
Hoje a palavra nasceu uma vez mais. Sangrando na neve, interpelando o silêncio do dia.

2006-01-25

poundianos, por fim

No salão nobre da casa de W., sob luz arquiletal, foi criada finalmente a liga monárquico-republicana-poundiana. Sem hora anunciada, o acto decorreu com inteiro sigilo, escondendo-se dois outros fundadores atrás da câmara Nikon, temendo o desvelamento e a pista. Visa esta liga zelar pela limpidez de actos e tudo fazer enquanto puder. Motivados pelos versos de Ezra Pound
És o olho de deus.
Luzem as colunas como cloisonné,
O céu em chumbo com os ramos de olmo.
os três ousados uniram esforços e aguarelizaram o momento. Limitadíssimas, aguardam-se escassas inscrições no livro de comentários. Até lá, ouçam-se os versos de ordem: "Primeiro queijo e mel / o mel primeiro".

2006-01-23

mesmo quando tudo começa com a pista

mesmo quando tudo começa com a pista. e, no entanto, sabemos que este conceito de pista anula o seu próprio nome e que não pode existir uma pista original, disse derrida, mesmo quando tudo começa com a pista. também novalis disse que a língua é um mundo à parte. assim uma parte do corpo, do fim do pontão, nítida e articulável, à língua traz a parte doce do prato. filógomes ergue a parte à frente do vulto esquivo, sem pista, cinza trabalhada por dedos hirtos. dois deles no prato adivinhando a figura de tempo póstumo. monteiro mor imagem dentro do filtro do vidro aponta desatento. atrás um amigo: desintencional partida do momento. por isso sem
Ao CRMonteiro, pela objectiva do objecto de "design"
pista. disiecti membra poetae. assim a pista, assim a língua. quod erat demonstrandum. tudo isto inventado, tudo afinal passado em volta de um almoço sofrível em conversa de bites encaixada no lugar da consciência, dentro da memória. mesmo quando tudo começa com a pista de um nome que resiste ao sentido. que nasceu dentro do nome.

2006-01-22

felizmente, caem com a calma os livros


livres caem com sentido sobre o cérebro do homem. nada vendo da visita, engole o obstáculo para dentro da noite. com hessel, também ouço a pressa como um banho na rebentação das ondas. onde a memória ou a íntima morada? gravadas as imagens, será que todos os índios são vermelhos como kant e a sua trança? no córtex alterou-se o mundo e ficou o afecto do nicho íntimo.

2006-01-19

os fundos do poder

ao fotógrafo incidental jcosta

fundo do poder se levanta não podendo ferir a liberdade que no verde-musgo do coração sempre existe em cada ser insujeito.

no átrio do corpo amigo vens com a câmara da vida que mostra que nos cantos da burocracia há lugar ainda para se ser feliz.
um golpe fotográfico fere o neurónio e eis que o segredo se revela:
o fundo do poder a teus pés rente ao chão como a antiga serpente da fábula.
talvez a imagem resista ao tempo e não haja morte nesta paragem.
talvez valha a pena avançar para dentro da lente para fora do tempo.
talvez um dia aí.



os fundos do poder

desde o fundo do poder
até ao cume da liberdade
sei que as botas que vejo
nem sempre são de calçar.

brilham de galanteio
em sorriso de verde-musgo
e no entanto são botas
também pra descalçar.

da fábula que aqui se narra
colhida dentro do átrio
poucos sabem do episódio
e menos ainda da conta.

fotógrafo acidental
com golpe afortunado
olha para mim sorrindo
e dispara sem flash.

pudor inultrapassável
impede-me um só neurónio
de dizer rapidamente
ser a arte do jerónimo.

agradeço-lhe o envio
de que sou conivente
esperando que em breve
outro lance nova gente.

conclui a presente história
que o navegador está a ler
que assim com tal glória
são os fundos do poder.

2006-01-17

"E pois com a nau no mar"


"E pois com a nau no mar" é um dos mais poderosos incipit da literatura mundial, daí partindo Ezra Pound para a 'dialéctica das formas' dos Cantos . Dentro já do húmido elemento, in medias res , pois, o homem deve escolher, afundando o que não lhe interessar na treva do esquecimento.

2006-01-16

vulcão


a poesia inscreve-se na pedra, junto ao musgo dos dias e aos líquenes do esboroar do tempo. directas, sentinelas de ti, ninguém domina a liberdade que das palavras se levanta. nem tu sabes ainda que caminho persegues. antes sabes que sem elas não existes. e é da fulguração dessa verdade que te alimentas, comendo as migalhas e as cinzas jazentes no fundo de ti, dentro do coração. ao peito levas a mão, de veias dilatadas. no sangue correm letras. tu és a primeira por mim bordada.

2006-01-15

fungos na cidade

a cidade apodreceu de novo. no centro do asfalto um dragão verde cospe lágrimas de tédio. redonda a volta não tem fim. um areópago de sonantes decide a morte que há muito chegou. um vampiro passa e engole o dia. não há ontem nem hoje dentro das muralhas. o amanhã resiste distraído contra o inverno escondido. onde um corpo a arder, onde a volúpia da chama? lentos, os corpos dessorados passam já sem vida. quando nova arcádia no jardim?

2006-01-14

a fábula e o espelho

aceitam-se comentários a Uma fábula de António Franco Alexandre. para discussão. boas leituras, pois.

2006-01-12

o fundo verde do tempo


o fundo verde do tempo dentro da água. a sombra de rilke na velha concha sangrando. uma pedra de solidão rola no crânio oco depurando os fungos da carne desaparecida. não há vida dentro do sonho nem ossos dentro da pele. em breve a catedral dentro da água a coluna dentro do corpo. um pássaro de néon esmaga as sombras e sobe à luz dos velhos dias. o fundo verde do tempo o fundo verde do sonho.

António Gancho, sempre! (1940-2006)


"SÓ NO CALOR da tua boca

a minha boca sufoca
que laivos da tua boca
quando com a minha se toca
boca viva boca morta
fica pouco a vida é curta
que laivos da tua boca
que laivos da vida louca"
( Poemas digitais )






2006-01-10

OFICINA

o nível e a bolha sobre o muro
e a página aberta dentro de mim
presa ao ouvido mal a ouço
súbita a sílaba enterra-se no cimento
como o azulejo se deita no lugar.

na ponta da língua o pincel despede
e em ondas caminho para lá das veias
sabendo que a desordem do teu fim
é a certeza da estrada que tenteio
rente ao musgo ao sussurro de um corpo.

seis caminhos abro nos pulmões
sangrando a terra morta na cidade
encontro larga avenida íntima fenda
que cruza a cúpula do entendimento
perto de ti, nuvem branca, sobre o muro.

elevo de ti o paraíso para que do poço saias
fumo longínquo no ocre dos telhados
vem comigo, "erosion", debelar o vento
inaudível na folhagem dos plátanos magros
e nas palavras escritas em muros de água.

da argila avanço dentro encostado à esquerda
sem rota exacta cálculo sabido ou desencanto
rompendo agora frágil telha dentro da casa
dentro do corpo dentro do sangue longe da pele
percorrendo com os dedos branco papel.

os ossos silenciosos demoram-se então
na rotina lenta do abismo aéreo de yerka
sede e sinal da voz de sinceras catedrais
que do suor da pedra lançam o grito fundo
acima dos caminhos para além do verde
musgo dos seis caminhos de além-terra.

vultos de barro telhas a pique pequena face
que ao fundo vejo no metal dos relâmpagos
na escuridão das janelas afundadas na cidade
vazios silenciosos comerciantes jazem nas caves
e matam a indústria que mata os homens.

um dia a palavra vai salvar o homem no ouro do muro.

2006-01-08

Dádiva




"Sátiro, a quem não tinha escapado o tom de ameaça contida naquelas palavras, disse-lhe com um sorriso matreiro a bailar-lhe nos lábios:

- Agora é a minha vez de te contar uma fábula a propósito de um mosquito e de um leão, que ouvi a um certo filósofo, e não preciso do teu elefante para nada na minha história: ofereço-to como presente."
(Aquiles Tácio, Os Amores de Leucipe e Clitofonte)
assim a perfídia dentro da insídia.

2006-01-03

assim a luz nasce

assim vindo de dentro da força sei já a beleza que tu és.
não espero convite nem olhar ácido dentro de mim.
corto a lâmina com os dentes e encaro os lumes do teu rosto.
os deuses póstumos de ti nada sabem sobre a rosa no teu corpo.
então como no livro de branquinho serei barão no campo santo.
frente ao abismo do poço que com as mãos desci aprendi-te.
só agora corri a espessura do tempo contra as vagas do escuro.
eis a luz no lóbulo por que ouves o som da escarpa que subi.
comigo vieste para dentro da fábula enganando o mito.
as canas dos ossos estremecem ainda do gelo dos marfins
e da refrega contínua das libações de amor eis-me chegado.
demorei porque vim e tarde cheguei para não perder o tempo
da procura e não dar azo a vãs esperas ou outros sonhos.
avanço um pé, plástica figura na tenra argila.