O corpo, o voo, a casa: sobre Poemas da ciência de voar e da engenharia de
ser ave, de Eduardo White
Eduardo White (1963-2014) pode não ser tão conhecido
quanto a palavra arte. Falecido há bem pouco, ele transporta consigo, isto é,
na sua poesia um irreprimível apelo à «engenharia de ser ave», como o diz, por
exemplo, o pequeno e grande livro Poemas
de ciência de voar e da engenharia de ser ave (1992), o único livro que do
autor possuía até à recente compra do quase póstumo Bom dia, Dia (2014), em hora decisiva publicado pelas Edições
Esgotadas. Ora, o título de 1992 entronca desde logo com a necessidade do
movimento para que a comunicação se estabeleça e aprofunde. Esta adjunção
imagética é um laivo performativo que afirma que a poesia é o que é, e também
voo.
Como diz Mia Couto, White, em vez de escrever sobre
aves, «escreve em aves». E isso é logo visível no primeiro poema do macrotexto
que diz: «No vento e sem milagres, sobem as aves pelo ar. / Nenhum fogo as
suspende. Só sangue e movimento. / Matéria carnal. A casa solar.» (p. 11). Este
sangue e este movimento são o corpo-carne à procura da casa significativa.
A ação sobre o objeto artístico celebrado, nessa
ondulação de gestos que é dinâmica supletiva sobre uma poética fortíssima,
desenrola-se em teoria na passagem dos versos, dos vocábulos: «Põe a música
sobre os dedos, a água, a sede, inclina para dentro o silêncio, o azul, o
vento, tens as mãos para fazê-lo, essas ignaras abelhas do mel e do afecto,
deixa que se perca toda a sabedoria, rasga-a com os dentes, desterra-a do
pensamento». Este trecho poético diz bem o que pode ser um objeto estético
sobre outro ou uma outra obra de arte.
Ser arte, mostrá-la aos olhos e fazê-la com o corpo,
pode ser mesmo aquele whitiana bebedeira «que queima com lentidão / a cabeça, /
traz as luzes desde as vísceras, / o sangue a ferver nas vias tubulantes, /
traz a natureza estimulante das paisagens / que temos dentro» (p. 17).
Voar é aqui, pode ser aqui, um corpo que é objeto,
obra de arte dinâmica, obra insurgente: «Voemos. / Voar não é senão essa
ilusão, / fazê-la possível. Tê-la vivendo. /Voar é estender as mãos / a esse
desejo que nos dói / como um punhal insurgente.»
Não será a insurreição o destino do criador e da
criação artística, com o corpo voando
ambos e fazendo-se casa habitável?
[Eduardo
White, Poemas da ciência de voar e da
engenharia de ser ave, Lisboa, Caminho, 1992.]
Viseu,
8 de outubro de 2014
©Martim
de Gouveia e Sousa
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