2014-10-08

O corpo, o voo, a casa: sobre «Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave», de Eduardo White


O corpo, o voo, a casa: sobre Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave, de Eduardo White

Eduardo White (1963-2014) pode não ser tão conhecido quanto a palavra arte. Falecido há bem pouco, ele transporta consigo, isto é, na sua poesia um irreprimível apelo à «engenharia de ser ave», como o diz, por exemplo, o pequeno e grande livro Poemas de ciência de voar e da engenharia de ser ave (1992), o único livro que do autor possuía até à recente compra do quase póstumo Bom dia, Dia (2014), em hora decisiva publicado pelas Edições Esgotadas. Ora, o título de 1992 entronca desde logo com a necessidade do movimento para que a comunicação se estabeleça e aprofunde. Esta adjunção imagética é um laivo performativo que afirma que a poesia é o que é, e também voo.
Como diz Mia Couto, White, em vez de escrever sobre aves, «escreve em aves». E isso é logo visível no primeiro poema do macrotexto que diz: «No vento e sem milagres, sobem as aves pelo ar. / Nenhum fogo as suspende. Só sangue e movimento. / Matéria carnal.                                                                                                           A casa solar.» (p. 11).  Este sangue e este movimento são o corpo-carne à procura da casa significativa.
A ação sobre o objeto artístico celebrado, nessa ondulação de gestos que é dinâmica supletiva sobre uma poética fortíssima, desenrola-se em teoria na passagem dos versos, dos vocábulos: «Põe a música sobre os dedos, a água, a sede, inclina para dentro o silêncio, o azul, o vento, tens as mãos para fazê-lo, essas ignaras abelhas do mel e do afecto, deixa que se perca toda a sabedoria, rasga-a com os dentes, desterra-a do pensamento». Este trecho poético diz bem o que pode ser um objeto estético sobre outro ou uma outra obra de arte.
Ser arte, mostrá-la aos olhos e fazê-la com o corpo, pode ser mesmo aquele whitiana bebedeira «que queima com lentidão / a cabeça, / traz as luzes desde as vísceras, / o sangue a ferver nas vias tubulantes, / traz a natureza estimulante das paisagens / que temos dentro» (p. 17).
Voar é aqui, pode ser aqui, um corpo que é objeto, obra de arte dinâmica, obra insurgente: «Voemos. / Voar não é senão essa ilusão, / fazê-la possível. Tê-la vivendo. /Voar é estender as mãos / a esse desejo que nos dói / como um punhal insurgente.»
Não será a insurreição o destino do criador e da criação artística,  com o corpo voando ambos e fazendo-se casa habitável?

[Eduardo White, Poemas da ciência de voar e da engenharia de ser ave, Lisboa, Caminho, 1992.]

Viseu, 8 de outubro de 2014

©Martim de Gouveia e Sousa

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