Murilo Mendes, por Guignard
Antitediário
nacional com Murilo Mendes: felizmente, respira-se
A
Aquilino Ribeiro e João de Araújo Correia
Quando Murilo Mendes escreve as suas Janelas verdes expende, em simultâneo,
no aparato textual e nas múltiplas alusões, um conjunto de afinidades eletivas
literárias portuguesas que importa conservar e apreciar. É funda a apreciação
de Luciana Stegagno Picchio. Defende a distinta lusófila que «Murilo Mendes
sabia Portugal como poucos portugueses o conhecem: sabia-o com o
hipocorrectismo do converso, do regressado»[1],
acrescentando ainda, entre outras considerações, que a língua portuguesa que
tinha recebido do Brasil, «língua fluente de Camões e de Vieira, de Gregório de
Matos e de Machado de Assis, mantinha contudo o cheiro de manga do quintal de
seus avós brasileiros»[2]. E
isso, segundo penso, só pode ser positivo – deixemos, pois, que o cheiro da
manga nos invada.
Os líquidos ressonantes de Murilo Mendes
são vagas insurgentes, avessas a fórmulas e preconceitos. O texto sobre
Guimarães, dedicado ao enormíssimo Vergílio Ferreira – e o paratexto assinala
bem a enciclopédia de afetos do escritor de Minas Gerais! -, é um fabuloso caso
de completude cultural e de desvelamento de profundos conhecimentos. Vê-se
também isso no complexo das janelas que Murilo tão abundantemente entrevê pela
cidade e nos cede em situação comunicativa. Não espantam, certamente, os nomes
de Gil Vicente, Soror Mariana Alcoforado ou de Almeida Garrett – este, outro
viciado do desvelamento -, o mesmo não se podendo dizer da presença de João de
Araújo Correia, de incontestável valia e mais modesta fama, que aparece no
excurso muriliano como amador de boa facas: « “(como faca de cozinha, não quero
haja igual nem mesmo em Guimarães”, assim escreve João de Araújo Correia)»[3].
No capítulo sobre o Porto, dedicado a
Óscar Lopes, convoca Murilo Mendes o dito do fortíssimo Teixeira Gomes que vê
na Invicta «a cidade mais pitoresca do mundo». Vários nomes literários afluem:
Cesário, Silva Pinto, Jaime Cortesão e António Nobre, a «nossa maior poetisa»,
apodo que o autor brasileiro repisa, para logo dizer: «Nem sempre»[4].
Dedicando capítulos e locais a autores
fortes (Alberto de Serpa, Ruben A., Adolfo Casais Monteiro, José Gomes
Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, António Gedeão e Natália Nunes, Pedro
Tamen, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Orlando Costa, Luiza Neto
Jorge, Salette Tavares, Ruy Cinatti, Carlos de Oliveira, António Ramos Rosa,
Alberta de Lacerda, José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, Alexandre O’Neill,
Herberto Helder, Isabel da Nóbrega e mais uns tantos, Murilo Mendes, de A a D
do setor 1, desenrola toda uma literatura e desenha uma sugestiva linha
canónica do século XX português. E no miolo há os Pessoas, os Anteros, os Eças,
os Pascoaes, os Almadas, os Torgas, os Régios, os Junqueiros, as Florbelas, os
Teixeira-Gomes, os Bocages e tantos outros bailando gostosamente sobre
pormenores belíssimos noiváveis apenas com um amplo saber que só assiste aos
devotados.
Namorantes, os capítulos do setor 2, de
A a C, integram, por exemplo, Gil Vicente, Padre António Vieira, Mariana
Alcoforado, Bocage, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Teixeira de
Pascoaes, Miguel Torga, Antero de Quental, Camilo Pessanha, Mário de
Sá-Carneiro, Florbela Espanca, Afonso Duarte e Fernando Pessoa, cabendo as
dedicatórias aos próprios ou a personalidades de incontestável condição – e
lembro José Augusto-França, Ruy Belo, Natália Correia, Bernardo Santareno, José
Terra, Mário Cesariny de Vasconcelos…
Por estas janelas murilianas, vejo,
claramente, toda uma literatura. «A casa está nele»[5],
como diz Eucanaã Ferraz. Estará a literatura em nós?
Viseu, 9 de outubro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa
[1]
Luciana Stegagno Picchio, «As Janelas
verdes de Murilo Mendes», in Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 11.
[2] Id., ibid.,
p. 12.
[3]
Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila
Nova de Famalicão, edições quasi, 2003, p. 17.
[4] Id., ibid.,
p. 23.
[5]
Eucanaã Ferraz, «Em Portugal, com Murilo Mendes», in Murilo Mendes, Janelas verdes, Vila Nova de Famalicão,
edições quasi, 2003, p. 216.
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