2006-07-16

João d' Almeida (1902-1935): em eco se converta

Yolanda Bragado

Quase desterro para esta voz nua. Junto ao tempo, pouco eco. Só o sopro apagado da brisa da poesia. Quem sabe ou quem diz uma palavra de ti, Poeta?
João d' Almeida nasceu em Sezures, Penalva do Castelo, em 1902, vindo a falecer trinta e três anos depois, em Luanda. Mais de cem anos transcorridos sobre o nascimento do poeta, não seria fácil vê-lo celebrado na nossa circunstância. E, no entanto, a sua vida breve inscreveu um lugar literário que urge redimensionar.
Estudante de Direito em Coimbra (1920-1926), publicaria em 1923 o seu único livro “Novilúnio” e viria a integrar, nesse mesmo ano, a equipa directiva da revista coimbrã “Bizâncio”. Estes dois factos literários, quase simultâneos, diga-se, vieram a eternizar-se pela pena de José Régio nas “Páginas do Diário Íntimo”, o que, de algum modo, assegura a glória futura do esquecidíssimo escritor penalvense. Concluído o curso universitário, viria João d' Almeida a exercer advocacia em Luanda, cidade onde viria a morrer, depois de também por lá ter desempenhado funções de chefia na secretaria da Câmara Municipal.
João d' Almeida é um decadentista epigonal, como se colhe, por exemplo, no poema “Ária do Poente" (pp. 21-23): "sinto-me decadente, e adoro o abismo / do Poente, num desmoronar completo." Sem queda, vejamos agora, em breve contextualização periodológica, a possível sagração e destino deste poeta de um livro só.
Com raiz inscrita na área franco-belga, o Decadentismo difunde-se, no penúltimo decénio do século XIX, pela Europa e América Latina, vindo a perder predominância com os alvores do novo século, não obstante a sobrevivência epigonal a par do Simbolismo, a miscigenação ocasional com o Neo-Romantismo e a adstringência a ornamentalismos artísticos.
O movimento decadentista, nascido de uma crise de mentalidades e de sensibilidade, postula uma sagração poética, com possibilidade degenerativa superior e requintada, onde avulta um individualismo anti-heróico e fraccionado em nevropatia, sinal de tédio e prostração.
Sumptuarismo, anomalismo, artificialismo e esteticismo serão ainda palavras de ordem do conhecimento poético decadentista, que, do ponto de vista sugestivo, alinha no sentido de uma renovação prosódica e musical, com estranhamentos aliterantes, sinestésicos e vocabulares. Não deixa também de ser interessante a preocupação do artista decadente com a experiência pessoal, a auto-análise, a perversão e as sensações elaboradas e exóticas (advenientes, por exemplo, das decadências alexandrina, romana e bizantina).
Em Portugal, o estudo desde estilo epocal nem sempre foi olhado com a lucidez devida. Não obstante os esforços pioneiros de um Feliciano Ramos, de um Pedro da Silveira ou de um Túlio Ferro, o Decadentismo continuou a ver obliterada a sua complexidade, sendo subsumido a epifenómeno do Simbolismo ou entendido como seu dessoramento epigonal.
Essa lentidão emancipativa - devedora também da resistência manifestada pela crítica francesa, que dominou por largo tempo, influenciando o panorama nacional - ganhou alento decisivo, no sentido da autonomização, em virtude da obra de José Carlos Seabra Pereira, ainda hoje nodal, “Decadência e Simbolismo na Poesia Portuguesa” (1975), onde se estabelece a destrinça clara entre os dois estilos epocais distintos que são o Decadentismo e o Simbolismo, aparecendo-nos o primeiro como uma emergência dos anos 80, com implantação na transição da década, precedendo em pouco o segundo, prolongando-se de forma paralela até ao auge ( 1892-1902) e, depois, de modo epigonal na periferia de “Orpheu” e da “presença” .
Não se devendo confundir o estilo de época Decadentismo com a tópica da decadência ou com a síndrome da decadência nacional finissecular, os estudos dedicados à literatura de fim-de-século até “Orpheu” pelo reputado professor de Coimbra têm contribuído substantivamente para a clarificação semântico-pragmática dos sistemais epocais implicados nesse lapso temporal. Assim, de pleno direito e especificidade própria, o Decadentismo português renova o fim-de-século a partir de revistas portuenses e coimbrãs (“Os Nefelibatas” , “Revista d'hoje” , “Boémia Nova”, “Os Insubmissos” ...), com nomes como Raul Brandão ou Júlio Brandão (Porto), e António Nobre ou Eugénio de Castro (Coimbra), bem como com as presenças de Camilo Pessanha, Gomes Leal ou Fialho de Almeida, a par de um sem número que não enumero (um José Duro, um Júlio Dantas, um José de Lacerda...). Com parco alcance na literatura dramática (D. João da Câmara), com maior visibilidade na ficção (Fialho de Almeida, Raul Brandão, “Gouaches” de João Barreira...), o nosso Decadentismo tipifica-se mais capazmente no modo lírico, seja nos poetas coevos do momento áugico, seja nos epígonos do século XX (uma Judith Teixeira, um Luís de Montalvor, um Alfredo Pimenta, um João d' Almeida ou um José Galeno ), com consabidas - e já citadas atrás - características temáticas e formais, onde dominam, agora com exemplificações de “Novilúnio” , os pensamentos agónicos ("E fico agonizando"), as taras psiconervosas e viciosas ("Fico a delirar, irrequieto, / preso desta emoção toda histerismo..."), as excentricidades e bizarrias multimodais ("Ei-la que vem andando, a Grande Dama, / mãos em calice aberto, sôbre o seio..."), a musicalidade e a liberdade prosódica ( Álvaro Maia acusaria João d' Almeida de não saber contar as sílabas), a imagética sensualista (rutilista, necrófila, nosológica, etc.: "Templo de agata", "tenho suores na fronte cadavérica" ...) ou os raros vocábulos ('quimeral', 'longevas', 'vesperal', 'latescentes'...).
Pintor de poentes rútilos e de desejos febris, outros encantos reserva João d' Almeida aos atentos leitores. Converta-se esta memória centenária em eco do tempo e em palavra perdurável. Com menos urze e mais régia flor.

2 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

este sim um texto régio contra o bizarro das ignorâncias....


______________________Martim. ...como eu gostava de saber dizer assim.

um beijo. até breve.

Anónimo disse...

Fabuloso Martim. Uma vez mais, obrigado! Abraço.