Quase podres, as folhas dos plátanos enfrentam uma chuva de 50 anos. As cordas de água não morreram ainda. Meio século passado, quase exacto, as abelhas lutam pelo mel que a democracia parece negar. Cai a chuva no passado e no presente. Ainda agora, em conversa amiga, matinal, sem teatro, vi sobre a nossa cidade as “chamas ácidas de enxofre”. No fundo das coisas e no reverso da acidez, canta Carlos de Oliveira a canção contra o gelo do esquecimento. É um grito único e lustral que se ouve.
No princípio, era o símbolo. Não completamente arbitrário, o símbolo encerra um vínculo natural entre significante e significado. Olhando a vida e o mundo, vemos que o processo simbólico se vai apropriando de tudo, irrompendo nas acções e nos gestos dos homens.
No espaço semiótico, o sistema literário não é excepção: nele, sempre alguma coisa substitui ou representa alguma coisa diferente, por sugestão ou relação.
Transbordante de símbolos e representações (e algum “defeito” da obra pode estar aí), “Uma abelha na chuva” (1953) de Carlos de Oliveira é, no sentido de Manuel Gusmão, uma espécie de tragédia cruzada por vários destinos trágicos.
Obra de imaginação eficaz e rigorosa, o romance de Carlos de Oliveira “observa” o mundo real através de tenso trabalho verbal iluminador do grande símbolo de tragédia e das referências simbólicas defluentes que alguma crítica encontra nas palavras tão autorais como são “paisagem” e “povoamento”. Da sintaxe simbólica da tragédia com a luta gandarense (paisagem e povoamento, afinal), segue o livro o seu trajecto tenso de símbolos, como o afirmam os pares opositivos fogo/água, mel/cinzas, mel/tabaco, abelha/água, mel/chuva, fonte/rio ou mar/poço, com variações de significação de acordo com as representações e os momentos textuais.
O signo trágico assenta na utilização articulada de palavras-símbolo, assumindo cada uma as metamorfoses decorrentes da sintagmática narrativa. A tragédia resulta da interacção dos elementos que transformam o mel em fel, tudo arrastando para a corrosão e para as cinzas. Em paisagem cinérea, armadilhado o povoamento pelo destino trágico, a morte de Clara é decidida pela paixão e pela impossibilidade de ser fecunda num espaço dominada pela secura e pelo incontacto. O mel cede ao fel e a “moeda de ouro”, com a perfeição do círculo e o valor da perenidade, é também Jacinto, assim designado por onomástica significativa que convoca a perfeição, a beleza e a preciosidade. A morte anunciava-se desde há muito: o pisar das folhas caídas e a devoração desse “oiro” pelos vermes diziam já a morte de Jacinto, corpo jovem que foi bode expiatório de uma comunidade improdutiva e viciosa.
Afinal, o tempo dos senhores, numa narratividade cíclica feita da vacuidade dos serões e das crises conjugais de Álvaro e Maria dos Prazeres, esmaga o tempo dos dominados que progride para o aniquilamento. E nem assim cessa a esperança, a luta.
O código temporal do romance caracteriza-se pela linearidade da história e pelo ordenamento. A par, a conflitualidade e a frustração relacional propiciam o recurso à analepse, que afirma através da imagem da água o primado da ancestralidade face a um tempo doloroso do presente de que conhecemos cerca de quatro dias. A constância dos fluxos aquáticos ao longo da obra, afinal, símbolo claro do fluir do tempo, traz consigo a imagem da irreversibilidade.
Em conclusão, o código temporal e o repertório simbólico de “Uma abelha na chuva” contribuem decisivamente para a unidade de uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX. Quem vem rasgar esta chuva densa?
8 comentários:
Grande autor e enorme romance. Abraço.
gostei
gosto de plátanos..sabias....temos tantos, imponentes, tal como as palavras
jocas maradas
Ainda me lembro do que senti quando li este livro e gostei de ler estas tuas palavras.
ADOREI. Inclusive vi o filme do Fernando Lopes. Beijos.
boa-noite martim
:
três
pingas
na abelha
bicolor
_
assim imensa
a literatura
!
abraço grande
Martim
Desculpe voltar de novo mas não podia deixar de referir que o Fernando Lopes, que conheci mt bem no VÁVÁ..realizou outros maravihosos filmes, estou a recordar me do Encoberto...Crónica dos Bons Malandros...Nós por cà todos Bem. Beijos
quem?
mas oh Martim.....o Martim!
sempre a rasgar o esquecimento.
beijo :)
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