2006-07-11

António de Albuquerque, escritor panfletário?


D. António de Albuquerque do Alardo de Amaral Cardoso e Barba de Meneses e Lencastre ou D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso de Vilhegas e Guzman Barba Alardo de Lencastre e Barros de Menezes Pina e Lemos, fidalguíssimo, nasceu em Viseu, na casa do Arco, em 11 de Março de 1866. Era filho de D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso e de D. Emília Augusta Barba de Lencastre ou D. Emília Augusta Barba Alardo de Lencastre (Amparo), tendo casado pela primeira vez com a senhora D. Luíza Mousinho de Albuquerque ou D. Maria Luíza de Pinho, de quem teve dois filhos, Rodrigo e Maria de Lurdes, ambos com geração.
Miquéque, assim seria conhecido em Viseu, esgotou a juventude em viagens, absorvendo nessa fase uma educação e uma instrução tipicamente parisienses. A influência da literatura francesa e do republicanismo facilmente o penetraram. Já em Portugal, a sua maneira mundana e convivial era censurada e incompreendida. Chegado ao estrépito do papel principal, era muitas vezes mero joguete.
Sobre o seu carácter de homem, Rocha Martins adianta um conjunto de designativos que Cezar dos Santos, o "biógrafo" de António de Albuquerque, confuta veementemente. Semeando ventos sempre, o escritor viseense não se coibiu de nos apresentar, no seu Sidónio na lenda, um Sidónio Pais degenerado e sofredor de desequilíbrio atávico.
A obra de António de Albuquerque não é abundante. Dentro do modo lírico, publicou Arco-Íris e o poemeto Maria Teles; na ficção, sempre em romance, Escândalo! (1904), O Marquês da Bacalhoa (1908), A Execução do Rei Carlos (1909) e O Solar das Fontainhas (1910); prefaciou o livro de Gomes de Carvalho Morte Civil (1914); e, por último, legou-nos o volume de investigação histórica Sidónio na Lenda (1922).
Se a obra lírica nada traz de particular, fundando-se numa incaracterística toada debutante, a tradução de Les Civilisés (1906) de Claude Farrère (1876-1957) trouxe-lhe uma aprendizagem para a fase romanesca que se iniciará em 1904, com Escândalo! .
Segue-se-lhe o muito polémico O Marquês da Bacalhoa (1908), título insinuado, ao que parece, por Gualdino Gomes, e que substituiu o previsto Enseada Azul. Saído sob chancela da Imprimerie Liberté de Bruxelas, que a tal obrigava o gravoso da matéria, defende Rocha Martins que o "editor do livro injurioso" foi Gomes de Carvalho. Raul Brandão, em Vale de Josafat afirma que o imprimiram "num quarto andar da Rua do Arco do Bandeira, numa destas pequenas oficinas a que os tipógrafos chamam catraia ." Preso ao escândalo, tudo se estampa na capa do romance, finalizado em 6 de Setembro de 1907 e publicado no início de 1908: sob a epígrafe baudelairiana da crença nas capacidades individuais, estampa-se a "vera efígie" daquele que há-de morrer no Terreiro do Paço, local onde, assim o afirma Henrique Barrilaro Ruas desde há muito, nascerá um dia o “homem novo”.
Não obstante os 800 réis que faziam d’ O Marquês um livro caro, as vendas sobem a 6000 exemplares. Na propalada e requestada obra contam-se "as tropelias de um ministro ‘Nunes’ durante o reinado do ‘marquês da Bacalhoa’, não sendo muito difícil descortinar a que personagens reais correspondiam os nomes postos no livro pelo autor, António de Albuquerque.". Tal exercício da referencialidade efectuou-o Vasco Pulido Valente no início de 1998, ao referir que as personagens são "o marquês (D. Carlos, na realidade, proprietário da Quinta da Bacalhoa), a marquesa (D. Amélia); o conselheiro João Nunes dos Santos (João Franco); D. Álvaro de Luna (Mouzinho de Albuquerque); Maria de Silves (a condessa de Sabugosa); e a condessa da Freixosa (a condessa de Figueiró, a famigerada Pepa Sandoval, amiga da rainha)."
Cecília Barreira sustenta que em tal romance clandestino e de grande voga, que “em Lisboa se vendia à sorrelfa” e “onde se abocanhava a dignidade da rainha”, existem alusões “aos amores sáficos da rainha D. Amélia, por quem Mouzinho de Albuquerque nutriu uma paixão, e cujos amores contrariados, se teriam traduzido pelo suicídio.”.
Dito roman à clef ou livre à clef, Carvalho Homem prefere apodar a obra de Albuquerque de romance-panfleto e sobre o Autor adianta tratar-se de “um plumitivo de baixo nível cultural e moral”. Similar posição tomam Júlio de Sousa e Costa e Rocha Martins. Maria Filomena Mónica, em discurso mais objectivo e sereno, defende que O Marquês da Bacalhoa “constitui um excelente resumo da mitologia que rodeava os costumes do Paço.”.
Panfletário e herdeiro do intervencionismo neo-romântico de proveniência naturalista, enformado no mecanicismo e no jacobinismo, O Marquês da Bacalhoa não oferece relevo técnico-compositivo ou estilístico, dele ressaltando um iniludível teor doutrinário e uma coragem indisfarçável. Afinal, o valor desta obra assenta no seu carácter heteróclito e polemizante, onde abundam as alusões referenciais à família real e as asserções de uma tese político-social revolucionária, bem como na evidente feição paradocumental que o torna incontornável no estudo da época.
Na mesma linha referencial, sai, em 1909, A Execução do Rei Carlos, obra que prima por uma força contestatária contra as monarquias, o catolicismo, a família, o jornalismo luso, a política portuguesa e, de acordo com o prefácio e a epígrafe bakuniniana, contra o patriotismo. Exalçam-se com perenidade mitificante os regicidas, nomeadamente Buiça, e o propagandismo social típico da corrente vitalista do neo-romantismo.
No ano seguinte, em 1910, com dedicatória a Teófilo Braga e com datação final "Paris, 15 de junho de 1910", publica António de Albuquerque o romance O Solar das Fontainhas , com o subtítulo Cenas do Porto , o que nos permite intuir um regresso a um criticismo social semelhante ao de Escândalo! , com a gravitação de alvos assinalados e com a presença de artistas militantes imbuídos de acrasia e de sede de justiça. Interessante se torna sublinhar que Gusmão, o alter-ego do escritor, declara ser autor de romances injustiçados...
No ano de 1922, sai a lume Sidónio na Lenda. Estudo crítico, "um interessante estudo sobre a trajectória de Sidónio", que inclui também um texto de Bourbon e Meneses sobre José Júlio da Costa e uma conversa com o mesmo dirigida por Manuel Ribeiro.
Pelas quatro horas da manhã do dia 2 de Julho de 1923, na sua casa de Sintra, António de Albuquerque, "penitenciado e ungido", depois de uma vida cheia, entregou-se a Deus num abraço ostensivo.
Nesse tempo de verdade, já quase morte, em atitude fungível e requintada, catoliciza-se, lamenta as aduções regicidas ("-Oh! El-rei! Nunca lhe entendi a grandiosidade da sua alma e nunca lha entendi porque El-rei era mais artista do que eu. Hoje!", terá dito) e procura o perdão de S.M., a Senhora D. Amélia, através de carta escrita no dia 14 de Maio de 1923 e nesse mesmo dia reconhecida no notário lisboeta A.G. Videira, vindo-o a obter.Tal missiva, reproduzida em fac-simile na obra de Cezar dos Santos, tem ainda a curiosidade de desvelar por baixo da assinatura de António de Albuquerque a adenda de Visconde do Amparo, assumindo assim uma autoadmonição indiciadora de que vivera como uma fictio personae .
Em acto pensado e de conseguido alcance deôntico, António de Albuquerque reconheceu os pretéritos e exautorados actos. Sempre só, depreciado e solitário. E, como se sabe, a solidão tem perdão...
Assim se conclui que esse acto sem escrita, desapenso do artefacto literário, acção do homem e não dos deuses, inscreve no fechamento de uma vida a verdade de que um trajecto literário se altera pela palavra final, dita e não escrita.
Por via da publicação recente de O Marquez da Bacalhoa pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, com prefácio de José-Augusto França, podem os leitores viseenses e nacionais relembrar um escândalo que abalou os primeiros anos do nosso século XX. Valerá a penar denegar uma óbvia presença?

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante. Abraço!

Anónimo disse...

Já tinha ouvido falar deste romance. Fiquei a saber mais. Obrigada e boa-noite!