2006-07-04

e o mundo também morre: as palavras geladas de Emanuel Félix


Sobre a voz da poesia também a morte rói por dentro do gelo. Falo, ontem o fui dizendo, que Emanuel Félix é uma das maiores vozes discretas da poesia portuguesa. Morreu há mais de dois anos, em Angra do Heroísmo. Os poetas não morrem, nem tão pouco se dão ao halo infecto da politiquice, que sempre os usa e gasta e banaliza. Os políticos anunciam que Portugal apoia o PP de Espanha, que o desemprego não dói, que a ferida não se sente, que os Filipes são amigos do nosso país (pelo menos, desde 1580!), que não há mal em volta, porque a nação tanga a tanga, toma e retoma, sem luz e com luz, que o euro traz euros e o roque vem ao rio Tejo, com música, pois, e que o desvario, que é fraude, fuga e onzena, afinal, não é, que a consciência está tranquila, estranhamente impoluta. O povo, esse, não beba, não fume, não pense. Paro e olho: as eleições que virão hão-de colar-se aos poetas, com os efeitos devastadores de sempre e com prosápia diversa da do nosso conhecido “Emplastro”. Neste intervalo, assusta toda a corrosão do silêncio cultural, todo o acto que não seja fachada.
As mais belas e directas palavras são as dos poetas. Os filósofos não hesitam e proclamam-no. Outros, por Antero repulsados da casa da poesia, abusam de um verso retirado à sorte de um poema que não conhecem. A nossa pátria é a poesia portuguesa. E deflagra-se a ironia de um não espantado silêncio.
Grito de dentro: Emanuel Félix não morreu, porque longe, porque perto do hálito do mar. Subiu ao fogo do éter, elevando-se nas sílabas de uma arte poética que diz: “Na madrugada o operário / De madrugada o poeta / Recolhem as palavras mais precisas / Para o tempo que vem que se avizinha... // Enquanto um sol de fogo se levanta...” (A Palavra O Açoite, 1977).
Emanuel Félix Borges da Silva nasceu, em Angra do Heroísmo, no dia 24 de Outubro de 1936. Por lá permaneceu, descuidado do Continente que pouco o cultivou. Dedicado desde cedo a páginas literárias, publicou o primeiro livro de poesia com apenas 17 anos. Em 1956, conheceu na sua ilha o poeta norte-americano David Morton. Desse encontro, resultou a aventura concretista de 7 Poemas (1958). Dirigiu com qualidade inatacável os três números publicados da revista açoriana Gávea (1958). Publicou, para além dos títulos mencionados, O Vendedor de Bichos e Poemas de Melibeia (1965), Sete Poemas Chineses (1967, com desenho caligráfico de Ling Hsien Phu), Angra no Último Quartel do Século XVI (1970), A Viagem Possível (Poesia-1965/1981) (1984), Seis Nomes de Mulher (1985), António Dacosta – Esboço de um Roteiro Sentimental (1988), O Dragoeiro (Dracaena Draco da Macaronésia) Chave da Grande Obra em Jerónimo Bosch (1988), O Instante Suspenso (1992), A Viagem Possível (1993, 2ª ed.), Os Trincos da Memória (1994), Iconografia e Simbólica do Espírito Santo nos Açores (1995), Habitação das Chuvas (1997) e 121 Poemas Escolhidos (2003).
Poeta, ensaísta, contista, cronista, crítico literário e de artes plásticas, artista plástico, professor de todos os graus de ensino e investigador, Emanuel Félix acumulou ainda, depois de estudos em Paris, Anderlecht e Lovaina, um importante saber científico sobre obras de arte, que aprimorou ainda em conhecidos museus europeus. Também auditor cultural, conferencista e associado de inúmeras instituições culturais, o poeta açoriano deixou ainda centenas de artigos disseminados por publicações nacionais e estrangeiras.
O poeta, esse, “de olhos cor de infinito” e com o “destino pássaro e árvore”, cruza o momento da morte com a sabedoria dos conhecedores do avesso das coisas. Não mais dizendo do que o ouro de cada dia, a palavra de Emanuel Félix escuta “o coração da noite” e nasce com a manhã e morre com o momento único do nada dizer-se de novo. Che cos’è la poesia? Com Derrida, desmobilizo o saber e a ele renuncio, seguindo o ditado da poesia que ouço: há um fogo nítido, vindo do corpo e do seu retiro, que é alegria súbita e voz do mar; há um gelo que é o sentido das coisas e a finitude de tudo; há um homo faber que é poeta desde o abismo do tempo e que diz a perfeição mais lustral.
Álamo de Oliveira di-lo “Poeta perfeito”. Digo que connosco se fazendo, cada dia se fazendo. Em poema consabido, o poeta açoriano diz que a morte é “uma coisa que tudo simplifica”. Os signos agudos de cada poema aí ficam, sem explicação. “Ame o homem a pedra / e pronto”. O resto é o nascimento da prosa…

6 comentários:

Anónimo disse...

Poderoso poeta... Abraço!

isabel mendes ferreira disse...

nunca a Morte. aqui. nunca o gelo.


antes o degelo da verdadeira poesia.


a encher-nos de água.



beijo Martim.

Anónimo disse...

Sempre gostei de Emanuel Félix... Boa-tarde e beijos!

Anónimo disse...

Muito interessante!... J. Bandeira.

Anónimo disse...

Muito interessante!... J. Bandeira.

Su disse...

gosto de ler.te

fico "horas perdida"

jocas maradas