2006-07-19

antónio gil e "a céu aberto": para além do poema

Ancorando-me no plano da objectividade ciceroniana, pergunto: por que tanto nos encanta este livro condensado e azulescente de título a céu aberto? Uma só resposta julgo possível, ainda fora do texto: “porque nos prodigaliza” o Poeta “com que retemperar o espírito desta agitação do foro e dar descanso aos ouvidos saturados de altercações”.
O Poeta vale por si, pela sua natureza inquieta, pela certeza divina de cada palavra necessária. Por esta razão chamou Énio sagrados aos poetas. e Platão os disse filhos dos deuses.
António de Sousa de Macedo, escritor seiscentista, defende que “nascida com o Mundo cresceu a Poesia em todas as idades dele.” Vem do princípio dos tempos a poesia de António Gil, próxima das tensões fecundas da música, adunatória das sugestões da pintura e belo exemplar de perplexidade filosofante, nomeadamente pela deflagração do princípio irónico.
Caminha, pois, António Gil desde distantes levadas, desde um tempo já incrível de distância. Ontem como hoje o Poeta avança pela cidade com um modo transparente de avançar, com um jeito inconfundível de o fazer, mal tocando o chão, aéreo, quase atmosférico. Avança no presente da memória, com um livro de nome Poesia Nascente (éramos estranhamente jovens, não achas?) e um diktat interior mais estranho, definitivamente inscrito em si, dizendo para uns poucos leitores por si escolhidos:


Trouxeram-me as palavras
É quase um abismo ser eu

É inútil pensar
Sigo o caminho das palavras

O Poeta volta sempre ao lugar das palavras. Ei-lo que regressa à cidade com uma envolvência outra, depois de caminhos andados e vividos e trabalhados. Mas não vem só – traz um vasto trilho de palavras, transparências e atmosferas a céu aberto. Nem só: também um prémio conceituado de poesia e um vasto conjunto de obra édita e inédita.
Convido-vos à leitura deste livrinho, destra criação de matéria negra, também transparente, de uma qualidade emocional por vezes rara. Exige-se, no entanto, um conhecimento das coisas que é unidade essencial entre o sujeito e o objecto. Esse clic necessário não pode ser ensinado e é a literatura. Chamemos-lhe intuição.
Querem conhecer a verdade deste livro? Imaginai, no sentido de Charles Peirce, o que essa verdade pode ser. É uma questão de esforço contra a intensidade da literatura.
Quem o diz é uma Susan Sontag e eu gloso: dever-se-á “aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais. Não vou, também por isso, interpretar o livro a céu aberto, empobrecê-lo ou esvaziá-lo. Ele aí está como um objecto esplêndido à espera do desvio do vosso olhar.
Avanço um pouco. Pego em filigrafias (2002), outra criação de António Gil que ao público se vai entregando. Eis que se revela o que tem lugar em a céu aberto. Ouçamo-lo, pois, junto ao som múrmuro da vontade:

Vesti outra pele para poder dizer
sobre outro corpo o que por hábito
apenas escrevo sobre o ferido dorso
da noite

durante o tempo que viveu
esta insónia alimentou-se da afronta
de tudo saber da caça excepto
o que fazer da presa

É esta uma outra caçada. É esta uma outra presa que o Poeta deseja libertada em cada um de nós. Caminho que o Poeta meticulosamente construiu “a céu aberto” por uma espessa, húmida e translúcida noite. Pode ser?

5 comentários:

Anónimo disse...

Grande Gil... Abraço...

Anónimo disse...

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porfirio disse...

:

poeta de gume

obra singular

.

abraços

Anónimo disse...

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António Cardoso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.