2006-07-31

Kubik: felizmente, "Metamorphosia"

Uma laceração aberta, sem princípio nem fim, assim dita em música indiscutível é um lugar quase sempre ausente. Também por isso o denso designatum que sucede a “oblique musique” (2001) é conseguimento importante: “Metamorphosia” ocupa, no panorama musical português, a excelência das linguagens “privadas” e obrigatórias. Eis, pois, um convite desinibido à compra do último Kubik (e, já agora, do primeiro…). Aviso para melómanos, que, sem reserva, lanço à turba: compre-se e ouça-se…

Victor Afonso, desde cedo imerso em projectos musicais (Nihil Aut Mors, Exploding Trip Inevitable…) e paramusicais, agraciado mesmo em certames nacionais e internacionais, sempre atento à semiose artística, tem vindo a cavar, não só como músico e compositor, mas também como cinéfilo e animador cultural, um percurso que o tempo vai já coonestando.

Se “oblique musique” desperta a memória e os seus fragmentos através de colagens e experimentações multímodas, “Metamorphosia”, sem esquecer a raiz festejada, opta pelo aprofundamento dos valores seguros já sugeridos, não sendo, por isso, descabido falar-se em sutura, ou seja, em continuidade evolutiva, com desenvolvimentos sem sujeição.

Dividido nostalgicamente em “side_a” e “side_b”, passo construtivo que afirma também o vezo conceptual do trabalho, há em “Metamorphosia” uma minudência sonora e uma manipulação de possibilidades que conduzem o ouvinte à encruzilhada. Talvez mais caótico que o antecessor, certamente mais ousado, a investida de Kubik é uma tentativa de captação da originalidade e da origem lustral da música. Vindas de uma banca de alquimista, as sonoridades (também as vocais) parecem provir do centro do surreal. Acme da construção imperceptiva mas perceptível, há, na linha sonora aprofundada, um horizonte de relâmpagos que mostram e escondem, que afirmam e denegam, que são e não são.

Pleno de colaborações e de contributos (seccionáveis em denominações e influências), há, portanto, neste trabalho uma lógica avessa à mundanidade do comércio e do êxito fácil. Suprindo o aspecto caótico da aventura musical através de uma estrutura matemática e geométrica, visível, por exemplo, na dimensão conclusiva dos três “intros”, na distribuição equitativa de sete temas para cada face ou na consistência do trabalho, que sempre encontra, nos momentos de maior ousadia, elementos disseminados que contribuem para a coerência da proposta.

Arte sem limitações ou estruturação predominante, a presente formulação kubikiana abandona o ouvinte à sua melhor sorte: a de poder concluir da impossibilidade da incomunicação. Tal axioma, sem denegar a autocatarse e a auto-remuneração que uma obra desta qualidade sempre contém, abre a cada interpretante um válido nicho de legibilidade. Ser sujeito é agora ultrapassar a destruição, o silêncio e a ausência que uma obra arrebatadora sempre provoca.

Contribui a Zounds Records para o enriquecimento de cada um de nós. Eleva Kubik o horizonte da plenitude. Resta ao leitor, também ouvinte, negar comigo o hermetismo monadológico de Adorno e contribuir para a construção de sentidos que “Metamorphosia” indubitavelmente merece. O trabalho está aí, por Viseu, nas melhores livrarias e nas boas discotecas, junto ao melhor silêncio do verso de Hölderlin que alude ao sopro divino que nos toca “Como os dedos da harpista / As sacras cordas.”

2006-07-30

linhas de coesão em "A Morgada de Romariz" de Camilo Castelo Branco

0. Na literatura, como nas restantes artes, estamos em crer que nada se perde. Ao contrário, tudo significa. Daí, e para que uma melhor dilucidação se efectue, ser necessário observarmos o que se nos depara, no exterior e no interior. Um simples vocábulo pode empecer a decodificação do texto literário, para tal bastando lembrar a consabida "norma" de que só chegará à literariedade quem conquistar a literalidade. Assim, e acertando pela terminologia kristeviana, poderemos dizer que o fenotexto (estrutura de superfície) e o genotexto (estrutura profunda) de um qualquer exemplar literário mantêm entre si uma relação indissociável e programática. A coesão de um texto, entendendo-se aqui este último como uma tessitura semiótica e linguística, é um facto inalienável, por mais longe que nos sintamos da sua compreensão. A leitura, por seu lado, e um tanto na esteira da estética da recepção, é ela própria uma tentativa de construção de uma coesão textual .Por fim, é inconfutável que a apropriação que o leitor faz de um texto artístico obedece a critérios intelectivos, os quais se manifestam, uerbi gratia, no acto de ler, esse produtivo exercício de desvelamento depós a coesão e coerência textuais.Dito isto, procuraremos neste breve excurso fornecer algumas linhas globais de coesão do interessante entrecho "A Morgada de Romariz", ínsito em Novelas do Minho, de Camilo Castelo Branco, pensando nós que a generalidade precede a especificidade e se tornará mais útil a todos os que privam com a fisicidade sonora do nome Camilo e dele se encontram afastados por razões incertas.


1. Comecemos pelo título " A Morgada de Romariz". Como se sabe, um título é quase sempre um elemento catafórico que ilumina a coesão textual, projectando um índice informativo. No nosso caso, parece-nos, antes de empreendermos uma leitura mais alargada, que tudo se desenrolará em volta de uma herdeira, a qual, pelo relevo dado no título, será, eventualmente, protagonista. Veremos se tal se confirma, uma vez que o título pode, ocasionalmente, funcionar como um elemento despistante.


2. Posteriormente, aparece-nos uma dedicatória a Francisco Teixeira de Queirós, que, nesse ano de 1876, se estreava no palco das letras. Esta dedicatio , indubitavelmente extradiegética, projecta-se intradiegeticamente, já que a não podemos entender sob o cadinho mecenático, como acontece, por exemplo, em El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha e em Os Lusíadas, respectivamente dedicados ao Duque de Béjar e a D. Sebastião. As motivações da dedicatória camiliana entroncam, a nosso ver, na ideologia. Pois o que poderia motivar "essa superior admiração e indelével reconhecimento" (cf. dedicatória) por parte de Camilo Castelo Branco, a não ser uma identidade semântico-programática? O certo é que Jacinto do Prado Coelho defende que as Novelas do Minho "marcam uma nova fase da produção camiliana".1 A isto aduz o insigne professor que elas constituem uma fuga à rotina, não sendo alheios a tal os influxos de Eça de Queiroz e de As Farpas . Teixeira de Queirós, de naturalidade minhota, e este facto deverá ser conectado com o título geral da obra, desde cedo manifestou a sua empatia para com o naturalismo. Ora, o autor de Amor de Perdição ao erigir semelhante dedicatória desvela uma adesão.


3. Logo no início do capítulo I nos apercebemos de que há uma preocupação extrema do autor textual em documentar a narração. A propósito, ouçamos o narrador homodiegético: "Vi esta morgada, há três anos, am Braga, no Teatro de S. Geraldo."2 A forma do verbo ver pretende levar o leitor a crer no narrado. Esta técnica camiliana, que aliás não é inovadora na sua obra, é usada repetidamente em Novelas do Minho . Alexandre Cabral sustenta mesmo que elas "assumem um carácter memorialista: o escritor refere só os factos de seu directo conhecimento."3 O incansável camilianista, ainda na referida introdução, já anteriormente salientara a constante intervenção do autor na narrativa: "... ele teve conhecimento directo da história, conheceu as personagens, assistiu algumas vezes aos eventos e neles participou."4 Claro que não nos importa apurar da veracidade de uma eventual conexão do autor textual com o autor empírico, uma vez que defendemos sempre o poder transformativo e demiúrgico do criador literário, o qual engendra uma realidade de transmigração e nem por isso menos real . O ponto de partida será sempre o real, mas não se deverá olvidar a máxima pessoana "o poeta é um fingidor" contida no celebrado poema "Autopsicografia". A vontade de alardear verdade é notória, não só pelo uso do verbo ver (p. 149) e, até, remirar 5 como também pelo usus dos informantes barthianos, que servem para enraizar o ficcional no real. Concluamos este aspecto, dizendo que a novela que ora analisamos se inicia de forma memorial, o que, aliás, muito bem entreviu Alexandre Cabral ao generalizar que "as Novelas do Minho assumem carácter memoralista." 6


4. Voltando ao título "A Morgada de Romariz", é bom dizer-se que tudo se vai passando conforme prevíramos - lidos os primeiros parágrafos mais se acentua o carácter omnipresente da personagem a que o título se refere. Será que poderemos manter tal posição? A seu tempo o veremos.


5. Logo no segundo parágrafo deparamos com uma descrição tipicamente naturalista e nela ressaltam o lúbrico e o indecoroso: "Era uma senhora de espavento, avermelhada, com as frescuras untuosas e joviais dos quarenta anos sadios, seios altos e aflantes, pulsos roliços e averdugados pela compressão das pulseiras cravejadas de esmeraldas e rubis." (p. 149) Para lá da particular detenção na descrição, as lexias utilizadas apontam para a dissecação, para a nudez crua do real. Mas, apontemos novas exemplificações. Como é sabido, a morgada e o marido, o comendador Francisco José Alvarães, assistiam à representação de "Santo António", no Teatro de S. Geraldo, em Braga (cf. cap. I). O autor, a dado passo, detém-se a analisar a impreparação que o casal Alvarães manifesta ao assistir à representação: é o choro e é o riso; é a gargalhada devido à rima dos versos; é o bocejo e o tosquenejo dela e dele; são, enfim, as descomposturas de quem alcançou o que não merecia. Esta fina análise de procedimentos tange, obviamente, com as matrizes realistas.


6. De seguida, podemos apreciar, ainda no mesmo capítulo, o que será um leitmotiv na ficção camiliana. Não raras vezes, o autor de A Queda dum Anjo , a fim de tornar mais verosimilhante um episódio, recorre ao processo de inculcar ao leitor que a história é verídica. E, para isso, nada melhor do que um amigo - basta ele, de forma imprevista, chegar-se a si e fornecer os dados que o escritor há-de tratar. Camilo adopta a posição do cronista que, através de testemunhos orais e escritos, lança os elementos ao papel e faz crónica. Claro que, neste caso e noutros, há que contar ainda com a adução da dose subversiva do real. É o que sucede no trecho subsequente: "Neste comenos, visitou-os um meu conhecido de Famalicão. Ao erguer do pano saiu de lá, e entrou no meu camarote. Foi ele quem me disse o nome das duas pessoas, acrescentando: - Ali, onde a vê, tem romance, dá matéria para dois tomos..." (p. 150)Tal artifício ficcional cifrou-o Jacinto do Prado Coelho ao defender que "Camilo insiste sempre na veracidade das histórias que narra. Muitas vezes (...) refere as circunstâncias em que chegaram ao seu conhecimento: um velho manuscrito, um amigo providencial deram, generosamente, a matéria emocionante do livro"7 .


7. Já no capítulo II, e depois de familiarmente o narrador nos propor a apreciação da filosofia das personagens, colhemos uma nova faceta do método usado pelo escritor - certo de que "quem conta um conto lhe acrescenta um ponto", apenas acredita na objectividade de um processo: "Melhor que uma estirada narrativa, desfigurada talvez pela imaginação do informador, li um processo que o sujeito me emprestou." (p. 151) Não deixa também de ser interessante a forma como o autor de Novelas do Minho desautoriza a sua paternidade do texto, apresentando-se tão-somente como organizador de matérias objectivas: "... em um livro impresso por 1815, li uns nomes que tinha visto nos autos escandalosos. Examinei de novo o processo, e trasladei certas passagens que, alinhavadas a outras do referido livro, deram esta novela." (p. 151)


8. O capítulo III derroga, de forma inequívoca, a arquitectura que avançáramos a respeito do título. Estamos em meados do século XVIII e, com o avançar da leitura, a personagem que dera nome ao título esbate-se consideravelmente, por ausência. Em contrapartida, vai-se levantando um tal Bento da Costa, irmão de António da Costa Araújo, vulgo o Jóia. Aquele, pedreiro em Famalicão, vai ser alvo da análise implacável do autor de Amor de Salvação . E, a dado passo, é ele que surge como ponto central da novela - notemos que Bento-pedreiro, não obstante a grossa herança, oculta o legado e continua a sua vida, pobremente. Camilo pintou-nos, nesta personagem, o carácter abominável de quaisquer avarentos. A sua centralidade parece-nos irrefutável. O que terá, então, levado o autor a esquecê-lo no título? Adiante procuraremos explicá-lo, mas, para já, ilustremos a interioridade de Bento-avarento, no seguinte diálogo com o filho:"- Três mil peças?! Três mil diabos que te levem a ti e mais a quem levantou essa aleivosia. O que eu herdei foi um reguingote de saragoça já no fio. Se o queres, vai buscá-lo, que ele lá está pendurado num gancho... Com que então, Joaquim, vinhas ao cheiro das peças?- Vinha pedir-lhe, senhor pai - respondeu o moço com tristeza e respeito - , que me livre de soldado, porque já não posso com o serviço. Estou doente, e preciso de mudar de vida.- Trabalha, faze como eu, que também não posso, e estou aqui a furar este calhau. Quiseste ser soldado... lá te avém.- Senhor pai, olhe que eu saí da praça sem licença... sou desertor..." (pp. 154-155)A frialdade do pai, contudo, não se atenuaria - que poderia um filho contra umas peças? Joaquim, esse, lutava, falando com Luís Meirinho, pedindo opiniões e "encostando" o pai:"- E se eu lhe mostrar a cópia do testamento... - volveu Joaquim esbugalhando, abrindo a boca, e pondo fora a língua em todo o seu comprimento.- Que me diz vossemecê, senhor pai? Se eu lhe mostrasse a cópia do..." (p. 15)Mas nada. O pedreiro Bento não se dava por achado. A ideia das três mil peças era a um mesmo tempo suave e temerosa: suave, porque alimentava o seu mundo feito de cupidez e de centralidade; temerosa, porque o transformava num animal centóculo, atento ao mais leve movimento, e lhe criava um complexo predatório.Este episódio do avarento articula-se superiormente com o maniqueísmo omnipresente nas obras camilianas. Cumpre salientar que Bento da Costa, se surge física e moralmente arrasado, mera encarnação do vício e do defeito, é para fazer pressupor um bem ausente, mas sempre tutelar. Não são despiciendas, a este respeito, as palavras de Alexandre Cabral que postulam que " o permanente conflito entre o Bem e o Mal (...) é, no final de contas, o vector dominante da novelística camiliana."8


9. Antes de avançarmos para a problemática do tempo em "A Morgada de Romariz", apontaremos quatro aspectos que reputamos de interessantes. Assim:a) O narrador, no capítulo VIII, na enumeração das opiniões correntes sobre a morte de Bento Araújo e o paradeiro do dinheiro, quando diz seguir de forma genérica um dos caminhos, traz-nos à memória Fernão Lopes e o seu método de fazer história.b) Nota-se um certo restringimento espacial, havendo uma quase exclusividade das zonas periféricas de Braga e, lato sensu, das localidades minhotas.c) Se bem que a novela em análise tenha um forte pendor naturalista, e basta relembrarmos a descrição da Morgada ou a análise da conduta de Bento Araújo, não deixa de estar presente a vertente romanesca, com as suas múltiplas peripécias.d) Finalmente, e como o prometido é devido, parece-nos que o título, embora convocando uma personagem, funciona emblematicamente como o culminar de um processo que Bento-pedreiro iniciou - e o sórdido fica à vista, porque quem verdadeiramente usufruiu dos dinheiros foi quem menos por eles lutou.


10. Mas o que verdadeiramente nos cativa nesta novela é a articulação do tempo. A isso não será alheio, por certo, o carácter um pouco anómalo da urdidura textual. É que se, como diz Carlos Reis, na novela o tempo se representa "quase sempre de forma linear, sem desvios bruscos nem anacronias"9, fácil será concluir-se que "A Morgada de Romariz" refoge a essa normalidade. Se a isto ligarmos o facto de o tempo ser uma primordial categoria da narrativa, já que a diegese," como sucessão de eventos, comportando um antes , um agora e um depois, é inconcebível fora do fluxo do tempo"10, reconheceremos de imediato a justeza do nosso critério. A concatenação do tempo de uma forma ordinal, abolindo os ilogicismos, racionaliza o caótico. Daí a pertinência e a importância da tarefa que de seguida iniciamos. Estaremos ainda atento de forma particular aos indicadores cronológicos, nomeadamente aqueles que tangem com os anos.Não é que não possamos apontar um ou outro exemplo respeitante a meses, dias, horas, etc... No entanto, essa notação será ocasional, para não alongarmos demasiadamente o nosso excurso. Em nota de final de parágrafo, propositadamente no corpo do texto e não em nota, deixamos em referência duas obras fundamentais sobre o tempo na ficção narrativa, as quais nos permitem alargar os conhecimentos narratológicos sobre essa categoria e não só, e que aqui não debateremos para não tornar este texto demasiado cerrado e um tanto fora do escopo da acessibilidade. Referimo-nos a Narrative Fiction: Contemporary Poetics , de Shlomith Rimmon-Kenan (London, Methuen, 1983), nomeadamente o capítulo 4 "Text: Time", e a Nouveau Discours du Récit (Paris, Éditions du Seuil, 1983), de Gérard Genette, esse genial essai de méthode sobre a releitura crítica do tembém seu "Discours du récit", ínsito em Figures III .Mas voltemos à nossa novela. Inicialmente, e partindo do pressuposto da datação da obra que surge no final da novela, diremos que, do ponto de vista discursivo, somos levados ao ano de 1876.11 O texto, iniciando-se com um pretérito perfeito dependente do nome pessoal eu , faz pressupor imediatamente, face a um "antes", um "agora": "Vi esta morgada, há três anos, em Braga, no Teatro de S. Geraldo." (p. 149). Ora esse "agora" confina-se, até pela necessidade do narrador ancorar a diegese no real, no ano de 1876. O "antes" (veja-se o extracto anterior) atira-nos três anos para trás, para 1873.Este incipit à guisa memorial indica, ab initio , o papel que o tempo e a sua subversão irão ter na compreensão da narrativa. As anacronias adquirem relevo especial, porque, à semelhança do que acontece, por exemplo, em Aparição, de Vergílio Ferreira, é evidente a existência de um tempo do narrador, encaixado, no transcurso histórico e no devir temporal, no ano de 1876 ( o tempo "presente"), e um tempo da intriga, situado num passado oscilante, variável cronologicamente entre 1744 e 1873.Assim, sendo a analepse "todo o movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da acção e mesmo, nalguns casos, anteriores ao seu início" 12, fácil será inferirmos que o escritor, por um apelo à memória, aliás deliberado, se embrenha no passado. Porém, nem tudo é linear. A nosso ver, o que se passa é um tanto o inverso. Isto é, o escritor inicia, artificiosamente, a sua novela in ultimas res , de forma a que o início contenha a lição final. Para nós, o "presente da acção" inicia-se no capítulo III, pois é aí que a história começa, até porque só a partir de então se nota a interacção personagens-tempo. Doravante entreveremos uma perfeita concatenação de acções afins protagonizadas por diferentes personagens, com diferente grau participativo, ligadas, no entanto, por dois fios condutores: a consanguinidade e o liame indissolúvel à herança. Este ponto de vista vai de encontro à posição do narrador, quando diz: Examinei de novo o processo, e trasladei certas passagens que, alinhavadas a outras do referido livro, deram esta novela." ( p. 151)13 A acertarmos por este caminho, simples é deduzir-se que o consórcio da morgada, anunciado ab initio, mergulha prolepticamente nos jogos de subversão temporal. Por isso, e porque de uma prolepse se trata, este ponto virá a ser retomado mais adiante.14 O capítulo II, se bem que de carácter preparatório, manifesta íntimas conexões com a categoria da narrativa tempo : havíamos visto como, com a primeira frase do capítulo I, estávamos em 1873; agora, "transcorridos dois anos", avançamos até 1875. Convém ainda salientar que este capítulo anuncia, com base em dados "objectivos", o que a subjectividade da arte enformará. Chegados ao capítulo III, tudo entra na ordem temporal, com uma ou outra alteração cronológica. Estamos no ano de 1744 e por essa altura partiu de Vila Nova de Famalicão Para Lisboa António da Costa Araújo: "Quando Vila Nova de Famalicão era um burgo de cem vizinhos com um juiz pedâneo, saiu dali para a corte, em 1744, um rapaz de quinze anos, que principiara com o seu pai o ofício de pedreiro." (p. 153) Uma das tais subversões surge quase logo de seguida, quando o narrador, heterodiegético a partir do capítulo III, usa uma prolepse: "Chamara-o a Lisboa um tio, mercador de panos, estabelecido na Rua dos Escudeiros, que até ao terremoto de 1755 ocupava parte do terreno hoje compreendido na Rua Augusta." (p. 152) No dia 1 de Fevereiro de 1755 morre o tio de António Costa Araújo. (p. 152) Aqui aparece pela primeira vez um tempo perfeitamente delimitado pelos indicadores temporais dia , mês e ano . Posteriormente, pela informação que se segue, avançaremos um ano, ou seja, para 1756: "Estabeleceu-se Costa Araújo no Campo de Santa Ana, e ganhou, no primeiro ano, com estas fazendas variadas, doze mil cruzados." (pp. 152-153) De seguida, o próximo marco cronológico transporta-nos a 1762: "Volvidos seis anos, era um dos mercadores mais opulentos da corte" (p. 153) Como estamos a ver, o tempo é tratado de uma forma elíptica. É assim que num repente nos vemos por volta de 1789: "À volta dos sessenta anos, António da Costa Araújo enferma de paralisia." (p. 153) Esta inferência assenta, logicamente, no facto do nosso mercador ter partido, com quinze anos, para Lisboa, no ano de 1744. O escritor recorre à analepse a fim de iluminar o passado do filho de Bento, o que podemos documentar no excerto subsequente: "Convém saber que o filho de Bento ganhara alcunha de o Faísca, desde que mostrou aos dezoito anos extraordinária destreza em ferir lume no fósforo dos ossos dos adversários." (p. 156) Evidentemente que nem só os anos funcionam como indicadores cronológicos. Existem exemplos de outro teor. Assim, exempli gratia, no início do capítulo V, temos um atinente à passagem de alguns dias: "Poucos dias depois, o juiz de fora de Barcelos incumbia ao ordinário do julgado de Vermoim a prisão do desertor Joaquim da Costa Araújo, de alcunha o Faísca." (p. 161) Isto decorre posteriormente à discussão acesa entre pai e filho, no capítulo anterior, quando o último pretendia ajuda paterna para escapar à sanção disciplinar militar. Prosseguindo o roteiro temporal, diremos que o casamento de Rosa com Joaquim terá ocorrido cerca de 1780, vindo a infeliz mulher a falecer seis anos depois, em 1786. Tal poderá ser inferido do passo que a seguir citamos: "Rosa morreu na flor da idade, deixando um filho de seis anos entregue ao avô, porque o marido havia muitos meses que demorava pela Galiza" (p. 164) Um ano depois, em 1787, encontramos o filho de Joaquim na mais profunda pobreza: "Quando Joaquim de Araújo voltou a São Martinho por saber que estava viúvo, encontrou o menino de sete anos esfarrapado, sem amparo de parentes, a esmolar o pão e o gasalhado dos vizinhos, porque seu pai não tinha casa própria, e todo o património de sua mãe estava vendido" (p. 164) Porém, a evolução temporal não se processa somente, nem preferencialmente, na passagem de anos mais ou menos espaçados. Quantas vezes o fluir do tempo se entrevê no envelhecimento das personagens, no ritmo das estações, no esboroar dos edifícios que assistem, eles também, à degenerescência do humano... No nosso caso, são as mortes, o crescimento e as desgraças, em ligação com Cronos, que deixam mascas indeléveis nas personagens. Vejamos como os ritmos e as pulsões da natureza, no seu evoluir cíclico, espelham o tempo fugindo, deixando-nos assistir à passagem das estações do ano: "Ao alvorecer do dia, uma nuvem pardacenta, que ondulava pela crista da serra, rasgou-se em saraivada glacial, que lhe batia no rosto e saltava pelo peito nu e descarnado. Chovera e nevara depois, durante muitos dias... Quando o tempo estiou, quem denunciara o cadáver já disforme fora uma revoada de corvos" (p. 171) Em 1809, o "filho de Bento pedreiro morreu (...) no Carvalho de Este, defendendo a pátria da invasão francesa comandada por Soult." (p. 173) No capítulo IX, temos um novo exemplo, aliás privilegiado, do fluir do tempo, quando se alude ao casebre desabitado deixado por Bento Araújo: "Facilmente se habilitou herdeiro de Bento Araújo e tomou posse do casebre, desabitado desde 1790." (p. 173) Esta ausência, esta inexistência era, afinal, obra do tempus . No capítulo X, estamos em 1826: "Em 1826, quando Silvestre já desesperava da fecundidade da esposa, em anos bastante serôdios, deu-lhe ela uma menina que se chamou Felizarda." (p. 178) De forma imediata, damos connosco em 1834: "Aos oito anos, a moça, filha única..." (p. 178) Em seguida, e num rápido suceder, avançamos até 1844: "Aos dezoito anos, compuseram-se-lhe as feições com proeminências grandes, mas esbeltas." (p.178) Em breve, eis-nos em 1846: "Por esse tempo, 1846, Silvestre de São Martinho estava muito rico, mas muitíssimo aborrecido na diluente ociosidade de tantos anos." (p. 179) Perto do final da obra, e partindo da primeira frase da "Conclusão" ("Quando os vi em Braga, no Teatro de S. Geraldo, estavam casados havia já vinte e cinco anos.", p. 186), assistimos ao casamento de José Francisco com Felizarda (pp. 186-187), que se deu em 1848. Quando ambos se encontravam no Teatro de S. Geraldo, corria o ano de 1873. Finalmente, o tempo presente do narrador cifra-se em 1876.


11. Concluindo, "A Morgada de Romariz" traz à tona viva do mundo um hino à moralidade. O tempo, esse silencioso e notável escultor, diz-nos, em Camilo Castelo Branco, que o BEM é uma realidade pervígil. A seguirmos a ainda notável divisão periodal da obra camiliana estabelecida por António do Prado Coelho15, diremos que estamos em presença de um exemplar da fase apoteótica16 do Autor de Vulcões de Lama , o que significa que não partilhar deste vezo é passar ao lado da literatura que realmente vale. Ou, se aferirmos pelas palavras olímpicas de Bigotte Chorão17, é deixar de partilhar do fogo, ígneo elemento ardente e solitário que consome sem consumir-se a espessa noite do homem. E é ou não verdade, como o anunciou de forma decisiva Robbe-Grillet18, que à arte narrativa literária deverá interessar, antes de tudo, o homem e a sua situação no mundo? Quem quiser que o conteste, mas este camiliano novo-romancismo ante litteram é um elemento mais que nos faz dizer, como Eduardo Lourenço o fez em O Canto do Signo , que "Camilo não pede senão para ser lido"19.


Notas:

1 Jacinto do Prado Coelho, Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, Coimbra, Atlântida, 1946, p. 438.2 Camilo Castelo Branco, Novelas do Minho-I , Lisboa, Círculo de Leitores, 1982, p. 149. Para aligeirarmos o peso textual das notas, optámos, nas citações, pela indicação do número de página donde extraímos as exemplificações, até porque utilizámos apenas a edição indicada.3 Alexandre Cabral, em página inumerada, na "Nota Introdutória" à edição citada de Novelas do Minho .4 Id. , ibid.5 Camilo Castelo Branco, ibid. , p. 150.6 Alexandre Cabral, loc. cit.7 Jacinto do Prado Coelho, op. cit. , p. 5198Alexandre Cabral, loc. cit.9Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de Narratologia , Coimbra, Livraria Almedina, 1987, p. 295.10 Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura , 4a edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1982, p. 713.11 Cf. a conclusão de "A Morgada de Romariz".12 Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, op. cit. , p. 149.13 Este excerto situa-se no final do capítulo II , no qual o Autor expõe o seu método heurístico.14 Cf. , e. g. , p. 186 e "Conclusão".15 Veja-se, desde Autor, o sempre actual Espiritualidade e Arte de Camilo (Estudo Crítico) (Porto, Livraria Simões Lopes, 1950). Aí, António do Prado Coelho adianta que a obra de Camilo se divide em três períodos: o primeiro, que po- deria ser designado por fase do orgulho, radica num exagero do poder humano; o segundo propala a salvação do homem através de Deus; e o último, conglobando as particularidades de todas as fases, mostra-nos a perfeição técnica a que o escritor chegara. Na página 17 da obra citada pode ler-se: "Serão, pois, sobretudo modelares as formas de que se reveste a arte de Camilo, na novela e no romance, através das Novelas do Minho (1875 e 1877) , das Noites de Insónia ( 1874) , dos Serões de S. Miguel de Seide (1885)." A novela "A Morgada de Romariz" faz parte da primeira obra referida...16 Alexandre Cabral, na entrada que dedica às Novelas do Minho no seu Dicionário de Camilo Castelo Branco (Lisboa, Caminho, 1988), sustenta que o autor de Noites de Lamego se encontrava, à época, "na fase de plena maturidade intelectual (experiência, estilo, observação, linguagem, crítica)". (p.454)17 Cf. João Bigotte Chorão, O essencial sobre Camilo , Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996. Nesta pequena e bela obra, o Autor refere que na "companhia de Camilo, viajamos pelo Portugal profundo, atentos à paisagem que o homem não adulterou, à língua ainda não barbarizada e básica, ao rosto e à alma de homens e mulheres que se consomem no seu próprio fogo."(p. 60) Algures dirá também Natália Correia que ler Camilo é privar com a história de Portugal, nomeadamente com o oitocentismo.18 No cultuado Pour un nouveau roman , Alain Robbe-Grillet, no capítulo "Nouveau roman, homme nouveau", fixou os mandamentos desta "escola" nas seguintes tiradas: 1) Le nouveau roman n'est pas une théorie, c'est une recherche ; 2) Le nouveau roman na fait que poursuivre une évolution constante du genre romanesque ; 3) Le nouveau roman ne s´intéresse qu'a l´homme et a sa situation dans le monde ; 4) Le nouveau roman ne vise qu'a une subjectivité totale ; 5) Le nouveau roman s'adresse a tous les hommes de bonne foi ; 6) Le nouveau roman ne propose pas de signification toute faite ; 7) Le seul engagement possible, pour l´écrivain, c'est la littérature. (Op. cit. , Paris, Gallimard, 1972, pp. 143-153)19 Eduardo Lourenço, O Canto do Signo. Existência e Literatura. (1957-1993). , Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 226.


2006-07-29

Judith









E quanto mais me quero condenar
mais luz se faz, e sinto esta tristeza:
- ser um mísero barro de quebrar!

[Judith Teixeira, "Contrição", in Nua ]



JUDITH TEIXEIRA

está em EUROPA


2006-07-27

Michel Lazrah

Inspirado pelas notáveis Notes sur le cinématographe (1975) de Robert Bresson, eis um convite, em momento de tristeza e de catarse (ainda não resisto à emoção), para que mergulhemos no frémito das "imagens que acordam".

2006-07-26

"Uma fábula": a alteração material em António Franco Alexandre



PALAVRAS-CHAVE: António Franco Alexandre – Uma Fábula – Alteração material – Poesia portuguesa actual


Decidiu a simpatia de António Franco Alexandre, depois da incisão literária sobre si efectuada pela revista Ave Azul (nº 4, “António Franco Alexandre e a sobrevivência da poesia”, Verão 2000 / Inverno de 2001), oferecer-me um exemplar do seu então novíssimo Uma fábula (2001). Dedicado e assinado, esse título assim chegado, inscrito que estava nos livros a haver pelos anúncios das saídas editoriais, trouxe-me sentido júbilo. Lembro ainda o estranho sortilégio provocado pelo contacto com esse livro “sepiado” e com figuras animais de aspecto clássico, de acordo com o enigma titular, aparecido de dentro de um pequeno envelope de que se destacava também, não o nego, uma outra incidência semiótica: a da grafia contida alexandrina, deflagradora de autêntica emoção, para mim, parte menor e interessada do entorno literário.
Precisando de nada, só de livros (assim pudesse ser!), lanço-me à leitura e, ultrapassado o embate da dedicatória, eis que a primeira parte, claramente impressa “1. poema simples”, aparece traçada pelo punho do autor, apondo-lhe nova titulação manuscrita: “narciso”. Tal alteração da materialidade do texto impresso, criando hipótese paralela, leva-me, desde logo, a abordar o texto da primeira parte (pretensamente conhecido, porque publicado em Ave Azul) com alguma desconfiança. Mas nem tanto assim: a leitura avançava sob a toada do reconhecimento. Até que, como já o notou Frederico Lourenço em leitura atenta, “surge uma estrofe omitida” (Lourenço, 2004: 278), isto é, não surge uma sextilha parentética que alude a uma outra fábula e que o Autor inserira na primeira versão publicada na revista viseense, criando-se assim, com esta alteração, a cisão com a modulação fabular que cruzava Eco e Narciso com “a pequena audácia trácia” (Alexandre, 2001: 9) de Orfeu.
Em “2. duplo”, o traço alexandrino opera já sobre o texto impresso, elidindo por sugestão, individual ou geral (quantos livros assim e iguais?), 70 versos seguidos (Alexandre, 2001b: 33-36) e, intermitentemente, outros 42 (id., 2001b: 37-39), seguidos de 14 (id., 2001b: 40-41) e mais 28 (id., 2001b: 41-42), num total de 154 versos eliminados (?) ou problematizados (?).
Por último, em “3. eco”, Franco Alexandre apenas rectifica o título da obra donde colhera o trecho da epígrafe, antepondo “Le” a “Roman de la Rose”.
Por aqui se ficando a intervenção de António Franco Alexandre, é justo que se conclua que a alteração material do texto impresso, não sendo confundível com um acto de corrupção textual, pode ser entrevista como uma correcção redaccional pós-tipográfica promovida pelo Autor.
Não se podendo prever para já se a modificação veio para ficar (há que esperar, por exemplo, por nova recolha da obra completa) ou se o encurtamento é individualizado para os destinatários (ouvi falar de outros casos, não sei se iguais), o certo é que a diferença endofórica interage já com a supressão e permite acertos hermenêuticos consequentes.
Sem previsão de “terramoto” nas linhas de leitura já traçadas, o “novo” texto alexandrino corrobora a “fulminação”[1] anteriormente detectada pelos hermeneutas alexandrinos, talvez se podendo dizer que a incisão autoral matiza a “boca bilingue”.
E assim a fábula alexandrina segue a metamorfose do corpo (corpo no corpo, acção do tempo sobre o corpo, fulgor e reflexo eróticos …), semeando chaves interpretativas e possibilidades. Antiquíssimo e matinal, coroado polifonicamente pelas melhores vozes, o canto fabular e mítico de António Franco Alexandre não se esgota naquilo que dizem ser[2]: e, no entanto, é já tudo o que foi dito mais o calor de novas emoções. Novas e diferentes, como diversas e complementares são as vozes desta fábula.[3] Pensando bem, não serão aqui as palavras o verdadeiro acontecimento, que, no sentido de Tsvetaieva, permite dizer viver o amor das palavras e morrer dos factos? E, no entanto, os factos são a poesia.


Bibliografia

ALEXANDRE, António Franco (2001). Uma Fábula. Lisboa: Assírio & Alvim.
ALEXANDRE, António Franco (2002). «“depoimento?” para um apeadeiro». Apeadeiro 2, 22-34.
AMARAL, Fernando Pinto (2001). «A luz que nasce das palavras». Mil Folhas de 10 de Novembro, 10.
ANTUNES, David (2001). «Identidade, metamorfose e fantasmas em Uma Fábula de amor». A Phala 90, 112-113.
ANTUNES, David (2002?). «O sopro do sentido na poesia muda de António Franco Alexandre». In htpp: //www.ples.umassd.edu./ples7texts/Antunes.doc.
FERREIRA, António Manuel (2005). «Uma Fábula, de António Franco Alexandre». Texto digitado.
LOURENÇO, Frederico (2002). «António Franco Alexandre: Pense quem lê». Os meus livros 2, 27-30.
LOURENÇO, Frederico (2004). «Catafonia Visível: Uma Fábula de António Franco Alexandre». In Grécia Revisitada. Lisboa: Livros Cotovia, 273-279.
MARTELO, Rosa Maria (2002). «Metamorfose e Repetição: Uma Fábula, de António Franco Alexandre». Relâmpago 10, 143-149.
PITTA, Eduardo (2002). «António Franco Alexandre». Ler (Livros & Leitores) 53, 98-99.
RUBIN, David Lee Rubin and SELLS, A. Lytton (1993). «Fable». In PREMINGER, Alex and BROGAN, T.V.F. (eds.), The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. New York: MJF Books.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «A poesia simples de António Franco Alexandre». Ave- -Azul 5-6, 137-138.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «António Franco Alexandre: o sopro de Eros entre os ossos e o chão». Jornal do Centro 32, 21.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2002). «Um no outro: a poesia silenciosa de António Franco Alexandre». O Zurara 2, 6.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2003). «Uma cama de árvores e de lume: a poesia de António Franco Alexandre». In FERREIRA, António Manuel (coord.). Percursos de Eros: Repre-sentações do Erotismo. Aveiro: Universidade de Aveiro, 209-221.
SOUSA, Martim de Gouveia e (2005). «Uma fábula: a lição política em António Franco Alexandre». Jornal do Centro 186.

Resumo: António Franco Alexandre é um dos nomes maiores da poesia portuguesa. Agindo sobre o texto impresso, o poeta redirecciona o leitor e escreve, possivelmente, um outro texto. A alteração material, individualizada ou sistemática, é acto que só novas edições poderão tornar válido.

[1] Frederico Lourenço refere-se do seguinte modo ao encontro havido com este livro: “O livro que me fulminou nessa segunda-feira que nunca esquecerei é Uma fábula (Assírio & Alvim, 2001), um quarteto assombroso constituído por “Poema Simples”, “Duplo”, “Eco” e “Epimítio”.” (Lourenço, 2004: 273)
[2] Fernando Pinto Amaral (2001) entrevê na obra alexandrina a narrativa de uma história de amor, em que abundam monólogos dialogais, que dirige o sentido para uma ética poética e para a suspensão da fluidescência humana; David Antunes (2002?) defende que o que se passa é “a silenciosa consciência de uma solidão e de um cepticismo que irrompe da sistemática tentativa do sujeito querer acreditar que não está só e que os outros existem e lhe devolvem uma consciência da sua própria existência”; António Franco Alexandre (2002) defende ser Uma fábula um “quinto capricho”, aí se fundindo vida e literatura, realidade e imaginação, humor e desistência; Rosa Maria Martelo (2002) releva o apagamento da imagem do outro; eu acentuei o ironismo e a viagem especular do descentramento presentes em “poema simples (2002), vincando depois a imensa história de amor plasmada na obra (2003); Eduardo Pitta (2002), en passant, lê a fábula à escala genológica; Frederico Lourenço (2003 e 2004) alude ao homem-fábula que representa a condição humana, vincando o poder sedutor e a simplicidade emotiva do texto alexandrino, aí se mostrando o mito da metamorfose universal; por último, António Manuel Ferreira (2005), vinca o processo de reconhecimento aí travado, deslocando o saldo parenético, que Pitta parecera divisar, para a lição ovidiana do “iste ego sum”, que é, também, uma missão para cada leitor. Um no outro, pois.
[3] De acordo com o postulado de David Lee Rubin e A. Lytton Sells (Rubin-Sells, 1993: 400-401), que subdivide as fábulas em três categorias (“the assertional, the dialectical, and the problematic”), inseriria Uma fábula nas problemáticas, atendendo à “omissão” da tese (o poema, diria Franco Alexandre, é “a sombra que ilumina / o lugar onde nada se vê”, à disparidade “narrativa”, à polifonia e à ambiguidade.

[Este texto foi publicado em forma breve 3 ].

2006-07-25

carta por causa da moral & da cidade

Que o corpo vos seja limpo, caros leitores. E que a centelha de fogo, que brilha sobre o céu da cidade, ilumine as mentes vãs, esvaziadas, sabe-se, do respeito pelo outro que se assume. Eu não quero nada mais suave. Antes desejo o tempo da limpidez mental, dieta impoluta adscrita por ventos de Harvard e pela filosofia pragmática que decorre da vida quotidiana.
Este é o meu corpo exposto na inscrição do texto. Aquele amigo, que outro amigo ama ou deseja, é também amigo meu na diferença igual que não vejo. Que me importa a diferença que cada dia se renova, se eu sou eu e o outro é o outro no respeito que somos. Cruzo a vida sem fobia com a amiga que abraço porque assim sou. E se não, por que não os mesmos amigos e amigas, sem tique ou etiqueta?
Marcho contra a hipocrisia e a fobia que fielmente crêem no caminho solitário do “bom amante”, como se o corpo fosse dominável pelos fungos das gavetas apodrecidas! Nada pode ninguém, se o corpo se levanta e escolhe o caminho.
Um fulgurante António Sérgio, em ensaio parisiense datado de 1928, reconhece que o amor “é mais forte do que nós supomos”, devendo sentir-se “sob a forma luminosa da inteligência, ao calor fulgente da compreensão.” Eis, pois, um preceito que não deve ser esquecido, nomeadamente por aqueles em exercício cultural de investidura pública. Fora do espaço isegórico da “solidariedade vivida” (Urbano Tavares Rodrigues), já só resta um negro terreiro de impreparação e de incompetência…
A perfídia de quaisquer actos censórios desinscreve e deseduca. Inscreve e educa quem vai lembrando, como uma lição contínua, o elegante “Preface” de Oscar Wilde a “The Picture of Dorian Gray” de que extraio o excerto que cito: “Those who find ugly meanings in beautiful things are corrupt without being charming. This is a fault.”
A cruzada moralista lisbonense que inundou a década de 20 do século passado lançou para o fogo inquisitorial autores como António Botto, Judith Teixeira ou Raul Leal, apodados, em conjunto, de autores de “literatura dissolvente”. Em defesa da liberdade criativa insurgiu-se, por exemplo, um Fernando Pessoa, que litigou brilhantemente com o persistente Álvaro Maia, assanhado polemista e guardião da “boa moral”.
Arte do seu tempo contra a tradição do passado são, por exemplo, “O Banhista” de Cézanne (c. 1885), a impressão em gelatina e sais de prata das fotografias que captam virtualmente o movimento do corpo de Marey (?, c. 1890-1900), “A Semente de Areoi” (1892) de Gauguin, a “Madonna” (1895-1902) de Munch, a “Rapariga com Cabelo Negro” (1911) de Schiele, “Fränzi Reclinada” (1910) de Heckel, “Banhistas que atiram Juncos” (1909-1910) de Kirchner, “A Dança” (1909) de Matisse, “O Assassino em Perigo” (1926) de Magritte, “Nu na Casa de Banho” (1932) de Bonnard, “Pin-up” (1961) de Hamilton ou “Romance Familiar” (1993) de Charles Ray. E, no entanto, é evidente que a fulgurância destas obras dimana da nudez do corpo de homens e de mulheres e não é lícito encarar-se a sua dilucidação com o cadinho da suavidade. Nem penso que alguém responsável o tenha feito.
Em cada cidade há sempre um Álvaro Maia à espreita. Com estrondo, as primeiras palavras já dizem tudo. Em Viseu, se a pergunta era mais do que retórica, afirmo que as pessoas reagem com indignação a actos censórios e diminuidores das liberdades artísticas. Um museu, até etimologicamente, deve ser um lugar interactivo de multímodas artes. De liberdade, de direito à palavra, de direito à diferença.
Assim não sendo, há um caminho que quem com poder deve traçar. Passam quase cem anos sobre a vergonha da perseguição à chamada “literatura de Sodoma”. Nesse abismo persecutório, uma mulher de Viseu, a poetisa Judith Teixeira, sofreu digna e superiormente os golpes da intolerância.
Não faltando a coragem, corte-se o mal e a raiz. Espero, entretanto, não pensar por muito mais tempo naquele poema de uma mulher afegã, que Sayd Bahodine Majrouh resgatou do silêncio, e que aplico à circunstância: “Tenho na mão uma flor que murcha / Não sei a quem a dar nesta terra estrangeira”.

2006-07-21

nudez



Onde há quem tenha a pele tenho a memória, sepultura
nenhuma atingirá profundidade igual à desta
nudez com quem a pele sempre tem sido hospitaleira.
(Luís Miguel Nava, Como alguém disse )

Índices dos Registos Paroquiais de Lisboa

Com o patrocínio exclusivo do BPI e o apoio da Associação dos Amigos da Torre do Tombo, a Editora Guarda-Mór lançará no princípio de Setembro o primeiro volume da obra de Luis Amaral “Índice dos Registos Paroquiais de Lisboa – Casamentos” que divulgará os índices de todos os casamentos realizados nas freguesias da cidade de Lisboa entre 1801 e 1850. O trabalho será distribuído por 10 volumes que incluirão, cada um, cinco anos de registos. Neles se disponibilizará a súmula de cada assento – com indicação dos nomes dos noivos, a data, freguesia, livro e folhas -, um índice por primeiro nome do noivo e da noiva e, finalmente, um índice por apelido ou sobrenome dos dois nubentes. Com prefácio do Professor Doutor António de Sousa Lara, este primeiro volume abrange o período de 1801 a 1805. Inclui 7.795 registos de casamentos nas 47 freguesias em que Lisboa se encontrava dividida nessa época. Levanta-se assim a relação das cerca de 15.000 pessoas, lisboetas, de fora da cidade e do estrangeiro, que aqui viveram ou escolheram Lisboa para dar início a novos núcleos familiares durante os cinco primeiros anos de oitocentos. Seguir-se-ão os registos de todos aqueles que o fizeram até meio desse conturbado século XIX.À importância da obra para todos os investigadores desse período (não apenas genealogistas, para quem será fundamental) corresponde o trabalho incansável de 28 anos de investigação que o Autor do “Genea Portugal”, entre outras obras, agora apresenta publicamente. Trata-se de uma edição limitada deste trabalho importantíssimo para a investigação histórica no futuro que será lançado a 6 de Setembro na Biblioteca Genealógica de Lisboa. A subscrição do primeiro volume, de 670 páginas em formato A4, poderá ser feita aqui até ao próximo dia 15 de Agosto pelo preço de 35 euros. O preço de venda ao público será, posteriormente, de 40 euros.

2006-07-20

O chão e o lume


Capítulo V
Martim de Gouveia e Sousa


assim a conversa no marulhar do tímpano. voltar a mim, à condição una – este é o desejo. dentro da noite, sei que não mais os sentimentos e as memórias afectarão o sonho. não durmo, afogo-me nos lençóis. lisa, a língua vibra nos dentes. é hoje o dia de acender a cidade, tirá-la da escuridão. no peito o coração parte em desfilada rápida, compassada.

assim eu na noite, encostado ao quarto de hotel, esperando a hora de acordar da morte o velho casario e as novas cavernas – gente sobre gente nada sabendo, pouco conhecendo. fito o relógio. os ponteiros parecem colados, não avançam. tal a vontade, o desígnio, em reverso.

assim a noite parou. tudo dentro do hotel parou. os duches eternizaram em estátua os corpos nus, suados, usados. a perda da memória instalou-se em Viseu como o vazio absoluto no livro de miller. à entrada, um automóvel estacou debaixo da guarda luminosa. em mim, uma descarga desceu no corpo, atirando-me ao abismo, dele me trazendo penosamente. um dedo mexe, a ossatura estremece. num estilhaço de tempo a vida corre-me de novo nas veias.

assim a água corre. assim tudo está suspenso. devastado, como que vindo da morte, suspendo-me em água fria, escorrente. descanso agora. o fluxo da memória voltou, os movimentos voltam ao quotidiano. sei que estou pronto então.

assim. no corredor, um garçon lembra a tragédia de pompeia, interceptado pelo gelo a meio do transporte de uma ceia noite dentro. um silêncio assustador levanta-se da sola dos sapatos. viro ao fundo e assusto-me com o esgar de uma conversa a meio, apatetada pela paragem. não olho e avanço escadas abaixo, pelo corrimão descendo a mão peregrina. em frente, na curva dele, uma senhora de olhar vítreo, bela mulher de membros bem lançados, permanece. olho e desvio-me, perseguindo ainda a escultura do corpo plantado a meio. ultrapasso já o grande átrio, também estranho, amarelento. cá fora, um automóvel não ultrapassa a entrada e a guarda lembra a velha espada de damocles.

assim decidido avanço. sei o que fazer. e vou. um relâmpago ilumina a cidade e rebenta-me nos ombros. pela memória o tímpano vem à pele e o coração arde na boca. e vou.

2006-07-19

antónio gil e "a céu aberto": para além do poema

Ancorando-me no plano da objectividade ciceroniana, pergunto: por que tanto nos encanta este livro condensado e azulescente de título a céu aberto? Uma só resposta julgo possível, ainda fora do texto: “porque nos prodigaliza” o Poeta “com que retemperar o espírito desta agitação do foro e dar descanso aos ouvidos saturados de altercações”.
O Poeta vale por si, pela sua natureza inquieta, pela certeza divina de cada palavra necessária. Por esta razão chamou Énio sagrados aos poetas. e Platão os disse filhos dos deuses.
António de Sousa de Macedo, escritor seiscentista, defende que “nascida com o Mundo cresceu a Poesia em todas as idades dele.” Vem do princípio dos tempos a poesia de António Gil, próxima das tensões fecundas da música, adunatória das sugestões da pintura e belo exemplar de perplexidade filosofante, nomeadamente pela deflagração do princípio irónico.
Caminha, pois, António Gil desde distantes levadas, desde um tempo já incrível de distância. Ontem como hoje o Poeta avança pela cidade com um modo transparente de avançar, com um jeito inconfundível de o fazer, mal tocando o chão, aéreo, quase atmosférico. Avança no presente da memória, com um livro de nome Poesia Nascente (éramos estranhamente jovens, não achas?) e um diktat interior mais estranho, definitivamente inscrito em si, dizendo para uns poucos leitores por si escolhidos:


Trouxeram-me as palavras
É quase um abismo ser eu

É inútil pensar
Sigo o caminho das palavras

O Poeta volta sempre ao lugar das palavras. Ei-lo que regressa à cidade com uma envolvência outra, depois de caminhos andados e vividos e trabalhados. Mas não vem só – traz um vasto trilho de palavras, transparências e atmosferas a céu aberto. Nem só: também um prémio conceituado de poesia e um vasto conjunto de obra édita e inédita.
Convido-vos à leitura deste livrinho, destra criação de matéria negra, também transparente, de uma qualidade emocional por vezes rara. Exige-se, no entanto, um conhecimento das coisas que é unidade essencial entre o sujeito e o objecto. Esse clic necessário não pode ser ensinado e é a literatura. Chamemos-lhe intuição.
Querem conhecer a verdade deste livro? Imaginai, no sentido de Charles Peirce, o que essa verdade pode ser. É uma questão de esforço contra a intensidade da literatura.
Quem o diz é uma Susan Sontag e eu gloso: dever-se-á “aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais. Não vou, também por isso, interpretar o livro a céu aberto, empobrecê-lo ou esvaziá-lo. Ele aí está como um objecto esplêndido à espera do desvio do vosso olhar.
Avanço um pouco. Pego em filigrafias (2002), outra criação de António Gil que ao público se vai entregando. Eis que se revela o que tem lugar em a céu aberto. Ouçamo-lo, pois, junto ao som múrmuro da vontade:

Vesti outra pele para poder dizer
sobre outro corpo o que por hábito
apenas escrevo sobre o ferido dorso
da noite

durante o tempo que viveu
esta insónia alimentou-se da afronta
de tudo saber da caça excepto
o que fazer da presa

É esta uma outra caçada. É esta uma outra presa que o Poeta deseja libertada em cada um de nós. Caminho que o Poeta meticulosamente construiu “a céu aberto” por uma espessa, húmida e translúcida noite. Pode ser?

2006-07-17

subjectividade provisória: ouvindo Georges Steiner

Toda a compreensão fica aquém do objecto celebrado. E cada sarça ardente, assim dito o artista em imagem consabida, tem a glória que o destino preparar. Há acidentes que são acontecimentos. Há incidentes que são inscrição no centro opaco da noite. Um escritor pode ser mera errata da memória e ainda assim um importante e infeliz criador, com mérito e sem glória. Venham comigo a este abismo que é sempre espanto e novidade que permanece nova (peço desculpa pelo eco de Ezra Pound).
Um dia, de sol, iluminante de dizer o novo de sempre, houve mais Steiner em Portugal. Eu conto.
Esta é a memória de anos. Vinda da austeridade irrepreensível da Sala de São Pedro, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. A temática proposta por Steiner, cuja valia é inadjectivável, despertava curiosidade acerada: “Near misses: the destiny of Portuguese Literature in English”.
Há homens que são destinos. Frágil, talvez demasiadamente velho e encurvado, o público espera ansioso as palavras redentoras. A apresentação de Aníbal Pinto de Castro esconde ainda um encolhido e quase trémulo judeu. Tímido? Nem perto disso. A hora chega e um outro homem, coruscante de olhos, de raciocínio rápido e com ironia arrebatadora, rejuvenesce agora naquele corpo há pouco distraído e encostado à idade cronológica.
A glória da literatura portuguesa no mundo anglófono, di-lo um nem sempre bem informado Steiner, deve a sua modéstia a um conjunto de incidentes e desencontros, e os não menos importantes serão a prematura morte de Roy Campbell (1901-1957), o pouco apreço que o canónico Ezra Pound manifestou relativamente a Camões e a colagem publicitária de Eça a Honoré de Balzac e a Charles Dickens.
Elegendo Camões como exemplo de centralidade incontestada, aprestou-se Steiner a elencar o conjunto de traduções de Os Lusíadas efectuadas na velha Albion desde 1655, por Sir Richard Fanshawe (1608-1666) até ao projecto desgraçadamente seminal do poeta sul-africano Roy Campbell, que acaba por morrer de desastre, perto de Setúbal, antes de traduzir o nosso poema épico. Entre a tradução de Fanshawe (admirada por Bowra e Tillyard) e o projecto camonianista de Campbell, estão as traduções da epopeia de William Julius Mickle (1776), Aubertin (1778), Thomas Moore Musgrave (1826), Livington Mitchell (1854), Richard Francis Burton (1880), Robert Duff (1880), Leonard Bacon (1950) e William Atkinson (1952), todas apresentando pechas mais ou menos importantes: a última surge em prosa e desvia os leitores do espírito épico evocado pelo verso; a penúltima talvez seja a melhor; a antepenúltima revela amadorismo e infidelidade textual; de Burton se diz que “burtonizou” o poema; a de Mitchell e de Aubertin não serão más; a de Musgrave não será boa; a de Mickle deturpa; a de Fanshawe é pioneira e importante, embora não possua o espírito heróico do original.
Da proximidade ao acidente é um instante e, no meio de sorte e desventuras, a desaparição de Campbell é uma tragédia que faz muita diferença. Mas mais. Melville dedica dois sonetos a Camões e um deles só tem treze versos. Mais azar se segue com o desenho de Blake com Camões cego do lado errado. É Pound, no entanto, que dá forte machadada no poder de irradiação do nosso épico no mundo anglo-saxónico ao “determinar” que Camões é um sintoma e não uma força que às vezes é poesia e quase sempre é “pompa vazia”. Este julgamento terrível e a fatalidade de Campbell são dois incidentes que são graves acidentes para a glória póstuma de Camões no mundo anglófono. E se tudo tivesse sido ao contrário, e Campbell tivesse podido levar a cabo a sua tradução do poema épico e Pound tivesse sido um entusiasta de Camões? Será que o mundo de expressão inglesa olharia para o nosso Poeta de modo mais atento?
Talvez outro destino, certamente outra força e diferente brilho. Igual apagamento acaba por sofrer o nosso Eça, sempre prejudicado pela mania das comparações, quando, afinal, era óbvio que o escritor português não era Balzac, nem Dickens, mas “ele próprio, com a sua grandeza de província.”
Segundo Steiner, vislumbra-se na última década um fulgor inusual em volta do caminho de Pessoa. Não espanta, uma vez que se trata de um escritor que pela sua força inventiva deve ser colocado ao lado de nomes como os de Beckett, Borges, Milosz, Nabokov ou Wilde. Aliás, Bloom insere Pessoa no seu The Western Canon, o que é indício claro de dias limpos a preencher.
Nestes acidentes, que são também atrasos à maneira do ciclista Armand Godot que sempre se atrasava e viria a ser eternizado por Beckett, há um tempo novo que se adivinha. Depois da nobelização de Saramago, um outro risco propõe Steiner: o de que tal prémio pudesse ter sido partilhado por António Lobo Antunes, “um romancista esmagador”. Ora, tal posição do ilustre crítico é a nota clara de que a nossa literatura atravessa um momento feliz. Longe, os acidentes quase já nem são. Leibniz defendia ser a música a álgebra de Deus. Possa cada um escolher o seu encontro com a literatura. Tenha em si o seu nome, caro leitor, e saiba ainda que o risco da escolha é bem menor do que o custo do acidente.
Voltemos à nossa literatura e aos seus nomes. Tantos nomes maiores mais ou menos conhecidos. Vou escolher. Quem alguma vez teve um dilema igual?

2006-07-16

João d' Almeida (1902-1935): em eco se converta

Yolanda Bragado

Quase desterro para esta voz nua. Junto ao tempo, pouco eco. Só o sopro apagado da brisa da poesia. Quem sabe ou quem diz uma palavra de ti, Poeta?
João d' Almeida nasceu em Sezures, Penalva do Castelo, em 1902, vindo a falecer trinta e três anos depois, em Luanda. Mais de cem anos transcorridos sobre o nascimento do poeta, não seria fácil vê-lo celebrado na nossa circunstância. E, no entanto, a sua vida breve inscreveu um lugar literário que urge redimensionar.
Estudante de Direito em Coimbra (1920-1926), publicaria em 1923 o seu único livro “Novilúnio” e viria a integrar, nesse mesmo ano, a equipa directiva da revista coimbrã “Bizâncio”. Estes dois factos literários, quase simultâneos, diga-se, vieram a eternizar-se pela pena de José Régio nas “Páginas do Diário Íntimo”, o que, de algum modo, assegura a glória futura do esquecidíssimo escritor penalvense. Concluído o curso universitário, viria João d' Almeida a exercer advocacia em Luanda, cidade onde viria a morrer, depois de também por lá ter desempenhado funções de chefia na secretaria da Câmara Municipal.
João d' Almeida é um decadentista epigonal, como se colhe, por exemplo, no poema “Ária do Poente" (pp. 21-23): "sinto-me decadente, e adoro o abismo / do Poente, num desmoronar completo." Sem queda, vejamos agora, em breve contextualização periodológica, a possível sagração e destino deste poeta de um livro só.
Com raiz inscrita na área franco-belga, o Decadentismo difunde-se, no penúltimo decénio do século XIX, pela Europa e América Latina, vindo a perder predominância com os alvores do novo século, não obstante a sobrevivência epigonal a par do Simbolismo, a miscigenação ocasional com o Neo-Romantismo e a adstringência a ornamentalismos artísticos.
O movimento decadentista, nascido de uma crise de mentalidades e de sensibilidade, postula uma sagração poética, com possibilidade degenerativa superior e requintada, onde avulta um individualismo anti-heróico e fraccionado em nevropatia, sinal de tédio e prostração.
Sumptuarismo, anomalismo, artificialismo e esteticismo serão ainda palavras de ordem do conhecimento poético decadentista, que, do ponto de vista sugestivo, alinha no sentido de uma renovação prosódica e musical, com estranhamentos aliterantes, sinestésicos e vocabulares. Não deixa também de ser interessante a preocupação do artista decadente com a experiência pessoal, a auto-análise, a perversão e as sensações elaboradas e exóticas (advenientes, por exemplo, das decadências alexandrina, romana e bizantina).
Em Portugal, o estudo desde estilo epocal nem sempre foi olhado com a lucidez devida. Não obstante os esforços pioneiros de um Feliciano Ramos, de um Pedro da Silveira ou de um Túlio Ferro, o Decadentismo continuou a ver obliterada a sua complexidade, sendo subsumido a epifenómeno do Simbolismo ou entendido como seu dessoramento epigonal.
Essa lentidão emancipativa - devedora também da resistência manifestada pela crítica francesa, que dominou por largo tempo, influenciando o panorama nacional - ganhou alento decisivo, no sentido da autonomização, em virtude da obra de José Carlos Seabra Pereira, ainda hoje nodal, “Decadência e Simbolismo na Poesia Portuguesa” (1975), onde se estabelece a destrinça clara entre os dois estilos epocais distintos que são o Decadentismo e o Simbolismo, aparecendo-nos o primeiro como uma emergência dos anos 80, com implantação na transição da década, precedendo em pouco o segundo, prolongando-se de forma paralela até ao auge ( 1892-1902) e, depois, de modo epigonal na periferia de “Orpheu” e da “presença” .
Não se devendo confundir o estilo de época Decadentismo com a tópica da decadência ou com a síndrome da decadência nacional finissecular, os estudos dedicados à literatura de fim-de-século até “Orpheu” pelo reputado professor de Coimbra têm contribuído substantivamente para a clarificação semântico-pragmática dos sistemais epocais implicados nesse lapso temporal. Assim, de pleno direito e especificidade própria, o Decadentismo português renova o fim-de-século a partir de revistas portuenses e coimbrãs (“Os Nefelibatas” , “Revista d'hoje” , “Boémia Nova”, “Os Insubmissos” ...), com nomes como Raul Brandão ou Júlio Brandão (Porto), e António Nobre ou Eugénio de Castro (Coimbra), bem como com as presenças de Camilo Pessanha, Gomes Leal ou Fialho de Almeida, a par de um sem número que não enumero (um José Duro, um Júlio Dantas, um José de Lacerda...). Com parco alcance na literatura dramática (D. João da Câmara), com maior visibilidade na ficção (Fialho de Almeida, Raul Brandão, “Gouaches” de João Barreira...), o nosso Decadentismo tipifica-se mais capazmente no modo lírico, seja nos poetas coevos do momento áugico, seja nos epígonos do século XX (uma Judith Teixeira, um Luís de Montalvor, um Alfredo Pimenta, um João d' Almeida ou um José Galeno ), com consabidas - e já citadas atrás - características temáticas e formais, onde dominam, agora com exemplificações de “Novilúnio” , os pensamentos agónicos ("E fico agonizando"), as taras psiconervosas e viciosas ("Fico a delirar, irrequieto, / preso desta emoção toda histerismo..."), as excentricidades e bizarrias multimodais ("Ei-la que vem andando, a Grande Dama, / mãos em calice aberto, sôbre o seio..."), a musicalidade e a liberdade prosódica ( Álvaro Maia acusaria João d' Almeida de não saber contar as sílabas), a imagética sensualista (rutilista, necrófila, nosológica, etc.: "Templo de agata", "tenho suores na fronte cadavérica" ...) ou os raros vocábulos ('quimeral', 'longevas', 'vesperal', 'latescentes'...).
Pintor de poentes rútilos e de desejos febris, outros encantos reserva João d' Almeida aos atentos leitores. Converta-se esta memória centenária em eco do tempo e em palavra perdurável. Com menos urze e mais régia flor.

2006-07-14

passam 3 anos, hoje

Henrique Barrilaro Ruas (1921-2003) é um dos mais estruturados doutrinadores monárquicos do nosso tempo e um caso inegável de brilhantismo cultural e teorético.
Destaco aqui, de uma obra vasta e polifacetada, a constância firme de um homem que não tergiversou por razões de ideário. Aliando as boas qualidades às melhores ideias, serão sempre espantosamente jovens a sua Ideologia (Ensaio de análise histórica e crítica), de 1961, ou o pequeno-grande excurso O drama de um Rei (1965) , ambos provando, em escrita atractiva, que só o conhecimento permite o rigor. O último texto é, para mim, motivo de profundo orgulho, porque se inscreve, por várias razões, no meu reduto espiritual.
Henrique Barrilaro Ruas lembra-nos sempre o sangue que faz a história e o amor operativo que conduz a meditação. Foi assim, num dia 14 de Julho, que o intelectual nos obrigou à ausência e nos convocou para sermos testemunho. Qualquer reflexão sobre a pátria passa por si.



da poesia excepcional: grabato dias (1933-1994) & os impossíveis 70 anos



Seriam mais de setenta anos, em breve. E quase nunca esse lapso de tempo, brevíssimo à escala cósmica, permite um punhado de poetas assim, de acto e de facto.
Na transiente e verificável vida que nos foi dado ver, existem sempre “estranhos estrangeiros” que pouco se mostram e que muito são. Contra o rigor do vento e das chuvas, esta é daquelas figuras maiores da nossa cultura que não pode ser lacerada pela inclemência do tempo e pela intolerância crítica. “Monstro sagrado” da nossa literatura e também das artes plásticas, e o epíteto é de Eugénio Lisboa, seria Rui Knopfli a atribuir-lhe o apodo de “engenheiro de almas”.
Connosco cruzou este homem sem que o soubéssemos todos. Completo e diferente, as esplanadas e as nossa ruas viseenses mais típicas recordam ainda a sua presença intensa e inconformada. Artista renascentista pela vastidão de apetências manifestadas (pintura, cenografia, docência, urbanismo, arquitectura, apicultura, jardinagem, pecuária...), é como poeta que o convoco, na sua pluralidade de máscaras e personalidades. Sempre corrosivo, clama para que o homónimo escritor António Quadros passasse a assinar António Quadras, uma vez que o pintor era ele; adentro do mundo poético, vingará em si um certo João Pedro Grabato Dias, nascido em Inhaminga (Moçambique) e mestiço de “industano, celta, judeu e com prováveis avós nos Concheiros de Muge.”
António Augusto de Melo Lucena e Quadros nasceu aqui bem perto de nós, em Viseu, no dia 9 de Julho de 1933, vindo a morrer em Santiago de Besteiros , no dia 1 de Julho de 1994, com inclusos sessenta e um anos de idade.
Desconfiado desde cedo da ductilidade do artefacto de verbal, não mais o largou a ideia demiúrgica da refundação e da recriação da linguagem. A incorformação e a heterodoxia serão assim uma pregnância de sempre, desde os primeiros escritos até às últimas criações, como um método que não admitia a fácil cedência ou a tergiversação. Há sinais humanos que dizem o homem que connosco priva. Lembro este, coonestado há pouco por um seu amigo e admirador, feito tão mais admirável quanto se sabe como os homens são volúveis em face das ternas palavras ou das passageiras glórias: chega a ser absolutamente superior a modéstia que leva Grabato Dias a não reclamar, na década de sessenta (1968), um prémio literário que ganhara em Moçambique (“Prémio Literário de Poesia da Câmara Municipal de Lourenço Marques”) com o nome de Grabato de Tete. Sem alardes, passado o fulgor, soube-o Eugénio Lisboa, membro do júri, siderado pela confissão silenciosa e desinteressada do Poeta. Na mesma senda, segue um Knopfli (quem lê?) ao defender, com respeito máximo, que António Quadros sempre foi um envergonhado camponês de Santiago de Besteiros.
Em 1970, sai a lume, em Lourenço Marques, um livro espantoso de nome 40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada. Na constrição da forma poética fixa (“Ó soneto, ó espartilho carcereiro!”), a colectânea pauta-se pela ousadia expressional e pela subversão inventiva, abundando, a par de um camonianismo estruturante, neologismos, justaposições estranhizantes e “infracções” ortográficas. A linguagem estende o seu corpo ginástico pelo calor vulcânico de cada sílaba, expandindo-se, suspendendo-se e recriando-se, logo reganhando a estrutura profunda do texto um halo de corrosão, sarcasmo e humor. Tal erupção léxica facilita em muito a causticidade e a intensidade diferenciadora de um refinadíssimo humor que só encontra alguma equivalência em Alexandre O’Neill. No humor, num território que é idiossincrasia e experimentação, levanta Grabato Dias uma ars poetica única (“Humor, minha automática secreta”). Poesia “ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada, ardentemente bizarra, reveladora de um mundo fantasmagórico e quase demasiado verdadeiro” (Eugénio Lisboa dixit), poucas vezes a nossa literatura conheceu tão descontrolada paródia (“Amor. Te. Ti, tigo. A morte. Amo-te / sem R, sem risco ao meio da morte”), tão acertado humor sobre a biografia poética (“No mundo em pedaços repartida / ficou-me a mim e ao luís vaz a vida, / galinha gorda rebolante ao espeto.”) e tão evidente gargalhada de dessacralização artística (“Me, mi, Mimi, migo... Ó amiga, as migas / ainda são um bom prato, e até com ligas / de duquesa se faz tanto soneto.”).
Iniciada a obra impressa em livro de modo arrebatador, muito havia a esperar de uma obra que mais e mais se acrescentou: A Arca – Ode Didáctica na Primeira Pessoa. Tradução do sânscrito ptolomaico e versão contida do Autor (1971), O Morto – Ode Didáctica (1971), Uma Meditação, 21 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados (1971), As Quybyricas. Poema éthico em outavas que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões (1972), Pressaga (Ode Didáctica da Primeira Singular à Segunda Plural sobre as Terceiras, Segundas e Primeiras Pessoas) (1974), Eu, o Povo (1975), Facto / Fado. Pequeno Tratado de Morfologia. Parte VII. (1982), O Povo é Nós (1991), Sagapress (1992) e Sete Contos para um Carnaval (1992). Sabe-se existir ainda obra inédita e impressa de diminuta circulação, muita dela sem data.
Escolho, para conclusão, falar um pouco sobre As Quybyricas, até porque desde cedo se pensou tratar-se de um livro que muito desse que falar. “Testemunho irónico e fascinante”, assim o diz a releitura de Gil de Carvalho, esta obra de configuração épica é uma devastadora crítica ao regime português de então, esgotando-se o livro em poucos dias, sinal de que os leitores haviam entendido a perfídia subversiva. Polimórfico e sedutor, este longo poema de onze cantos e 1180 estâncias encerra tonalidades épicas, burlescas, dramáticas, jocosas, líricas, bucólicas e outras que fazem de si um imenso exemplar de descaso literário: afinal, quantos poemas como este no nosso século XX, em que “Luso descobre / que a herança imperial pouco mais era / que arco destinado a outra esfera”?
“O proscénio da luz começa aqui na pele”, diz o fabuloso João Pedro Grabato Dias. Estará o palco iluminado para esta diferença de acto e de facto?

2006-07-13

surge já

Ao Mário Joaquim Casa Nova Martins
vai anoitecendo enquanto vivemos
separados já pelo passado
não esqueço porém o paraíso aberto
nem a árvore que provámos
procuro ainda a extrema parte
verdade sem verdade que ainda somos
parecendo ser inteiramente como vamos
para o fim supremo que nos chama
reverso súbito de kleist e de pfuel
a vida recomeça sempre entre os dois
como a estrela no poema de cinatti.

2006-07-12

chove: "Uma abelha na chuva" de Carlos de Oliveira


Quase podres, as folhas dos plátanos enfrentam uma chuva de 50 anos. As cordas de água não morreram ainda. Meio século passado, quase exacto, as abelhas lutam pelo mel que a democracia parece negar. Cai a chuva no passado e no presente. Ainda agora, em conversa amiga, matinal, sem teatro, vi sobre a nossa cidade as “chamas ácidas de enxofre”. No fundo das coisas e no reverso da acidez, canta Carlos de Oliveira a canção contra o gelo do esquecimento. É um grito único e lustral que se ouve.
No princípio, era o símbolo. Não completamente arbitrário, o símbolo encerra um vínculo natural entre significante e significado. Olhando a vida e o mundo, vemos que o processo simbólico se vai apropriando de tudo, irrompendo nas acções e nos gestos dos homens.
No espaço semiótico, o sistema literário não é excepção: nele, sempre alguma coisa substitui ou representa alguma coisa diferente, por sugestão ou relação.
Transbordante de símbolos e representações (e algum “defeito” da obra pode estar aí), “Uma abelha na chuva” (1953) de Carlos de Oliveira é, no sentido de Manuel Gusmão, uma espécie de tragédia cruzada por vários destinos trágicos.
Obra de imaginação eficaz e rigorosa, o romance de Carlos de Oliveira “observa” o mundo real através de tenso trabalho verbal iluminador do grande símbolo de tragédia e das referências simbólicas defluentes que alguma crítica encontra nas palavras tão autorais como são “paisagem” e “povoamento”. Da sintaxe simbólica da tragédia com a luta gandarense (paisagem e povoamento, afinal), segue o livro o seu trajecto tenso de símbolos, como o afirmam os pares opositivos fogo/água, mel/cinzas, mel/tabaco, abelha/água, mel/chuva, fonte/rio ou mar/poço, com variações de significação de acordo com as representações e os momentos textuais.
O signo trágico assenta na utilização articulada de palavras-símbolo, assumindo cada uma as metamorfoses decorrentes da sintagmática narrativa. A tragédia resulta da interacção dos elementos que transformam o mel em fel, tudo arrastando para a corrosão e para as cinzas. Em paisagem cinérea, armadilhado o povoamento pelo destino trágico, a morte de Clara é decidida pela paixão e pela impossibilidade de ser fecunda num espaço dominada pela secura e pelo incontacto. O mel cede ao fel e a “moeda de ouro”, com a perfeição do círculo e o valor da perenidade, é também Jacinto, assim designado por onomástica significativa que convoca a perfeição, a beleza e a preciosidade. A morte anunciava-se desde há muito: o pisar das folhas caídas e a devoração desse “oiro” pelos vermes diziam já a morte de Jacinto, corpo jovem que foi bode expiatório de uma comunidade improdutiva e viciosa.
Afinal, o tempo dos senhores, numa narratividade cíclica feita da vacuidade dos serões e das crises conjugais de Álvaro e Maria dos Prazeres, esmaga o tempo dos dominados que progride para o aniquilamento. E nem assim cessa a esperança, a luta.
O código temporal do romance caracteriza-se pela linearidade da história e pelo ordenamento. A par, a conflitualidade e a frustração relacional propiciam o recurso à analepse, que afirma através da imagem da água o primado da ancestralidade face a um tempo doloroso do presente de que conhecemos cerca de quatro dias. A constância dos fluxos aquáticos ao longo da obra, afinal, símbolo claro do fluir do tempo, traz consigo a imagem da irreversibilidade.
Em conclusão, o código temporal e o repertório simbólico de “Uma abelha na chuva” contribuem decisivamente para a unidade de uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX. Quem vem rasgar esta chuva densa?

2006-07-11

António de Albuquerque, escritor panfletário?


D. António de Albuquerque do Alardo de Amaral Cardoso e Barba de Meneses e Lencastre ou D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso de Vilhegas e Guzman Barba Alardo de Lencastre e Barros de Menezes Pina e Lemos, fidalguíssimo, nasceu em Viseu, na casa do Arco, em 11 de Março de 1866. Era filho de D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso e de D. Emília Augusta Barba de Lencastre ou D. Emília Augusta Barba Alardo de Lencastre (Amparo), tendo casado pela primeira vez com a senhora D. Luíza Mousinho de Albuquerque ou D. Maria Luíza de Pinho, de quem teve dois filhos, Rodrigo e Maria de Lurdes, ambos com geração.
Miquéque, assim seria conhecido em Viseu, esgotou a juventude em viagens, absorvendo nessa fase uma educação e uma instrução tipicamente parisienses. A influência da literatura francesa e do republicanismo facilmente o penetraram. Já em Portugal, a sua maneira mundana e convivial era censurada e incompreendida. Chegado ao estrépito do papel principal, era muitas vezes mero joguete.
Sobre o seu carácter de homem, Rocha Martins adianta um conjunto de designativos que Cezar dos Santos, o "biógrafo" de António de Albuquerque, confuta veementemente. Semeando ventos sempre, o escritor viseense não se coibiu de nos apresentar, no seu Sidónio na lenda, um Sidónio Pais degenerado e sofredor de desequilíbrio atávico.
A obra de António de Albuquerque não é abundante. Dentro do modo lírico, publicou Arco-Íris e o poemeto Maria Teles; na ficção, sempre em romance, Escândalo! (1904), O Marquês da Bacalhoa (1908), A Execução do Rei Carlos (1909) e O Solar das Fontainhas (1910); prefaciou o livro de Gomes de Carvalho Morte Civil (1914); e, por último, legou-nos o volume de investigação histórica Sidónio na Lenda (1922).
Se a obra lírica nada traz de particular, fundando-se numa incaracterística toada debutante, a tradução de Les Civilisés (1906) de Claude Farrère (1876-1957) trouxe-lhe uma aprendizagem para a fase romanesca que se iniciará em 1904, com Escândalo! .
Segue-se-lhe o muito polémico O Marquês da Bacalhoa (1908), título insinuado, ao que parece, por Gualdino Gomes, e que substituiu o previsto Enseada Azul. Saído sob chancela da Imprimerie Liberté de Bruxelas, que a tal obrigava o gravoso da matéria, defende Rocha Martins que o "editor do livro injurioso" foi Gomes de Carvalho. Raul Brandão, em Vale de Josafat afirma que o imprimiram "num quarto andar da Rua do Arco do Bandeira, numa destas pequenas oficinas a que os tipógrafos chamam catraia ." Preso ao escândalo, tudo se estampa na capa do romance, finalizado em 6 de Setembro de 1907 e publicado no início de 1908: sob a epígrafe baudelairiana da crença nas capacidades individuais, estampa-se a "vera efígie" daquele que há-de morrer no Terreiro do Paço, local onde, assim o afirma Henrique Barrilaro Ruas desde há muito, nascerá um dia o “homem novo”.
Não obstante os 800 réis que faziam d’ O Marquês um livro caro, as vendas sobem a 6000 exemplares. Na propalada e requestada obra contam-se "as tropelias de um ministro ‘Nunes’ durante o reinado do ‘marquês da Bacalhoa’, não sendo muito difícil descortinar a que personagens reais correspondiam os nomes postos no livro pelo autor, António de Albuquerque.". Tal exercício da referencialidade efectuou-o Vasco Pulido Valente no início de 1998, ao referir que as personagens são "o marquês (D. Carlos, na realidade, proprietário da Quinta da Bacalhoa), a marquesa (D. Amélia); o conselheiro João Nunes dos Santos (João Franco); D. Álvaro de Luna (Mouzinho de Albuquerque); Maria de Silves (a condessa de Sabugosa); e a condessa da Freixosa (a condessa de Figueiró, a famigerada Pepa Sandoval, amiga da rainha)."
Cecília Barreira sustenta que em tal romance clandestino e de grande voga, que “em Lisboa se vendia à sorrelfa” e “onde se abocanhava a dignidade da rainha”, existem alusões “aos amores sáficos da rainha D. Amélia, por quem Mouzinho de Albuquerque nutriu uma paixão, e cujos amores contrariados, se teriam traduzido pelo suicídio.”.
Dito roman à clef ou livre à clef, Carvalho Homem prefere apodar a obra de Albuquerque de romance-panfleto e sobre o Autor adianta tratar-se de “um plumitivo de baixo nível cultural e moral”. Similar posição tomam Júlio de Sousa e Costa e Rocha Martins. Maria Filomena Mónica, em discurso mais objectivo e sereno, defende que O Marquês da Bacalhoa “constitui um excelente resumo da mitologia que rodeava os costumes do Paço.”.
Panfletário e herdeiro do intervencionismo neo-romântico de proveniência naturalista, enformado no mecanicismo e no jacobinismo, O Marquês da Bacalhoa não oferece relevo técnico-compositivo ou estilístico, dele ressaltando um iniludível teor doutrinário e uma coragem indisfarçável. Afinal, o valor desta obra assenta no seu carácter heteróclito e polemizante, onde abundam as alusões referenciais à família real e as asserções de uma tese político-social revolucionária, bem como na evidente feição paradocumental que o torna incontornável no estudo da época.
Na mesma linha referencial, sai, em 1909, A Execução do Rei Carlos, obra que prima por uma força contestatária contra as monarquias, o catolicismo, a família, o jornalismo luso, a política portuguesa e, de acordo com o prefácio e a epígrafe bakuniniana, contra o patriotismo. Exalçam-se com perenidade mitificante os regicidas, nomeadamente Buiça, e o propagandismo social típico da corrente vitalista do neo-romantismo.
No ano seguinte, em 1910, com dedicatória a Teófilo Braga e com datação final "Paris, 15 de junho de 1910", publica António de Albuquerque o romance O Solar das Fontainhas , com o subtítulo Cenas do Porto , o que nos permite intuir um regresso a um criticismo social semelhante ao de Escândalo! , com a gravitação de alvos assinalados e com a presença de artistas militantes imbuídos de acrasia e de sede de justiça. Interessante se torna sublinhar que Gusmão, o alter-ego do escritor, declara ser autor de romances injustiçados...
No ano de 1922, sai a lume Sidónio na Lenda. Estudo crítico, "um interessante estudo sobre a trajectória de Sidónio", que inclui também um texto de Bourbon e Meneses sobre José Júlio da Costa e uma conversa com o mesmo dirigida por Manuel Ribeiro.
Pelas quatro horas da manhã do dia 2 de Julho de 1923, na sua casa de Sintra, António de Albuquerque, "penitenciado e ungido", depois de uma vida cheia, entregou-se a Deus num abraço ostensivo.
Nesse tempo de verdade, já quase morte, em atitude fungível e requintada, catoliciza-se, lamenta as aduções regicidas ("-Oh! El-rei! Nunca lhe entendi a grandiosidade da sua alma e nunca lha entendi porque El-rei era mais artista do que eu. Hoje!", terá dito) e procura o perdão de S.M., a Senhora D. Amélia, através de carta escrita no dia 14 de Maio de 1923 e nesse mesmo dia reconhecida no notário lisboeta A.G. Videira, vindo-o a obter.Tal missiva, reproduzida em fac-simile na obra de Cezar dos Santos, tem ainda a curiosidade de desvelar por baixo da assinatura de António de Albuquerque a adenda de Visconde do Amparo, assumindo assim uma autoadmonição indiciadora de que vivera como uma fictio personae .
Em acto pensado e de conseguido alcance deôntico, António de Albuquerque reconheceu os pretéritos e exautorados actos. Sempre só, depreciado e solitário. E, como se sabe, a solidão tem perdão...
Assim se conclui que esse acto sem escrita, desapenso do artefacto literário, acção do homem e não dos deuses, inscreve no fechamento de uma vida a verdade de que um trajecto literário se altera pela palavra final, dita e não escrita.
Por via da publicação recente de O Marquez da Bacalhoa pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, com prefácio de José-Augusto França, podem os leitores viseenses e nacionais relembrar um escândalo que abalou os primeiros anos do nosso século XX. Valerá a penar denegar uma óbvia presença?

2006-07-10

germania


CREPÚSCULO

Cai no pontão a noite
corpo que se une à cidade
trazes o pão o vinho
a mesa sobre os ombros
ao lado outros homens
regressam ao silêncio das casas
ao ranger das madeiras
aos tecidos moldados pelo tempo.

Da consciência bruta
um relâmpago fere agora o caminho
por que avanças solitário
preso às sombras e ao manto da noite
que te desenham o rosto e te apressam
o coração que cavalga no peito.

Para que vens, triste, até mim,
seguindo o fogo o abismo da noite
e os passos do poeta sagrado?

Mas é já tarde – troça o louco dentro de ti…

WOLFGANG

Junta-se à pele a palavra
(assim a visão do poeta)
que Goethe à frente do tempo
desde há muito anunciou:
um canto e solitário vinho
e um lume dentro do cérebro.

LIVRO DA MEMÓRIA

Superfícies intensas as da memória
quente contra o silêncio
do íntimo da casa das palavras.

Súbito cai o mel e uma pequena nascente
uma luz mais luminosa
rodeia o olhar infuso
confundindo-se na humidade do coração.

No pulsar das carótidas
acende-se então o lume
a pique dentro da casa
a pique dentro da fonte.

2006-07-09

copos gregos

Como João Pedro Grabato Dias, digo que a ética “tem sempre simples regra / que se cumpre por extenso e sem sofisma.” Arte maior é a fruição da bebida alcoólica que deve encontrar no consumidor um tecto e um plafond coado pela justeza e pela moderação. Como o sal na comida (o Bispo Alves Martins o disse) ou antes pouco que muito, é o vinho um alimento, sem ressaibo salazarista, que vem de longe e se vê ao perto, misturado nos suskindianos perfumes e odores da vida. Do fogo da terra e da aridez do trabalho braçal, nem sempre o humano lobriga o rito da criação – que pode o homem contra o rigor dos tempos e a vontade insondável das forças clandestinas?
Encostado desde longe à escalada do homem, preso mesmo à deflagração das contingências míticas da impossibilidade, o vinho inunda as veias do mundo e levanta consigo o seu fautor. Diz-me que vinho bebes e dir-te-ei quem és é reflexão que desnuda o obstinado rigor dos melhores néctares e mostra a idiossincrasia do bebedor informado.
Supletivo face aos concorrentes, nem sempre a específica virtude vínhica tem mais adeptos que outras bebidas mais rápidas e mais frescas. Os jovens que cruzam as nossas escolas sabem-no bem, arriscando o quotidiano em troca de bebidas vorazes que não conhecem a lisura do vinho contido. E essa é uma lição a ser ministrada urgentemente: a de que beber não é uma obrigação, antes interessando o equilíbrio do vinho moderadamente bebido na sã e luminosa conversação.
Beber, beber devagar, como Derrida aconselha a ler devagar, eis um objectivo para muitas vidas a ser inscrito hoje em ordem do dia que cada educador deve obrigatoriamente ensinar. Hoje é já tarde e é já tempo, num país sem os modos trabalhados, de se beber com a medida certa da exacta bebida.
No princípio era o vinho. Das uvas as mãos do homem sangraram dentro do lagar. E do sangue e do mosto se fez o brilho de cada fio luminoso. Há convites ao epicurismo das libações báquicas que, poderosos, parecem atirar o humano para o vício e para a incontinência. Lembro o celebérrimo fragmento de Alceu (frg. 346 Lobel-Page) que convida a que “Bebamos!” o vinho “que dissipa as aflições”:

Deita-o nas taças, uma parte para duas,
cheias até à borda, e que um cálice
empurre o outro.”

Este poema, do século VII-VI a. C., é, não obstante, um hino à contenção, tanto mais que a divisão em partes implica a mistura com a água. Em simultâneo, a hora de beber é um prémio que humano alcança depois de um dia de trabalho e de cansaço.
Mas se algum poema – e lembro que poesia apresenta uma sintagmática discursiva próxima da densidade filosófica (afinal, quantos poetas filósofos e quantos filósofos poetas?) – é verdadeiro exemplo do ideal da moderação grega e da desejada contenção é um fragmento de Anacreonte (VI-V a.C.) que muito pode hoje dizer aos jovens e adultos que gostando do vinho, se respeitam, respeitando a bebida e a sua qualidade:

Anda rapaz, traz-me uma taça
para eu beber um gole,
deitando dez medidas de água,
e cinco de vinho.
Quero festejar Baco
de novo, sem insolência.

Vamos pôr de parte
as maneiras cíticas,
com suas palmas e alarido,
e, em vez disso, beber moderadamente,
ao som de belos hinos.

Tal moderação não contende com o prazer de beber, antes exacerba o bom gosto e a glória interior. Dominar um vinho e ceder o corpo aos seus influxos é uma arte maior que nem todos podem experimentar. Teógnis, poeta coevo de Anacreonte, destaca como um dos grandes prazeres da vida o “beber bem”:
Gosto de beber bem, cantando ao som da flauta,
gosto de ter nas mãos a lira de sons melodiosos.
Aliás, ao mesmo tempo, Píndaro não esquece o carácter divino do vinho, referindo-se aos vencedores dos jogos olímpicos como “cobertos de prata, / com taças para o vinho.”
E não deixa de ser interessante que Dioniso, o mais anarquista filho de Zeus, tenha ensinados aos homens o fabrico do vinho e a celebração festiva dos momentos, para que depois, em sua honra, tenha sido inventada a tragédia. É nesta tensão que a aprendizagem do vinho deve começar por ser feita: beber vinho, afinal, não deve ser tragédia, antes um ritual elaborado de bem-estar e de exercício livre da cidadania.
Como na velha Grécia, seja o bebedor um homem livre e equilibrado, que possa, com a sua moderação, ensinar a arte maior de bem beber. Dessa justa fusão nascerá, por certo, um homem mais preparado e previdente, verdadeiramente apto para o desempenho de uma cidadania activa.
“Beber, mas devagar” – eis uma divisa que o pensamento grego fundou e que, passados anos, ganha nova importância formativa. Cada passo firme neste trajecto comunitário é um momento ético que cada educador deve estimular.
Possa o exemplo mostrar a todos o carácter insubstituível de uma bebida que cruzou os tempos com um vigor que nenhum desvario ousou esconder.
A moderação é um ideal que o jovem de hoje deve abraçar sem receio. Esta “história do vinho” acertada pelo diapasão da justa medida é um tema inserível no âmbito da educação para a cidadania, defendendo-se a resistência a todos os consumismos alienantes.
Em época de crise de valores e de relativismos injustificáveis, serve ainda a temática abordada para a enfatização da necessidade do respeito por todos, no sentido da constituição de uma identidade individual positiva, que convalide como elemento identitário da nação um produto chamado vinho, que é, sem dúvida, forte como o grito poético das mulheres afegãs.
Eis, pois, outro claro sinal da justa asserção de Walter Benjamin que postula que a “cervejaria é a chave de qualquer cidade.”