2007-01-31
a cor da terra
e ninguém lembra a vida destinada
assim correndo em fios pelas mãos
contra o aço das fundações da cidade.
contundente um prego no céu da boca
marca a fronteira das águas bem fundo
e pinga após sangue é vermelha a terra
como o desejo em que parado vibras.
quanto de ti o chão a flor dentro da pele?
2007-01-30
secura
enterrando os pés nos pântanos duros
da terra neblina que no dorso rompe
sem lenha ou fogo dentro da estação.
as mãos moldam a noite detidas no gelo
enquanto os pinhais longe ondulam a dor
os sinais e as ruínas cobertos de tempo.
em breve a fornalha abre-se aos ossos
à cremação exemplar dos tecidos enxutos.
sem nome a nudez do corpo sem seiva jaz.
2007-01-29
2007-01-28
Seminário (Ciências Documentais): uma aproximação (1ª sessão)
E, de facto, há um cuidado reconhecível manifestado pelo homem relativamente ao livro, que é, diga-se, um dos objectos mais indeformáveis e mais perenes da nossa história. Um escritor português da primeira parte do século XX, Carlos Queiroz, também assinalado escritor presencista, escreveu um poema na revista Atlântico (Nova Série, nº 3, 1947, pp. 57-61), de título “Há um livro…” (integrado posteriormente em Epístola aos Vindouros e outros poemas [1989], por David Mourão-Ferreira), que muito esclarece sobre as particularidades únicas do livro:
Há um livro singular
Publicado não sei onde,
Cuja leitura é um bálsamo
Para todos os anseios.
Nesse livro não se aprende
Uma ou todas as ciências,
Mas a arte dificílima
De ser sempre natural.
Se quisermos, é um espelho
Em que nos vemos por dentro,
Ou janela escancarada
Para os mundos intangíveis.
Faz de chave, se quisermos
Ter recôndita a noss’ alma,
Ou abrir o entendimento
Para entrar qualquer verdade.
A certas horas responde
Às perguntas mais subtis
E cura todas as dúvidas
Por mais antigas que sejam.
Se cuidarmos ser felizes
Ou nos pesa uma alegria,
Logo nele encontraremos
O melhor dos confidentes.
Se a tristeza nos amarga
Ou esterilmente a sentimos,
Logo nele se torna doce
E nos parece fecunda.
Tudo quanto nos provoque
Ardentes cogitações,
Terá nele um sedativo
Mais eficaz do que a música.
Se nos aflige uma insónia
(Quando invejamos os mortos)
Ele conduz-nos pela mão
À margem do rio Letes.
Se temos sono e nos dói
Adormecer como um bicho,
Ele povoa a nossa noite
De sonhos excepcionais.
E se – o que é frequente –
Nem sabemos o que temos,
Basta abri-lo em certa página
E logo em nós se faz dia.
Ciúmes, ódios, intrigas,
Remorsos, vexames… tudo
Encontra nele um afago
Que torna as águas tranquilas!
*
* *
Agora, perguntareis:
- Mas que livro é esse?
Quem o fez? Como se chama?
Em que sítio está à venda?
Ah, meus amigos! Por mim,
Sei apenas que ele existe,
Que foi escrito em língua viva
E é de formato in-oitavo.
Ou ignoro desde sempre
O nome do Autor e o título,
Ou talvez um anjo cábula
Na memória os apagasse.
Desta dúvida nasceu
O vício de ir aos leilões,
De comprar livros inúteis
E devorar os catálogos.
Já em certo alfarrabista
Com notório sobressalto
Julguei vê-lo numa estante,
Mas era um guia turístico!
Na livraria onde eu entro
Mais vezes, há um caixeiro
Que me fita de soslaio,
Pensando não sei o quê.
Em vão percorro e farejo
Com suspeita inquietação
As lombadas dos volumes
Que há nas casas que visito.
Nestas inglórias pesquisas
Já fui à Torre do Tombo
E perdi horas inúmeras
Em diversas bibliotecas.
Resta-me ainda uma esp’rança:
Declarar publicamente
Que darei por esse livro
Todos os livros que tenho.
Todos! Antigos, modernos,
Brochados, encadernados,
Tanto em prosa como em verso,
D’autores nossos e estrangeiros;
Até os que me emprestaram
E nunca mais devolvi,
Sem esquecer os que me deram
Com belas dedicatórias…
Todos, todos, todos, todos
- E são muitos, podem crer –
Dou em troca desse livro
Que por força há-de existir!
1. A literatura para crianças e jovens é uma “ilha fantástica” à qual é preciso chegar. Importa que o leitor cedo parta, interessa que o educador olhe distante e sempre vigilante. O estímulo é a palavra certa sobre um mundo que o jovem sorveu voraz. O pequeno leitor escolhe a sua ilha, ele que consigo transporta uma “ilha” de sortilégio. O adulto deve ele próprio interessar-se e falar das suas leituras e sugerir outras rotas e deixar-se arrastar pela força das águas da curiosidade que existe em cada ilha e em cada criança já nessa “ilha fantástica”. O resto, nova partida, outras chegadas, é tão-só a pulsão de uma leitura enraizada, próxima da respiração, que diz no cólofon de cada texto que vale a pena partir e que várias serão as chegadas, se valer a pena chegar.
Baralho e dou de novo, repetindo. A textura física e semântica da palavra ‘ilha’ é facilitadora, desde logo, desta ligação ao mundo infanto-juvenil, nomeadamente pela sugestão directa do fantasioso e do quimérico, qualidades que enformam o mundus de crianças e de jovens. Mas não só. A ilha é sonho e sofrimento da literatura de todos os tempos e lugares. Provoca ainda um espaço de evocação que é halo de mistério indenegável. Tal tonalidade penumbrosa e estranhizante–cativante é apanágio da homérica ilha dos Ciclopes, da fugaz ilha de Topázio da História Natural de Plínio ou da consabida e desafortunada ilha Perdida de que nos fala, verbi gratia, Gil Vicente. E depois há toda uma atmosfera sinistra em muitas delas, seja pelo perigo dos seus contornos, seja pela tectónica vulcânica, que indubitavelmente nos leva ao “pestanejamento” de Georges Steiner – como não lembrar, num misto de terror e de pulsão, a platónica e infeliz ilha Atlântida, a ilha-namorada do capitão Nemo d’ A Ilha Misteriosa de Júlio Verne ou a fantástica ilha de seres impensáveis de The Island of Doctor Moreau (1896)?
Sem corte, com sutura, vemos ainda nessa palavra ‘ilha’ um nimbo de superioridade e de força mágica. E, de facto, em ilhas nasceram notáveis seres mitológicos como o cretense Zeus, a citéria Afrodite ou o brilhante Apolo, natural de Delos. Imaginárias umas vezes, mais reais noutras, paradisíacas algumas, infernais umas quantas, quem resiste ainda aos encantos da mediévica ilha de Avalon, fiel depositária do rei Artur, ou a tantas recriações insulares da literatura de todos os tempo e lugares? Quem permanece indemne a esta atmosfera que paira no ar à espera do nosso sonho?
A literatura é esse sonho. É nessa senda que se despenham criador e eco da coisa criada. E a ilha, essa fulguração de atracção e superação, em toda a obra habita como um corpo totalizador. Assim acontece com a literatura “pairadora”, colhida nas vozes reprodutoras, em caldeamento oralizante, com muita produção que gente miúda e gente graúda não deixa de conhecer, por leitura directa ou por incorporação ocasional. Cito ainda, neste movimento motivemático, outras ilhas e outros voos com palavras aladas. Sem exaustão, vem à memória a ilha Utopia da homónima de Thomas More e os seus habitantes bem educados, vivendo comunitariamente e infensos à dor pela eutanásia, nesse não-lugar habitável pelo poder da imaginação. Neste contexto de utopismo insular, chamo também à colação a Cidade do Sol, ideada por Campanella em 1602, na mítica Taprobana, ou, em matiz similar, a ilha de Bensalém de New Atlantis (1627)de Francis Bacon.
É de ilhas e de conquistas que vou falando. Avanço. Um livro que fácil e prazenteiramente foi conquistado por crianças e jovens, pese embora o seu tom filosofante, foi aquele livro que conta a história do fantástico Robinson Crusoe e que Daniel Defoe publicou em 1719, com as aventuras de Selkirk na ilha de Juan Fernández. Outras ilhas existem: a “ilha Namorada” de Camões, as ilhas encantada e do Pranto do Orlando Furioso (1516) de Ariosto. Fantásticas e infungíveis são ainda as aventuras de Gulliver nas ilhas Balnibarbi, Blefescu, Laputa, Liliput e Luggnagg, tão de todos, da autoria de Jonathan Swift. É também o viseense João de Barros, na sua Crónica do Imperador Clarimundo (1522), quem abre o caminho ao fantástico e ao possível com as suas ilhas do Abismo, Afumada, do Alto Pináculo, Abundante, Bem-Aventuradas, Deleitosa e outras. E nem poderá faltar aqui, nesta incursão rápida pelo motor insular de mundos possíveis a haver, a possibilidade que Cervantes reserva ao seu Pança de poder governar a ilha da Barataria. É este o poder das palavras no turbilhão da imaginação.
2. O tema da criança e a sua ideia como evasão ou passado obsidiante, como crítica ou ponto nodal do desenvolvimento, têm a idade da palavra e o afecto da literatura de sempre. Não há autor, nem leitor que o desmintam. E, de facto, desde a aparentemente longínqua Comédia de Rubena (1521) de Gil Vicente – dramaturgo que jubilosamente celebro aqui na juventude dos quinhentos anos do seu Monólogo do Vaqueiro– até incrustações posteriores que passam por Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, pelas confissões maravilhadas de Almeida Garrett a respeito dos velhos tempos de criança ouvindo as encantadas histórias da criada idosa; pelo desencanto de Eça de Queirós nas Cartas de Inglaterra ao reparar que um vazio de acção recobria a actividade editorial no nosso país no respeitante à literatura infantil; chegando-se, por último, a toda a tematização de ambiências infanto-juvenis e adolescentes que percorre a nossa literatura portuguesa do século XX e dos tempos novos. E lembro, por exemplo, romances de formação como Uma Luz ao Longe de Aquilino Ribeiro ou Manhã Submersa de Vergílio Ferreira; recordo ainda o mergulho na infância e na adolescência levada a cabo pela maior parte dos escritores presencistas e afins (Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Tomaz de Figueiredo, Marmelo e Silva...); avoco também, nesta perquirição pelo mundos criados de incidência infanto-juvenil, os sentidos poemas dedicados às mães[1] ou destas decorrentes em emoção (de um Fernando Pessoa: “Lá longe, em casa, há a prece: / "Que volte cedo, e bem!" / (Malhas que o Império tece!) / Jaz morto, e apodrece, / O menino de sua mãe.”; de um Almada Negreiros: “Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade.”; de uma Judith Teixeira: “Fecha a janela, Mãe! Vem-me cobrir. / Mãe! sinto frio, até no teu olhar! // Mãe! quero regressar – voltar ao Nada - / e perder-me na grande Escuridão!”; de uma Florbela Espanca. “Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? / Entre agonias e em dores tamanhas / Pra que foi, dize lá, que me trouxeste”; de um Sebastião da Gama: “Pra que o dia fosse enorme, / bastava/ toda a ternura que olhava / nos olhos de minha Mãe...”; de um José Régio: “Já tenho três maços, Mãe, / Das cartas que tu mês escreves / Desde que saí de casa...”; de um Vergílio Ferreira: “Espera aí ainda um pouco. Ouve aí. É um momento. / Agora que viraste costas definitivamente / e arrumaste a vida, para ires ter com o velho Pai, / que eu estou a ver daqui já impaciente pela demora, / veio-me uma necessidade bruta de te dizer duas coisas / que nunca calhou dizer-te.”; de uma Maria Judite de Carvalho: “Inventei-te para mim nocturna e mansa / e dei-te o olhar negro e tão parado / com que velavas meus sonhos de criança / sem estares ao meu lado”; de um Eugénio de Andrade: “Não me esqueci de nada, mãe. / Guardo a tua voz dentro de mim. / E deixo-te as rosas. // Boa noite. Eu vou com as aves.”; de uma Maria Alberta Menères: “Mãe rosa desnudada / pétalas de sangue evoluído / ficou a tua onda ondeada / Mãe do rosto dormido?”; de um José Manuel Mendes: “eras a mais pura fala / do silêncio: / rumor; manhã / nas nervuras / da folhagem”; de um Vasco da Graça Moura: “E não queria ser vista e foi envolta / num lençol branco em suas dobras leves. / Pus junto dela algumas rosas breves / e a lembrança represa ficou solta”; de um António Franco Alexandre: “Vejo a pequena terra em que nasci / o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa / o rosto de minha mãe”; de um Luís Miguel Nava: “De astros / as ruas eram cheias que os cuspiam hoje / na minha mãe de outrora, nas crianças de água”; e, por último, desse fugidio cometa das nossas letras, de nome Daniel Faria, que os tempos encaminharão para lugar central na literatura portuguesa, e que diz como só ele poderia dizer esse fascínio de lugar temático que é a presença da mãe como sujeito e objecto literário do nosso imaginário: “O filho é o carrossel à volta da mãe / O carrossel no coração da mãe / A luz dos carrosséis e a música / E leva a mãe no seu cavalo.”).
3. MARCAS NA LITERATURA PORTUGUESA PARA A INFÂNCIA E A JUVENTUDE
3.1. SÉC. XVI: O CASO DE GONÇALO FERNANDES TRANCOSO
Em 1894, Stéphane Mallarmé realizou, em Oxford, uma conferência que deveio célebre. Refiro-me à consabida “La Musique et les lettres”. E as primeiras palavras do notável poeta não deixam de ser apelativas. Cito: “Trago-vos com efeito notícias. As mais surpreendentes. Nunca se viu coisa assim. Mexeram no verso... On a touché au vers.”[2]
Assim modestamente vos digo eu também trazer notícias surpreendentes sobre um autor de nome Gonçalo Fernandes Trancoso, quase desconhecido, que nos obriga a algumas arrumações no âmbito da literatura para a infância e juventude e não só. E se tal acomodação pode passar pelo estabelecimento do termo a quo da literatura para gente mais nova a partir de si, avanço ainda que as suas histórias escritas no quinhentismo português são produtos literários de proveito e exemplo à espera da curiosidade dos mais diversos leitores.
Mas, quem foi Gonçalo Fernandes Trancoso, para que valha a pena falar dele? Nascido em finais da segunda década do século XVI, provavelmente em Trancoso, sabe-se pela sua obra mais conhecida Contos e Histórias de Proveito & Exemplo (1575) que morou em S. Pedro de Alfama. Vivendo em Lisboa ao tempo da peste de 1569, só a custo resistiu ao cataclismo que lhe dizimou a família: “perdi no terrestre naufrágio uma filha de vinte e quatro anos, que em amor e obras me era mãe; um filho estudante; um neto moço do coro da Sé. E para mais minha lástima, perdi a mulher, que por suas virtudes era de mim amada, o que foi causa de grande tristeza minha.”[3]
A tragédia moral que por sobre si se abateu espoletou-lhe o gosto pela redacção de contos, que, influenciados pela tradição italiana de Boccaccio e Sacchetti, entre outros, bem como pela oratura nacional, lhe serviam “por fugir daquelas tristezas”.
A popularidade da sua obra é bem visível na justa e bem merecida fama que conquistou, tendo sido um dos escritores mais lidos do século XVI ao século XVIII, espaço temporal em que imprimiram dezasseis edições, o que atesta a adesão de público aos seus contos exemplares e apotegmáticos com as raízes atrás assinaladas e natural decorrência do quatrocentista Orto do Esposo.
Não obstante as vozes dissonantes, parece-me certo que estes contos de Trancoso, até pela adjectivação que promovem (populares, edificantes, sobrenaturais, vivazes, originais, curiosos, singelos, fantásticos...), devem ser inseridos na fase formativa da chamada literatura para a infância e a juventude. Aliás, relembro um aspecto biográfico que não mencionei que se prende com a possibilidade de ele ter sido preceptor de meninos e mestre de Humanidades (Latim e Retórica) e que certamente terá interferido na sua criação literária.
Inaugurador entre nós do conto e, segundo João Palma-Ferreira, “caso único na literatura portuguesa do século XVI”, a influência de Gonçalo Fernandes Trancoso terá sido tal que no Brasil chamam “histórias de Trancoso” àquilo a que nós chamamos “histórias da Carochinha” e, no primeiro quartel do século XX, um Agostinho de Campos di-lo “o avô rústico que conta histórias aos meninos”.
João Gaspar Simões vê em Trancoso “um autêntico aedo popular”, contribuindo para o seu carácter atractivo a simplicidade de redacção, a coordenação predominantemente sindética, a utilização de provérbios e anexins, bem como o ingénuo realismo.
Coevo de um importantíssimo conjunto de vultos literários (Camões, Bernardim, Cristóvão Falcão, Sá de Miranda, António Ferreira, Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz, Gil Vicente, João de Barros, Diogo do Couto, Damião de Góis...), o que justifica, até certo ponto, a sua ocultação, Gonçalo Fernandes Trancoso virá a falecer no penúltimo lustro do século XVI.
Como atrás disse, trago-vos notícias surpreendentes: Gonçalo Fernandes Trancoso é o nosso primeiro ficcionista utilitarista e cibernético (de acordo com o grego, κυβερνητική, cibernética, é a arte de governar os homens), com um inusitado vezo de “observação psico-social”. Próximo da ambiência criada por Gil Vicente, dele se destaca pelo teor paidêutico e directivo. Mas debrucemo-nos, para terminar, sobre um dos seus contos e destaquemos nele algumas qualidades que o tornam inserível no âmbito da literatura para gente mais nova.
Como se sabe, o conto, pese a sua antiguidade e peso tradicional, só adquire configuração literária no século XIX. Até aí a fluidez entre o oral e o literário era indesmentível. Tal facto só abona Trancoso, tanto mais que ele supera influências e incorporações folclóricas por uma originalidade que não pode ser denegada. E assim poder-se-á dizer que o conto autoral português nasce com Gonçalo Fernandes Trancoso – na sua criação contista encontramos já as características do conto moderno, e falo do halo fantástico, da estrutura febril, nervosa e breve, e das descargas emocionais por si provocadas, num processo de concentração que confere ao texto uma matização semipoética.
O investigador francês Marc Soriano defende ser a literatura a juventude um tipo de comunicação entre um locutor ou um escritor adulto e um destinatário criança. Não parece que o espírito de Trancoso descurasse essa particularidade, como o corrobora, por exemplo, o já citado Agostinho de Campos. E se pensarmos na tentativa de definição do literatura infanto-juvenil por parte de Judith Hillman, vemos que ela, no que diz respeito ao conteúdo, sugere o perspectivismo infanto-juvenil, a incipiência caractereológica, a intriga simples com centramento na acção, o happy-end e a mistura do real com o fantástico; já no atinente à qualidade, e ainda segundo a mesma autora, deverá ela estar presente como factor preponderante do prazer do texto. A necessidade do preceito qualitativo já fora enunciado trinta anos antes por Sophia de Mello Breyner em entrevista ao Diário de Lisboa. Trancoso tem, neste sentido, uma evidente qualidade.
O conto em que vou pegar, o décimo, integra-se, de acordo com a proposta de Câmara Cascudo, nos chamados contos de exemplo, sofrendo ligeira nuance se se adoptar a classificação de Michelle Simonsen que prescreve para este tipo a designação de conto moral ou filosófico. Transcrevo o conto, para que conste:
CONTO X
Que nos mostra como os pobres com pouca coisa se alegram. E é um dito que
disse um homem a seus filhos.
Perto da cidade do Porto, onde chamam Paço de Sousa, havia um pobre homem que tinha seis crianças entre filhos e filhas, de que alguns eram de dezassete ou dezóito anos e dali para baixo. E tendo-os derredor de si, um serão, sobre ceia de boroa e castanhas, derredor do lume, muito contentes, olhou para eles e viu-os tais que o melhor arroupado, se tinha camisa, não tinha pelote e, se pelote, sem mangas; e se mangas, sem fralda, e todos descalços e sem barrete nem coifas. Assim que todos seis se cobriam com fato que, para bem, não bastava a um e esse muito velho e esfarrapado que quase não prestava. Vendo-os tais, disse à mulher:
-Ouvis! Lembre-vos amanhã (se Nosso Senhor quiser) que peçais à minha comadre Briolanja de Paiva uma quarta de linhaça emprestada. Semeá-la-emos e, com a ajuda de Deus, haveremos linho de que façamos, no Verão, caçotes para estes cachopos.
Os filhos, tanto que o ouviram, saltando no ar, com muito prazer, diziam uns aos outros, rindo: - "Ai, caçotes, mana; ai, caçotes”. Tanto riram e folgaram, estando ainda nus, que o pai disse:
-O dou ao demo a canalha que, como se sentem vestidos, não há quem possa com eles.
Espanta desde logo, neste conto susceptível de ser anexado ou conquistado por gente miúda, o carácter condensado, directo, próximo mesmo da noção do miniconto que um Sebastião Resende “teoriza” do seguinte modo:
... minipoema, minicrónica, mini-romance, poli-mini ou minitudo. nunca menos. abrangente e variável como as mudanças de nosso tempo, instrumento maleável, conciso, objetivo; sintético, cioso de sua funcionalidade, aqui-agora, lá-sempre, ubíquo, polivalente, verbivocovisual. com ele sentir e ver o mundo sem desperdícios e derramamentos. formalização das coisas com um mínimo de formas, um nada de fórmulas e um todo de formular, tecnificar. arte para um tempo de sustos, de síncopes, porém feita com suor + palavras + lágrimas, para sintetizar o humano, o não-humano e o que há de vir. close-up. underground. fotografia tirada com os olhos e o ser. miniformal, maxi-elaboração e vida. na época dos sintéticos e das sínteses. do microfilme. da pílula. dos comprimidos e das compressões. [4]
Tal modernidade é ainda detectável na lógica e na consistência do exemplar narrativo, que, a par disso, contém ainda postulados importantes como a clareza e a simplicidade gramaticais, a utilização de palavras concretas ou o carácter mostrativo, dignas qualidades de um texto infanto-juvenil. Acresce ainda que o conto de Trancoso é capaz de despertar valores para o embate social, é sugestivo de beleza estética (as repetições e o polissíndeto conferem-lhe mesmo aquela força patética própria dos textos poéticos de que tão exuberantemente fala Jean Cohen...), é indutor da realidade de forma subtil e é elemento de desenvolvimento da capacidade expressiva do leitor, seja no domínio lingüístico, seja na esfera cultural. Cite-se, por último, o inusitado final do conto de Fernandes Trancoso, que é um verdadeiro despiste do horizonte de expectativas criado. Afinal, o antegozo das roupas futuras é a clara sugestão do inesperado. Esta estranhização é uma porta para a dinamização da força imaginativa do leitor mais novo e para os seus actos de integração simbólica, assim se cumprindo a função socializadora da literatura.
Avanço mais. Toda a literatura estimável é tão-só literatura. Não me parece muito importante a divisão, que muitos ainda teimam em acentuar, entre literatura para crianças e literatura para adultos. A literatura existe perto da vontade de todos leitores sem idade. Os melhores textos serão sempre aqueles que, como os citados de Trancoso, possibilitem vários planos de leitura. Como o acentua Sophia de Mello Breyner desde a década de 60, escrever para crianças não é uma especialidade e a divisão divisada no espectro editorial radica no acto comercial e nunca no acto criativo.
Aproximemo-nos do calor das palavras, esperando, na radicalidade racionalista de Boileau, que, independentemente da temática literária, sempre o bom senso se combine com a rima. Enquanto tal acontece, esta súbita primavera teórico-pedagógica sugere-me, caros amigos, um rumor junto à voz de António Franco Alexandre que conjuga o sinal mudo com a vossa aceitação destas banalidades antigas como o mundo. Pode ser?
Bibliografia
a) de Gonçalo FERNANDES TRANCOSO
TRANCOSO, Gonçalo Fernandes, Contos & Histórias de Proveito & Exemplo, [1ª e 2ª partes], Lisboa: António Gonçalves, 1575. (Edição fac-similada [Único exemplar conhecido: Biblioteca Oliveira Lima, Catholic University of America, Washington, U.S.A.] com introdução de João Palma-Ferreira, Lisboa : Biblioteca Nacional, 1982).—, Contos & Histórias de Proveito & Exemplo, [1ª e 2ª partes], Lisboa: Marcos Borges, 1585 [Três exemplares conhecidos: Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa, Biblioteca Apostolica do Vaticano, Biblioteca Nacional de Paris].—, Contos & Histórias de Proveito & Exemplo, [1ª e 2ª partes], Lisboa: António Álvares, 1589 [Único exemplar conhecido: Biblioteca do Congresso dos E.U.A.]—, Primeira, segunda, e terceira parte dos Contos & Historias de Proveito & Exemplo, [Lisboa]: Simão Lopes, 1595 [Único exemplar conhecido: Biblioteca Pública de Évora].—, Regra Geral pera aprender a tirar pola mão as festas mudaveis que vem no anno, a qual ainda que he arte antiga esta per termos mui claros novamente escrita por Gonçalo Fernandez Tranquoso: & dirigida aho Illustrissimo & Reverendissimo Sñor Dom Jorge Dameida (sic) Arcebispo de Lisboa, [Lisboa]: em Casa de Francisco Correa, 1570. (Reproduzido em Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Vol. VII, 1925, p. 141-210).—, Histórias de Proveito e Exemplo, Antologia portuguesa organizada por Agostinho de Campos, Lisboa: Bertrand, 1921—, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (Texto integral conforme à edição de Lisboa de 1624), Prefácio, leitura de texto, glossário e notas por João Palma-Ferreira, Lisboa: INCM, 1974.—, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, Lisboa, 1988. Prefácio de Armando Moreno.—, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, Trancoso, Câmara Municipal de Trancoso, 1989. Introdução e Notas de Santos Costa.
b) sobre Gonçalo FERNANDES TRANCOSO
BERARDINELLI, Cleonice, «Um best-seller do século XVI», Estudos de Literatura Portuguesa, Lisboa: INCM, 1985. BRAGA, Teófilo, Contos Tradicionais do Povo Português, Lisboa, 2ª ed. ampliada, 1914-1915 (Nova edição, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, 2 vol.). DONATI, Cesarina, «Trancoso traduttore di Timoneda», Arquipélago, n° V, Revista da Universidade dos Açores, Série Ciências Humanas, Ponta Delgada, 1983, p. 65-94. FERREIRA, João PALMA, Novelistas e Contistas Portugueses do século XVI, Lisboa: INCM, 1982.—, Obscuros e marginados, Lisboa: INCM, 1980. FERRO, Manuel, “TRANCOSO (Gonçalo Fernandes)”, Biblos-5, Lisboa, Verbo, 2005, colunas 511-512. —, “Aspectos da recepção do Decameron nos Contos e Histórias de Trancoso”, Estudos Italianos em Portugal, 51-53, 1988-1990, pp. 179-206. FINNAZZI-AGRÒ, Ettore, A novelística portuguesa do século XVI, Lisboa, 1978. MENÉNDEZ y PELAYO, Marcelino, Orígenes de la novela, Madrid: CSIC, 1943.MIMOSO, Anabela, «Contos & Histórias de Proveito & Exemplo. Uma obra exemplar», Línguas e Literaturas, Revista da Faculdade de Letras do Porto, Vol. XV, 1998, p. 259-329. NOBRE, Cristina, Um texto instrutivo do século XVI de Gonçalo Fernandes Trancoso, Leiria: Magno Edições, 1999. PICCHIO, Luciana Stegagno Picchio, “Gonçalo Fernandes Trancoso, Histórias de Proveito e Exemplo”, Colóquio/Letras, 29, 1976, pp. 95-97. QUINT, Anne-Marie, «Scènes de la vie urbaine dans les Contos & Histórias de Proveito & Exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso», Le conte et la ville, Cahiers du CREPAL n° 5, Paris: PSN, 1998, p. 101-117.—, «François de Rosset traducteur de Trancoso», Hommage au Professeur Augustin Redondo, Paris: PSN, 2003. ROSI, Guiuseppe Carlo, “Il Boccaccio nelle letterature in portoghese”, Studi sul Boccaccio, vol. VIII, 1974, pp. 273-309. VASCONCELOS, José LEITE de, «Um Trancosano ilustre», Revista Lusitana. Arquivo de estudos filológicos e etnológicos relativos a Portugal, vol. XXIII, Lisboa, 1920, p. 233-245. VITERBO, SOUSA, «Materiais para o estudo da paremiografia portuguesa», Revista Lusitana, Vol. VII, Lisboa, 1902, p. 97-103.
3.2. SÉC. XVII: O CASO DO PADRE MANUEL BERNARDES
Denegando qualquer inferioridade do Seiscentismo face a outras centúrias da cultura portuguesa – e bastará citar nomes como os de D. Francisco Manuel de Mello, Francisco Rodrigues Lobo, Padre António Vieira ou António de Sousa de Macedo para convalidação desse tempo… - , lembramos aqui as certeiras palavras de António José Saraiva sobre o Padre Manuel Bernardes, defendendo nele, principalmente como artista da narrativa breve na Nova Floresta, “uma ingenuidade, um à-vontade dignos de inveja para quem faça literatura infantil.”[5]
E, de facto, basta pegar-se em Nova Floresta e no anteprimeiro apotegma para aí colhermos muitas das particularidades que conformam, de acordo com a investigação mais actualizada (por exemplo, de uma Teresa Colomer), a textologia infanto-juvenil. Ao pensarmos na tríade funcional enunciada pela professora catalã (acesso ao imaginário colectivo, aprendizagem de modelos narrativo-poéticos e socialização cultural[6]) depreendemos de imediato que tais características ressaltam da “floresta” bernardiana.
Fruto de relação lateral, Manuel Bernardes, talvez filho de pai judeu, veio a professar como oratoriano, em 1684, legando à posteridade um conjunto formidável de “obras de edificação moral e ascética” (Saraiva, 531), aí se confirmando os créditos de um dos maiores cultores da língua portuguesa. Eram ainda evidentes, antes de tudo, a qualidade literária, bem como a espantosa erudição teológica do escritor. Sem acreditar no mundo dos homens, profundamente corrompido, nem tão pouco esbatendo uma latente misoginia (mesmo que familiar ou religiosa, a mulher convoca a disforia), Bernardes conduz a sua prosa mágica para longe dos abismos, convocando a intercessão divina e os milagres no mundo, a fim de salvar das penas eternas algumas das muitas almas condenadas.
Destaca António José Saraiva (p. 532) o mérito de Bernardes como artista da narrativa breve, nomeadamente, como já dissemos, nos textos da Nova Floresta, onde o religioso procura atingir o grande público através da simplicidade linguística e dos comentários moralistas. O tom edificante e de distracção do espírito, a um tempo, é, sem dúvida, a parte maior desta criação de Bernardes, como se verá, em seguida.
O apotegma anteprimeiro da “floresta” bernardiana é um caso excepcional de virtualidades infanto-juvenis: é a abertura indefinida e transtemporal (“Certo Poeta”); é a possibilidade humorística aberta pela expressão “comedia de tramoyas”; é a adjectivação rutilante e a figuração do Sol (“figura do Sol muy galharda, & resplandecente, com roupas recamadas de joyas de diamantes, & diadema amplissimo de dourados rayos”); são as imagens mitológicas (“doze figuras em forma de Ninfas”); são os paralelismos e os pronunciados contrastes (“humas eraõ de mayor estatura, outras de mediana, & outras mais pequenas”); é, por fim, e sem exaustão, a paidêutica que obriga a concluir e a reconhecer a lição, que aparece em jeito de “reflexão”, em “reacção” à narrativa breve anterior.
Os exempla colhidos em Manuel Bernardes ressumam de maravilhoso, aí se apagando as fronteiras entre o natural e o sobrenatural. É também este particular que faz do oratoriano um lugar central na formatação do cânone da literatura infanto-juvenil. Experimente-se, pois, o seguinte exemplo:
Bibliografia
a) de Padre Manuel BERNARDES
BERNARDES, Padre Manuel, Exercícios Espirituais e Meditações da Vida Purgativa, 2 vols., Lisboa, Miguel Deslandes, 1686 (1706-1707, 1731, 1758, 1784-1785). —, Luz e Calor, 1696 (1724, 1758, 1871). —, Pão Partido em Pequeninos , 1ª parte, Lisboa, António Pedroso Galrão, 1696 (1707, 1726, 1757, 1762, 1923). —, Armas de Castidade (1699)—, Meditações sobre os principais mistérios da Virgem, Lisboa, Bernardo da Costa Carvalho, 1706 (1768). —, Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas, t. I, Lisboa, Valentim da Costa Deslandes, 1706 (1706-1728, 1759-1760, 1909-1911). —, Pão Partido em Pequeninos , 2ª parte, Lisboa, Valentim da Costa Deslandes, 1708. —, Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas, t. II, Lisboa, Valentim da Costa Deslandes, 1708. —, Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas, t. III, Lisboa, Oficina Deslandesiana, 1711. —, Sermões e Práticas, 1ª parte, Lisboa, Oficina Deslandesiana, 1711. —, Direcção para ter os Nove Dias de Exercícios, Lisboa, Oficina de Música, 1725 (1757). —, Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas, t. IV, Lisboa, José António da Silva, 1726. —, Os Últimos Fins do Homem, Lisboa, José António da Silva, 1728 (1761). —, Nova Floresta ou Silva de Vários Apotegmas, t. V, Lisboa, José António da Silva, 1728. —, Estímulo Prático para seguir o Bem e fugir o Mal, Lisboa, António Pedroso Galrão, 1730 (1762). —, Sermões e Práticas, 2ª parte, Lisboa, Congregação do Oratório, 1733. —, Vários Tratados, 2 tomos, 1737 (1762). —, Paraíso de Contemplativos, Lisboa, Oficina da Congregação do Oratório, 1739. —, Compêndio doutrinal, 1744. —, Estímulo do Amor Divino, 1758. —, Tratado breve da oração mental, 1775. —, Meditações sobre os quatro novíssimos do homem, 1798. —, Dois discursos do grande clássico português P. Manuel Bernardes, 1907.
b) sobre Padre Manuel BERNARDES
ALMEIDA, Vieira de, “Prefácio” à ed. fac-similada da 1ª ed. de Os Últimos Fins do Homem, Lisboa, Ed. da “Revista de Portugal”, 1946. CONSTANTINO, Maria Clara Rezende, A Espiritualidade Germânica no Pe. Manuel Bernardes, S. Paulo, 1963. CORREIA, João David Pinto, “Luz e Calor” do Pe. Manuel Bernardes – Estrutura e Discurso, Coimbra, 1978. DIAS, J. S. da Silva, “Nota sobre as fontes do Pe. Manuel Bernardes”, in A Congregação do Oratório de Lisboa – Regulamentos Primitivos, Coimbra, 1966. LIMA, Ebion de, O Pe. Manuel Bernardes – Sua Vida, Obra e Doutrina Espiritual, Lisboa, 1969. MARTINS, A. Coimbra, “Manuel Bernardes e o quietismo”, in Colóquio, nº 13, Lisboa, 1961. —, “Introdução” a Leituras Piedosas e Prodigiosas, Lisboa, s.d. (1962). MIRANDA, Nicanor, O Vocabulário do Pe. Manuel Bernardes, São Paulo, 1962. PIRES, M. Lucília Gonçalves, Para uma leitura intertextual de “Exercícios Espirituais” do Pe. Manuel Bernardes, Lisboa, 1980. —, “BERNARDES (Manuel)”, in Biblos – Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa-1, Lisboa, Verbo, 1995, colunas 652-656. —, “Os últimos fins do homem na obra do Padre Manuel Bernardes”, in Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas (“Os” últimos fins” na cultura ibérica [XV-XVIII]), Porto, 1997, pp. 173-186. RICARD, Robert, Études sur l´histoire morale et religieuse du Portugal, Paris, 1970. SILVA, Isidro Ribeiro da, “Introdução” a Manuel Bernardes – Nova Floresta, Lisboa, 1965.
[1] Para não sobrecarregar o texto com notas e citações, opto por não identificar os excertos.
[2] Apud Paul de Man, op. cit. , p. 37.
[3] Cf. prólogo-dedicatória à avó de D. Sebastião citado por João Palma-Ferreira, no importante prefácio a Contos e Histórias de Proveito e Exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974, p. XVI).
[4] Sebastião Resende, “Apresentação”, in Cadernos 20 , Minas Gerais, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Guaxupé, 1971.
[5] António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 16ª edição, Porto, Porto Editora, s.d, p. 532.
[6] Cf. Teresa Colomer, introducción a la literatura infantil y juvenil, Madrid, Sintesis Educación, 1999, pp. 15-62.
neste chão espero
e de mim pouco mais do que um manto resta
por ti esperando nas areias no fogo áspero
das veias alimentadas pelo vento pelo verde
do rio fundo refluindo para o abismo raiz
germinando nos intestinos no mesmo chão.
2007-01-27
"poema a poema": a poesia de José Valle de Figueiredo
“O seu a seu poema”(2006) de José Valle de Figueiredo compreende grande parte da obra literária do Autor publicada entre 1959 e 2002. Impresso o conjunto de poemas em finais do ano que há pouco findou, só no início de 2007 é que o título começou a ser visto pelas livrarias. Trata-se, para mim, de um dos grandes livros de 2006, estando por isso de parabéns a Imprensa Nacional-Casa da Moeda por esta oportuna publicação.
Prefaciada competentemente por José Carlos Seabra Pereira, a colectânea poética permite, finalmente, um mais fácil acesso a obras do poeta tondelense há muito esgotadas ou pouco divulgadas, possibilitando ainda uma visita quase completa a criação dispersa por jornais, revistas e opúsculos.
Mais do que recomendável, encontramos em Valle de Figueiredo um signo oriental que não cessa de se fechar, registando-se, nesse fechamento, uma unidade macrotextual admirável e produtiva. Mas não só. Espantar-se-á o leitor, ferido pelo desconhecimento, por tão virtuosa força de estranhização retórico-estilística, a ponto de se poder falar de um dos mais fecundos idiolectos poéticos da literatura portuguesa.
Oracular e próxima do “mistério redentivo cristão” (Seabra Pereira), esta poesia é também saborosamente nostálgica de um tempo outro, merecendo menção interpretativa a presença de uma “mágua”, que é um sofrimento marítimo e aquático que urge reparar.
Escutadora da palavra como uma “sacralidade arquetípica” (Fernando Martinho), a poética de José Valle faz-se do corpo físico dos semas e dos signos mais agudos.
Ultimando-se a escritura poética em rito textual de força sófica, destaco do vasto conjunto aquela bela “Proposição” de “O Afinador de Versos” (1998), que transcrevo:
Exígua luz que alumia
ao sol do poema
que se me escreve na parede fria.
Nada me resta:
só a luz de cada dia
visita a minha morte
e mais outro dia.
E sob o mesmo signo me retiro, para ler o fulgurante “Requiem por Jan Palach”. A não perder, entre as páginas 145 e 146.
2007-01-26
Flannery O' Connor
26 DE JANEIRO 2007 6ª feira, ÀS 21H30 Palácio da Independência, Rossio, Lisboa (ao Lado do Teatro D. Maria)
Flannery O’ Connor
por Maria do Rosário Lupi Bello
«O escritor nunca deve ter vergonha de
olhar. Não há nada que não requeira a
sua atenção.»
Flannery O’Connor
Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano
2007-01-25
hidrografia
esfacelando o rosto a densa pele
e sem margem o limo e o vento
dispersam-nas no peito límpido
como alicerces dentro da chuva.
os diques da noite rebentam-te
as sílabas no meio dos dentes
e os incertos fonemas correm
voluntários como as ânforas
partidas nas escondidas fontes.
dos lábios o dique a água pende.
2007-01-24
2007-01-23
natal
e nem os dedos dentro da cinza
auscultam os passos da morte
presos aos umbrais das nuvens.
a tontura cessa e o gelo cristalino
irrompe pela frincha dos pulsos
inundando o chão as sombras.
no ondulado dos lábios queimados
gritos lancinantes dormem ainda.
longe o albanil regressa do mar
e pousa na anca no ventre moído.
entre um corpo e outro nasces então.
2007-01-22
Curso Livre de Introdução ao Latim
Curso Livre de Introdução ao Latim
Docente: Mestre Pedro Falcão
Pretende-se com este curso dotar os seus participantes de noções elementares acerca da língua latina, tendo como base textos do vasto repertório da música sacra, que se estende ao longo de toda a História da Música. Procura-se igualmente dar a conhecer em audição comentada um pouco deste espólio imprescindível para o conhecimento da origem e evolução da música ocidental.
Para aprofundar estas questões o CCLPH propõe um curso livre de língua latina na música sacra em 10 sessões.
Horário: das 20h00 às 22h00
Datas das Sessões: 19/2, 26/2, 5/3, 12/3, 19/3, 26/3, 2/4, 9/4, 16/4, 23/4 de 2007
Local: Palácio da Independência, L. S. Domingos, 11 ao Rossio (entre o Teatro D. Maria e a Igreja de São Domingos).
Datas de fim de inscrição: terminam a 17 de Fevereiro de 2007 ou atingindo o número limite de participantes.
As inscrições são aceites por ordem de chegada até um limite máximo de 40 participantes. Podem ser feitas para o e-mail do CCLPH, por fax ou por carta. Até à recepção do pagamento, considera-se uma pré-inscrição. Logo que o número total de participantes inscritos seja atingido, as pré-inscrições ficam sem efeito. Os sócios com quotas em atraso não auferem do preço de sócio, a menos que regularizem a situação até ao acto de inscrição. Os cheques devem ser enviados para CCLPH, Rua Cascais 17-1º Esq 1300-120 Lisboa. O pagamento também pode ser feito por transferência bancária para o NIB 0033 0000 45217510010 05.
Taxa de Inscrição: (inclui fotocópias distribuídas durante o curso e certificado de frequência).
Os participantes que se queiram fazer sócios do CCLPH auferem da oferta da jóia,
pagando apenas a quota anual.
Contactos: Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano (T. 213647473 ou 917250725 e Fax. 213647473) ou e-mail: c.cultural.lx.ph@mail.telepac.pt
Ficha de Inscrição
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2007-01-21
"Letras Aquilinianas": em prol de Mestre Aquilino
2007-01-20
ardo
e eu naufrago refém da escuridão das veias
não encontrando o ouro das portas nem alçapão.
eclipso-me noite dentro fritilários dados cobrindo
a ardente fogueira homérica e as miragens ígneas.
olho a rua emparedado neste cárcere de chamas
e dos ombros só um véu de sombra sobre os olhos.
2007-01-19
2007-01-18
epigrafia
o riso opalino branco
o rosto breve punho
em flor nos lábios.
e o dia acontece
como se a memória
não estivesse aqui.
nos dedos o deus sentado
morre na aura das mãos
renascendo pétreo
no tempo epigráfico.
criação
cubra a parte íntima do breve fogo
e refresque a explosão das espadas
fundas bem dentro das vísceras.
o olhar então repousará no fim do cansaço
escavando com arpões a pele rugosa.
e nas mãos há agora um pequeno deus.
2007-01-17
tresleitura
jaz um botão de rosa abandonado.
no vidro um vulto esquivo foge
esperando sempre o voo breve
e a silhueta do sal o tempo azul.
2007-01-16
exercício límpido
e um corvo mudo olhando as roupas
libertadas e os corpos sangrando na areia.
súbita uma folha que o vento trouxe morre
no mar no sal que diz a tua vida como no
texto de wilde - feixe húmido de sentido.
em arco a groselha e o dia brilham em ti.
encostada à amurada ao aroma do café
narro-te a minha vida e tu compreendes.
2007-01-14
pequeno amor
íntimo o reverso corpo quente
e um lago inundando a língua
o marfim branco dos ossos
correndo depois venalmente
contra o sangue explodindo
explodindo sempre, meu amor.
2007-01-13
2007-01-10
Por esta porta e nesta casa: o escritor António de Albuquerque
0. Codiciosamente, Monique Plaza defende que o leitor assegura os êxitos ou precipita as derrotas. Assim é. No lugar geodésico da luz, dirá pois o leitor do interesse desta reanimação. Colateralmente, o lugar que António de Albuquerque aqui assume é o de quem entra por esta porta, nesta casa sua e, pasme-se!, nossa. Escutam-se ainda os ecos do banquete aqui servido no palacete do Arco, em 25 de Março de 1866, após o seu baptismo. “Não ficou à esquerda dos que são oferecidos a príncipes”, assim reza um periódico viseense da época.
1. O romance O Marquês da Bacalhoa, finalizado em 6 de Setembro de 1907 e publicado no início de 1908, antecipa o regicídio. Havia, de facto, um pressentimento no ar: quando em Junho de 1903 foi assassinada a família real sérvia, os jornais portugueses rejubilaram de estranho êxtase. Ficou arquifamoso mesmo a exclamação de José Alpoim: «Foi uma limpeza!». E, depois, para que a tragédia se cumprisse, houve ainda o autoritarismo franquista que evoluiu para ditadura, os adiantamentos à Casa Real, o facciosismo ideológico e aquela fatídica entrevista de Sua Majestade, o Senhor D. Carlos, a Galtier, do jornal parisiense Le Temps.
Em Janeiro de 1908, não obstante os 800 reis que faziam de 0 Marquês da Bacalhoa um livro caro, haviam-se vendido por volta de 6000 exemplares. A este respeito, Raul Brandão critica a inabilidade do poder vigente face à necessidade de impedir a proliferação do livro, defendendo que a proibição do romance só lhe dourava a fama. Ouçamos, pois, as palavras brandonianas, citando, como consta, as palavras de urn livreiro: «- Fizeram mal em proibir o Marquês da Bacalhoa. Já há quem tenha dado por um exemplar três mil reis, e o preço corrente é agora de dez a quinze tostões... Se o queriam inutilizar apreendessem-no, tanto mais que toda a gente sabia onde era impresso.». Rocha Martins diz que o "editor do livro injurioso" foi o republicano e maçon Gomes de Carvalho e adianta que a «obra andava em alta de prego, às escondidas, apenas pela guloseima da protérvia.» Na propalada e requestada obra contam-se "as tropelias de um ministro «Nunes» durante o reinado do «marquês da Bacalhoa», não sendo muito difícil descortinar a que personagens reais correspondiam os nomes postos no livro pelo autor, António de Albuquerque", diz Mattoso. Tal exercício da referencialidade efectuou-o Vasco Pulido Valente no início de 1998, ao referir que as personagens são " o marquês (D. Carlos, na realidade, proprietário da Quinta da Bacalhoa), a marquesa (D. Amélia); o conselheiro João Nunes dos Santos (João Franco); D. Álvaro de Luna (Mouzinho de Albuquerque); Maria de Silves (a condessa de Sabugosa); e a condessa da Freixosa (a condessa de Figueiró, a famigerada Pepa Sandoval, amiga da rainha)." A par desse êxito irrefragável do referencial político, concorria a atracção do tabu e da transgressão no âmbito da esfera privada e dos costumes. Efectivamente, como muito bem sustenta Cecília Barreira, em tal romance clandestino e de grande voga, que «em Lisboa se vendia a sorrelfa» e «onde se abocanhava a dignidade da rainha» (ver Rego), alude-se « aos amores sáficos da rainha D. Amélia, por quem Mouzinho de Albuquerque nutriu uma paixão, e cujos amores contrariados, se teriam traduzido pelo suicídio». Raul Brandão, nas suas Memórias , em apreciações datadas de Janeiro de 1908, deixa-nos um relato muito vivo do acontecimento, que nos permite avaliar devidamente o impacte da obra, bem como pormenores sobre o perfil do seu Autor: «Grande escândalo com o livro do Albuquerque - 0 Marquês da Bacalhoa . Este Albuquerque, conhecido pelo Lêndea, e o último descendente, pelo pai, do grande Afonso de Albuquerque, e, pela mãe, do grave, do douto João de Barros. Ainda aqui há anos, quando o rei visitou uma terra de província e se hospedou na casa dele, saíram das lojas caixotes de loiça da Índia, que nunca tinham sido abertos. Ele tem tido uma vida de aventuras; bateu-se em duelo em Madrid, caçou no Cabo com lordes, tocou guitarra em Trouville e teve uma loja de instalações eléctricas na Itália. Agora é jornalista, escritor, poeta, e publica este livro de escândalos, em que a rainha, senhora na mais alta acepção da palavra, é posta de rasto... Mas faça-se-lhe justiça: tudo aquilo - e pior - anda por aí de boca em boca há muito tempo. E não vem debaixo - vem de cima...».
Sendo um roman à clef ou um livre à clef, Carvalho Homem prefere apodar a obra de Albuquerque de romance-panfleto e sobre o Autor, António de Albuquerque de Meneses e Lencastre, adianta tratar-se de «um plumitivo de baixo nível cultural e moral». Similar posição tomam Júlio de Sousa e Costa e Rocha Martins. Longe destas verrinosas tiradas, Maria Filomena Mónica, em postura mais objectiva, defende que O Marquês da Bacalhoa «constitui um excelente resumo da mitologia que rodeava os costumes do paço.»
O escândalo, a falácia e o implosivo marcaram para sempre a imagem de António de Albuquerque e para tal não foi despicienda a publicação desse estigmatizante romance O Marquês da Bacalhoa.
2. Mas, afinal, quem foi e o que fez António de Albuquerque, para que valha a pena conhecê-lo?
D. António de Albuquerque do Alardo de Amaral Cardoso e Barba de Meneses e Lencastre ou D. Antonio de Albuquerque do Amaral Cardoso de Vilhegas e Guzman Barba Alardo de Lencastre e Barros de Menezes Pina e Lemos, fidalguíssimo, nasceu em Viseu, na casa do Arco, em 11 de Marco de 1866. Era filho de D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso e de D. Emília Augusta Barba de Lencastre ou D. Emília Augusta Barba Alardo de Lencastre Barros (descendente dos Viscondes do Amparo, de Leiria), tendo casado pela primeira vez com a senhora D. Luiza Mousinho de Albuquerque ou D. Maria Luiza de Pinho, de quern teve dois filhos, Rodrigo e Maria de Lurdes, ambos com geração.
Os primeiros tempos da sua vida passou-os Miquéque, assim seria conhecido em Viseu, sem que que nada de invulgar se passasse. A juventude esgotou-se-lhe viajando e absorveu nessa fase uma educacao e uma instrução tipicamente parisienses, tendo vivido diversos anos em Paris. A influência da literatura francesa e do republicanismo facilmente o penetraram. Em Portugal, a sua maneira mundana e convivial, nomeadamente no contacto com as mulheres, era censurada e incompreen-dida. Sedento de brilho, que o seu valor parecia merecer, deixou-se instigar pela moda republicana e pelo estrépito do papel principal. Por trás manobrariam, sem que António de Albuquerque muito bem entendesse, aqueles que o queriam assim, eco de ideias não amadurecidas. Parecia gostar de ser adulado e o seu reconhecido talento era explorado. Era conhecido como o Lêndea, parece que pela cor da tez, pelo cabelo de pendor citrónico e pelo apegamento às damas.
Sobre o seu carácter de homem, Rocha Martins adianta um conjunto de designativos ("degenerado em que concorriam singulares predicados e taras", "mostrava-se valente, mas quási sempre cobarde", "tinha certos rasgos, ao escrever, mas não ia além de meia dúzia de páginas toleráveis") que Cezar dos Santos, o "biógrafo" de António de Albuquerque, confuta veementemente.
Segundo testemunhos de vários autores, era principalmente no Café do Gelo, no Rossio da capital, que o escritor viseense tinha a sua banca contestatária e de tertúlia. Em Lisboa, teve casa em Campolide, na rua Leandro Braga; teve ainda o sintrense chalé Guiomar, na Estefânia.
A obra de António de Albuquerque não é abundante. Dentro do modo lírico, publicou Arco-Íris e o poemeto Maria Teles; na ficção, sempre em romance, Escândalo! (1904), 0 Marquês da Bacalhoa (1908), A Execução do Rei Carlos (1909) e O Solar das Fontainhas (1910); prefaciou o livro de Gomes de Carvalho Morte Civil (1914); e, por último, legou o volume de investigação histórica Sidónio na Lenda (1922).
Sem vulgar elogio, acho que António de Albuquerque, até por ser um escritor nascido em Viseu e um daqueles que, no seu tempo, polemizou como poucos, merece uma visita atenta e interessada.
Se a obra lírica nada traz de particular, fundando-se numa incaracterística toada debutante, a tradução de Les Civilisés (1906) de Claude Farrère (1876-1957) trouxe-lhe a aprendizagem para a fase romanesca que se iniciara com Escândalo!. Tal romance, com o subtítulo Cenas da Vida de Província, ancora-se na tradição balzaquia-na e queirosiana oitocentista. Júlio de Sousa e Costa integra este romance no propósito demolidor de António de Albuquerque, que não se inibe de atacar uma sua parente muito chegada, o que era "profundamente lamentável!”.
Segue-se-lhe o polémico O Marquês da Bacalhoa (1908), título insinuado, ao que parece, por Gualdino Gomes, e que substituiu o inicialmente previsto Enseada Azul. Abandonando a discussão a respeito da viabilidade desta tipologia de romance, resulta evidente estarmos perante um roman a clef , com ligações placentárias ao referencial, e, simultaneamente, diante de un roman à thèse. Saído sob chancela da Imprimerie Liberté de Bruxelas, que a tal obrigava o gravoso da matéria, defende Rocha Martins que o "editor do livro injurioso" foi Gomes de Carvalho.
Panfletário e herdeiro do intervencionismo neo-romântico de proveniência natu-ralista, enformado no mecanicismo e no jacobinismo, 0 Marquês da Bacalhoa não oferece relevo técnico-compositivo ou estilístico, dele ressaltando um iniludível teor doutrinário e uma coragem indisfarçável. Afinal, o valor desta obra assenta no seu carácter heteróclito e polemizante, características que o fazem importante paradocumento epocal.
Na mesma linha referencial, sai, em 1909, A Execução do Rei Carlos, obra que prima por uma força contestatária multímoda e arrevesada, contra as monarquias, o catolicismo, a família, o jornalismo luso, a política portuguesa e, como se colhe no prefácio e na epígrafe bakuniniana, contra o patriotismo, bem como pela difusão de exotismo de sabor romântico e de um erotismo romanesco de invulgar recorrência. A par disso, exalça-se com perenidade mitificante os regicidas, nomeadamente Buiça e o propagandismo social.
No ano seguinte, em 1910, com dedicatória a Teófilo Braga, publica António de Albuquerque o romance O Solar das Fontainhas, com o subtítulo Cenas do Porto, o que nos permite intuir um regresso a um criticismo social semelhante ao de Escândalo , com a gravitação de todos os alvos assinalados e com a presença de artistas militantes imbuídos de acrasia e de sede de justiça. Interessante se torna sublinhar que Gusmão, o alter-ego do escritor, declara ser autor de romances injustiçados...
Como se disse, António de Albuquerque prefaciou Morte Civil (1914) de Gomes de Carvalho, o que desvela uma adesão ideológico-sentimental.
No ano de 1922, vem a lume Sidónio na Lenda (Estudo critico), "um interessante estudo sobre a trajectória de Sidónio”, segundo João Medina, que inclui ainda um texto de Bourbon e Meneses sobre José Júlio da Costa.
Era o tempo do fim. Pelas quatro horas da manha do dia 2 de Julho de 1923, na sua casa de Sintra, António de Albuquerque, "penitenciado e ungido", depois de uma vida cheia, entregou-se a Deus num abraço ostensivo.
3. Fundindo em si influências heteróclitas, António de Albuquerque e a sua obra transportam tipologias naturalistas, decadentistas e neo-românticas. E se a técnica artística nem sempre é a mais iluminada, o carácter paradocumental dos seus livros torna-os urgentes.
Tendo privado com Gomes Leal, Metzner, Fialho de Almeida, Eugénio de Castro, Rocha Martins, Abel Botelho, D. João da Câmara, Marques de Soveral, Anatole France, Paul Brulat, Rodrigo Soriano, Carmen de Burgos, Blasco Ibañez e muitos outros, o escritor viseense foi vítima da sua alma vibrante de poeta e do seu génio poético. Arrebata-do republicano, implantado o regime que defendera e que, de certa forma, propiciara, vê-se perseguido e marginalizado pelos seus pares que passa a abominar. Pleno de remorsos pelo mal que o seu ser vibrátil semeara, recusa as doutrinações em que se enformara e deseja ardentemente encontrar-se consigo e com os outros, num abraço retemperador.
António de Albuquerque, nobre revolucionário arrependido, cosmopolita e viajado (viveu em África, em várias cidades da Europa e no Brasil), com romances vertidos em castelhano e em francês, convalida na sua obra perfunctória uma tradição sémico-formal que se esvazia e replasma no referencial e no dissídio vivencial que, em fase culminar, se torna excruciante e apelativo. De facto, qual Penélope desenganada que sabe que Ulisses não aportara a Ìtaca, num alor lírico e espiritual desrealizante, o escritor viseense, nesse tempo de verdade, já quase morte, em atitude fungível e requintada, catoliciza-se, lamenta as aduções regicidas ("-Oh! El-rei! Nunca lhe entendi a grandiosidade da sua alma e nunca lha entendi porque El-rei era mais artista do que eu. Hoje!", terá dito) e procura o perdão de S.M., a Senhora D. Amélia, através de carta escrita no dia 14 de Maio de 1923 e nesse mesmo dia reconhecida no notário lisboeta A.G. Videira, vindo-o a obter. Tal missiva, reproduzida em fac-símile na obra de Cezar dos Santos, tem ainda a curiosidade de desvelar que, por baixo da assinatura, António de Albuquerque aduz Visconde do Amparo, assumindo assim uma autoadmonição indiciadora de que vivera como uma fictio personae.
António de Albuquerque reconheceu os pretéritos e exautorados actos. Sempre só, depreciado e solitário, percorreu caminho penoso e difícil, como se a catarse fosse a via do arrependimento.
[Publicado no último jornal viaesen]
2007-01-09
caçada
romper o linho a pele polida e gasta
e completamente nus entrar então
nas carótidas dentro da aorta fundo.
breve muito breve estaco olho
o silêncio espera e a palavra desfibra
a pedra fria o raro vocábulo suando.
expio agora o tempo seco a espera.
2007-01-08
"Cântico Negro"
José Régio |
Cântico Negro
Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam , mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
[poema enviado por JACINTO FIGUEIREDO]
uma história de amizade
Depois, veio a separação e a velha fronteira do liceu “contra” a universidade. E nem por isso a transmutação, a tensão separativa ou a sobranceria académica. Apenas um caminho fazendo-se entre o trajecto contra-estatuário, dilucidando Pessoa e as máscaras escarnecendo no espúrio academismo.
Um dia o poeta falou de barca d’ alva e a Viseu voltou , regressando à condição beirã, à velha pele. Crescendo na boca, também aquele vinho sabendo a urze, antes das Laceiras e do rito fonsequiano, lembras?
O exercício intelectual veio sendo coonestado pelos melhores nomes, na ciência fazendo-se em central energética: quem assim na forma breve, nas derivas significantes e nas pedras angulares da cultura, mesmo que marginadas ou mal conhecidas?
Um dia os dias felizes serão assim, directos, dádivas sem fronteiras, libertando-se. E mais não digo sobre esta “lâmpada de arco” que não acaba de nos iluminar.
2007-01-07
Reposições-1: "Plátano"
Índice
03 Apresentação
Homenagem
07 Alexandre de Carvalho Costa - A dois anos do Centenário do seu nascimento
Mário Freire
Ensaio
21 A Cidade do Escrevível como Espaço de Evasão -
Carlos Manuel Serra
Estudos
31 A Telepizza e a Sociedade de Informação
Filipa Romãozinho Costa
35 O Órgão da Igreja Matriz de Nisa - Notável peça de valor artístico e histórico
João Francisco Lopes
39 Coisas que a gente sente - diferentes modos de vida
Joaquim Mourato Fernandes
41 Um sonho nunca realizado
Luís Filipe Meira
43 Nos 80 anos do 1.º 'Sport Club Estrela - Grupo Desportivo Portalegrense'
Mário Casa Nova Martins
Memória
61 PORTALEGRE JAZZFEST - Um Festival com Memória
Luís Pargana
73 Fornecimento de lanifícios para fardamento do exército
Larcher & Cunhados
Escritas
83 Fernanda de Castro
Mário Casa
91 O Homem que era um “Santo”
Martim de Gouveia e Sousa
Arte
95 Poesias
Fernando Salgueiro de Sousa
101 Sempre…
Manuel Velez Tavares
102 A ira do deus panteísta
Rui Real
Preferência
Música
103 Jacinta – ‘Day Dream’
Yann Tiersen – ‘Les Retrouvailles’
Luís Filipe Meira
Livros
107 de, António Martinó
109 de, Fernando Carita
111 de, Isilda Garraio
Narrativa
113 Metade de Mim
Fernando Salgueiro de Sousa
2007-01-05
2007-01-04
"Cabaret Molotov" e a livraria Poetria
Em caso de interesse agradecemos nos contactem por esta via ou pelo telefone 222000436 a fim de efectuarmos a respectiva reserva.
ESPECTÁCULO A NÃO PERDER!
POETRIA
Nuno Rebocho: mais agradecimentos & retribuições
O JEITO DA ESTÓRIA
a água molda o leito do tempo