0. Codiciosamente, Monique Plaza defende que o leitor assegura os êxitos ou precipita as derrotas. Assim é. No lugar geodésico da luz, dirá pois o leitor do interesse desta reanimação. Colateralmente, o lugar que António de Albuquerque aqui assume é o de quem entra por esta porta, nesta casa sua e, pasme-se!, nossa. Escutam-se ainda os ecos do banquete aqui servido no palacete do Arco, em 25 de Março de 1866, após o seu baptismo. “Não ficou à esquerda dos que são oferecidos a príncipes”, assim reza um periódico viseense da época.
1. O romance O Marquês da Bacalhoa, finalizado em 6 de Setembro de 1907 e publicado no início de 1908, antecipa o regicídio. Havia, de facto, um pressentimento no ar: quando em Junho de 1903 foi assassinada a família real sérvia, os jornais portugueses rejubilaram de estranho êxtase. Ficou arquifamoso mesmo a exclamação de José Alpoim: «Foi uma limpeza!». E, depois, para que a tragédia se cumprisse, houve ainda o autoritarismo franquista que evoluiu para ditadura, os adiantamentos à Casa Real, o facciosismo ideológico e aquela fatídica entrevista de Sua Majestade, o Senhor D. Carlos, a Galtier, do jornal parisiense Le Temps.
Em Janeiro de 1908, não obstante os 800 reis que faziam de 0 Marquês da Bacalhoa um livro caro, haviam-se vendido por volta de 6000 exemplares. A este respeito, Raul Brandão critica a inabilidade do poder vigente face à necessidade de impedir a proliferação do livro, defendendo que a proibição do romance só lhe dourava a fama. Ouçamos, pois, as palavras brandonianas, citando, como consta, as palavras de urn livreiro: «- Fizeram mal em proibir o Marquês da Bacalhoa. Já há quem tenha dado por um exemplar três mil reis, e o preço corrente é agora de dez a quinze tostões... Se o queriam inutilizar apreendessem-no, tanto mais que toda a gente sabia onde era impresso.». Rocha Martins diz que o "editor do livro injurioso" foi o republicano e maçon Gomes de Carvalho e adianta que a «obra andava em alta de prego, às escondidas, apenas pela guloseima da protérvia.» Na propalada e requestada obra contam-se "as tropelias de um ministro «Nunes» durante o reinado do «marquês da Bacalhoa», não sendo muito difícil descortinar a que personagens reais correspondiam os nomes postos no livro pelo autor, António de Albuquerque", diz Mattoso. Tal exercício da referencialidade efectuou-o Vasco Pulido Valente no início de 1998, ao referir que as personagens são " o marquês (D. Carlos, na realidade, proprietário da Quinta da Bacalhoa), a marquesa (D. Amélia); o conselheiro João Nunes dos Santos (João Franco); D. Álvaro de Luna (Mouzinho de Albuquerque); Maria de Silves (a condessa de Sabugosa); e a condessa da Freixosa (a condessa de Figueiró, a famigerada Pepa Sandoval, amiga da rainha)." A par desse êxito irrefragável do referencial político, concorria a atracção do tabu e da transgressão no âmbito da esfera privada e dos costumes. Efectivamente, como muito bem sustenta Cecília Barreira, em tal romance clandestino e de grande voga, que «em Lisboa se vendia a sorrelfa» e «onde se abocanhava a dignidade da rainha» (ver Rego), alude-se « aos amores sáficos da rainha D. Amélia, por quem Mouzinho de Albuquerque nutriu uma paixão, e cujos amores contrariados, se teriam traduzido pelo suicídio». Raul Brandão, nas suas Memórias , em apreciações datadas de Janeiro de 1908, deixa-nos um relato muito vivo do acontecimento, que nos permite avaliar devidamente o impacte da obra, bem como pormenores sobre o perfil do seu Autor: «Grande escândalo com o livro do Albuquerque - 0 Marquês da Bacalhoa . Este Albuquerque, conhecido pelo Lêndea, e o último descendente, pelo pai, do grande Afonso de Albuquerque, e, pela mãe, do grave, do douto João de Barros. Ainda aqui há anos, quando o rei visitou uma terra de província e se hospedou na casa dele, saíram das lojas caixotes de loiça da Índia, que nunca tinham sido abertos. Ele tem tido uma vida de aventuras; bateu-se em duelo em Madrid, caçou no Cabo com lordes, tocou guitarra em Trouville e teve uma loja de instalações eléctricas na Itália. Agora é jornalista, escritor, poeta, e publica este livro de escândalos, em que a rainha, senhora na mais alta acepção da palavra, é posta de rasto... Mas faça-se-lhe justiça: tudo aquilo - e pior - anda por aí de boca em boca há muito tempo. E não vem debaixo - vem de cima...».
Sendo um roman à clef ou um livre à clef, Carvalho Homem prefere apodar a obra de Albuquerque de romance-panfleto e sobre o Autor, António de Albuquerque de Meneses e Lencastre, adianta tratar-se de «um plumitivo de baixo nível cultural e moral». Similar posição tomam Júlio de Sousa e Costa e Rocha Martins. Longe destas verrinosas tiradas, Maria Filomena Mónica, em postura mais objectiva, defende que O Marquês da Bacalhoa «constitui um excelente resumo da mitologia que rodeava os costumes do paço.»
O escândalo, a falácia e o implosivo marcaram para sempre a imagem de António de Albuquerque e para tal não foi despicienda a publicação desse estigmatizante romance O Marquês da Bacalhoa.
2. Mas, afinal, quem foi e o que fez António de Albuquerque, para que valha a pena conhecê-lo?
D. António de Albuquerque do Alardo de Amaral Cardoso e Barba de Meneses e Lencastre ou D. Antonio de Albuquerque do Amaral Cardoso de Vilhegas e Guzman Barba Alardo de Lencastre e Barros de Menezes Pina e Lemos, fidalguíssimo, nasceu em Viseu, na casa do Arco, em 11 de Marco de 1866. Era filho de D. António de Albuquerque do Amaral Cardoso e de D. Emília Augusta Barba de Lencastre ou D. Emília Augusta Barba Alardo de Lencastre Barros (descendente dos Viscondes do Amparo, de Leiria), tendo casado pela primeira vez com a senhora D. Luiza Mousinho de Albuquerque ou D. Maria Luiza de Pinho, de quern teve dois filhos, Rodrigo e Maria de Lurdes, ambos com geração.
Os primeiros tempos da sua vida passou-os Miquéque, assim seria conhecido em Viseu, sem que que nada de invulgar se passasse. A juventude esgotou-se-lhe viajando e absorveu nessa fase uma educacao e uma instrução tipicamente parisienses, tendo vivido diversos anos em Paris. A influência da literatura francesa e do republicanismo facilmente o penetraram. Em Portugal, a sua maneira mundana e convivial, nomeadamente no contacto com as mulheres, era censurada e incompreen-dida. Sedento de brilho, que o seu valor parecia merecer, deixou-se instigar pela moda republicana e pelo estrépito do papel principal. Por trás manobrariam, sem que António de Albuquerque muito bem entendesse, aqueles que o queriam assim, eco de ideias não amadurecidas. Parecia gostar de ser adulado e o seu reconhecido talento era explorado. Era conhecido como o Lêndea, parece que pela cor da tez, pelo cabelo de pendor citrónico e pelo apegamento às damas.
Sobre o seu carácter de homem, Rocha Martins adianta um conjunto de designativos ("degenerado em que concorriam singulares predicados e taras", "mostrava-se valente, mas quási sempre cobarde", "tinha certos rasgos, ao escrever, mas não ia além de meia dúzia de páginas toleráveis") que Cezar dos Santos, o "biógrafo" de António de Albuquerque, confuta veementemente.
Segundo testemunhos de vários autores, era principalmente no Café do Gelo, no Rossio da capital, que o escritor viseense tinha a sua banca contestatária e de tertúlia. Em Lisboa, teve casa em Campolide, na rua Leandro Braga; teve ainda o sintrense chalé Guiomar, na Estefânia.
A obra de António de Albuquerque não é abundante. Dentro do modo lírico, publicou Arco-Íris e o poemeto Maria Teles; na ficção, sempre em romance, Escândalo! (1904), 0 Marquês da Bacalhoa (1908), A Execução do Rei Carlos (1909) e O Solar das Fontainhas (1910); prefaciou o livro de Gomes de Carvalho Morte Civil (1914); e, por último, legou o volume de investigação histórica Sidónio na Lenda (1922).
Sem vulgar elogio, acho que António de Albuquerque, até por ser um escritor nascido em Viseu e um daqueles que, no seu tempo, polemizou como poucos, merece uma visita atenta e interessada.
Se a obra lírica nada traz de particular, fundando-se numa incaracterística toada debutante, a tradução de Les Civilisés (1906) de Claude Farrère (1876-1957) trouxe-lhe a aprendizagem para a fase romanesca que se iniciara com Escândalo!. Tal romance, com o subtítulo Cenas da Vida de Província, ancora-se na tradição balzaquia-na e queirosiana oitocentista. Júlio de Sousa e Costa integra este romance no propósito demolidor de António de Albuquerque, que não se inibe de atacar uma sua parente muito chegada, o que era "profundamente lamentável!”.
Segue-se-lhe o polémico O Marquês da Bacalhoa (1908), título insinuado, ao que parece, por Gualdino Gomes, e que substituiu o inicialmente previsto Enseada Azul. Abandonando a discussão a respeito da viabilidade desta tipologia de romance, resulta evidente estarmos perante um roman a clef , com ligações placentárias ao referencial, e, simultaneamente, diante de un roman à thèse. Saído sob chancela da Imprimerie Liberté de Bruxelas, que a tal obrigava o gravoso da matéria, defende Rocha Martins que o "editor do livro injurioso" foi Gomes de Carvalho.
Panfletário e herdeiro do intervencionismo neo-romântico de proveniência natu-ralista, enformado no mecanicismo e no jacobinismo, 0 Marquês da Bacalhoa não oferece relevo técnico-compositivo ou estilístico, dele ressaltando um iniludível teor doutrinário e uma coragem indisfarçável. Afinal, o valor desta obra assenta no seu carácter heteróclito e polemizante, características que o fazem importante paradocumento epocal.
Na mesma linha referencial, sai, em 1909, A Execução do Rei Carlos, obra que prima por uma força contestatária multímoda e arrevesada, contra as monarquias, o catolicismo, a família, o jornalismo luso, a política portuguesa e, como se colhe no prefácio e na epígrafe bakuniniana, contra o patriotismo, bem como pela difusão de exotismo de sabor romântico e de um erotismo romanesco de invulgar recorrência. A par disso, exalça-se com perenidade mitificante os regicidas, nomeadamente Buiça e o propagandismo social.
No ano seguinte, em 1910, com dedicatória a Teófilo Braga, publica António de Albuquerque o romance O Solar das Fontainhas, com o subtítulo Cenas do Porto, o que nos permite intuir um regresso a um criticismo social semelhante ao de Escândalo , com a gravitação de todos os alvos assinalados e com a presença de artistas militantes imbuídos de acrasia e de sede de justiça. Interessante se torna sublinhar que Gusmão, o alter-ego do escritor, declara ser autor de romances injustiçados...
Como se disse, António de Albuquerque prefaciou Morte Civil (1914) de Gomes de Carvalho, o que desvela uma adesão ideológico-sentimental.
No ano de 1922, vem a lume Sidónio na Lenda (Estudo critico), "um interessante estudo sobre a trajectória de Sidónio”, segundo João Medina, que inclui ainda um texto de Bourbon e Meneses sobre José Júlio da Costa.
Era o tempo do fim. Pelas quatro horas da manha do dia 2 de Julho de 1923, na sua casa de Sintra, António de Albuquerque, "penitenciado e ungido", depois de uma vida cheia, entregou-se a Deus num abraço ostensivo.
3. Fundindo em si influências heteróclitas, António de Albuquerque e a sua obra transportam tipologias naturalistas, decadentistas e neo-românticas. E se a técnica artística nem sempre é a mais iluminada, o carácter paradocumental dos seus livros torna-os urgentes.
Tendo privado com Gomes Leal, Metzner, Fialho de Almeida, Eugénio de Castro, Rocha Martins, Abel Botelho, D. João da Câmara, Marques de Soveral, Anatole France, Paul Brulat, Rodrigo Soriano, Carmen de Burgos, Blasco Ibañez e muitos outros, o escritor viseense foi vítima da sua alma vibrante de poeta e do seu génio poético. Arrebata-do republicano, implantado o regime que defendera e que, de certa forma, propiciara, vê-se perseguido e marginalizado pelos seus pares que passa a abominar. Pleno de remorsos pelo mal que o seu ser vibrátil semeara, recusa as doutrinações em que se enformara e deseja ardentemente encontrar-se consigo e com os outros, num abraço retemperador.
António de Albuquerque, nobre revolucionário arrependido, cosmopolita e viajado (viveu em África, em várias cidades da Europa e no Brasil), com romances vertidos em castelhano e em francês, convalida na sua obra perfunctória uma tradição sémico-formal que se esvazia e replasma no referencial e no dissídio vivencial que, em fase culminar, se torna excruciante e apelativo. De facto, qual Penélope desenganada que sabe que Ulisses não aportara a Ìtaca, num alor lírico e espiritual desrealizante, o escritor viseense, nesse tempo de verdade, já quase morte, em atitude fungível e requintada, catoliciza-se, lamenta as aduções regicidas ("-Oh! El-rei! Nunca lhe entendi a grandiosidade da sua alma e nunca lha entendi porque El-rei era mais artista do que eu. Hoje!", terá dito) e procura o perdão de S.M., a Senhora D. Amélia, através de carta escrita no dia 14 de Maio de 1923 e nesse mesmo dia reconhecida no notário lisboeta A.G. Videira, vindo-o a obter. Tal missiva, reproduzida em fac-símile na obra de Cezar dos Santos, tem ainda a curiosidade de desvelar que, por baixo da assinatura, António de Albuquerque aduz Visconde do Amparo, assumindo assim uma autoadmonição indiciadora de que vivera como uma fictio personae.
António de Albuquerque reconheceu os pretéritos e exautorados actos. Sempre só, depreciado e solitário, percorreu caminho penoso e difícil, como se a catarse fosse a via do arrependimento.
[Publicado no último jornal viaesen]
4 comentários:
boa tarde Martim.
obrigada por mais este "momento". que guardo.como todos os outros.
bbbbbbbbbbbbbbbbbeijo.
Bom!!!
beijo.
só.
Martim.
Segundo as minhas fichas, Henry Bérenger, senador e embaixador francês nos EUA, natural da Guadalupe, franco-mação, (22 avril 1867- 18 mai 1952) politico e publicista traduziu para a lingua francesa o marques da Bacalhoa e publicou em folhetins em L’Action, de PAris.
Confirma?
Mendo henriques
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