Persiste a memória coalhado no íntimo. Da fusão, pouco pensar, menos dizer. E, no entanto, reconstruo na ogiva do entendimento duas ou três razões, que escondo debaixo do tapete dos dias e das horas. Nem mulher alguma o sabe ou pode saber.
Um silvo acorda-me e traz-me à cidade, irreconhecível, mudada. Lembro agora que fui chocando impenitentemente com os passageiros que bailavam no meu sonho. Em frente, passado o grande átrio da estação, uma praça sorri tristemente ao néon que abraça a noite. Cansado da leitura e da vertigem memorial, súbita alegria vem ao corpo: sem bagagem, só este cárcere transporto, fascínio de carne, ossatura e vísceras.
A noite caiu em Viseu não há muito. É Outono e as folhas douradas, quentes, entram-me nas veias, na melancolia doce da pele. Tenho sede, agora que percorri o caminho árduo do entendimento, sabendo porque vim. Uma voz chama. Resisto ao apelo e não à sede. Em frente do passeio que sigo, a porta de um bar traz-me a dessedentação em caneca de cerveja. Entro no “Lampião”, quase devagar, e peço o ouro da seara, líquido que encosto ao sangue, enquanto devoro o prego duplo excepcional. Em volta, pouca gente ainda, pouca gente assim só.
Pacificado, tal o poder do estômago, percorro agora, desde o fundo, a avenida António José de Almeida, recortando as sombras que entrechocam com a iluminação das montras e dos escassos reclames. Uma aragem fria percorre-me o corpo, anunciando-se na pele. Percorro velhos caminhos gastos e escurecidos, lembrando ainda a voragem da consciência que há pouco me assolara e me trouxera alguns dos encontros e desencontros de uma vida por encher. À direita, o espelho poliédrico do grande prédio dos serviços médico-sociais afunda a cidade no comodismo rasteiro da contenção, desvirtuando o carácter horizontal da velha urbe.
Subo já em direcção ao Rossio. O edifício solenemente recortado do Conselheiro Afonso de Melo emoldura o postal citadino em que se divisa, só parcelarmente, a secular edificação camarária. Avanço, reconhecendo o trilho. Entretanto, o frio e a aragem sopram contra as folhas das árvores. A ágora estende-se agora sob o meu olhar, recoberta pelo calor das velhas tileiras, pontualmente odoríferas. Estou no coração da cidade, percorrida que foi a grande vascular que leva ao mundo. O comboio é a porta para a descoberta e para o sonho. Como o diz, por exemplo, Alberto de Oliveira, em poema que recordo:
No trem de ferro, vimo-nos um dia
E amar-nos foi obra de um momento,
Tudo rápido, como a ventania,
Como a locomotiva ou o pensamento.
- Amo-te!
- Adoro-te!
A estação primeira
Surge. Saltámos nela ao som de um berro.
Nosso amor, numa nuvem de poeira
Tinha passado como o trem de ferro…
Um polícia rola pastosamente o seu zelo e cose-se com o Banco de Portugal, escondendo-se do rigor da noite que agora claramente cai. Estaco perto da passadeira e contemplo o matizado das vidraças do

No fim doce da noite,
No limite familiar da
Próxima dor
Seremos doutorados
Horroris causa:
Pelo fogo – no caos,
Pela chuva – na mentira.
Os nossos curriculuns mortis
Serão enviados
Em envelopes amaldiçoados.
Em todas as casas seremos
Sementes e armadilhas de cristal,
Entretendo famílias inteiras
Em refeições de carne vermelha
E provas de vinhos malditos,
Com fome e sede
Do Mal.
A livraria fechada e o desejo plantado na montra. Amanhã vou comprar o livro. Mãos vazias de novo, pletórico o peito de ideias, chamas e gumes. Vou para o hotel aqui a dois passos, rápido agora colado à sombra. Vejo o muro, entro e inscrevo os dados no balcão de entrada. O quarto é o 112, não, não tenho bagagem, só corpo e alma queimada. Deito-me, levanto-me, banho-me, deito-me, quase adormeço à meia-noite. Sem sono, quase acordo. Viro-me, durmo então. Como um golpe de faca afiada, o estridor do telefone irrompe. Uma estranha vibração percorre-me. A penumbra desce da lua.
5 comentários:
boa noite martim, boa noite viseu!
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belo roteiro de viseu by night
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muito rico de sensações
.
abraços
Excelente vibração! Abraços...
Esta é a nossa cidade! Viva!
urgente ida mail. obrigada.
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