2006-05-19

O lume e o chão (romance a duas mãos)



AUTORIA: MATA HARI
CAPÍTULO 2º

MARTA CRIA OUVíDiO

Marta parecia-me sempre igual, apesar de, com o tempo, ter também ela ficado para lá dos lugares que agora conheço, numa espécie de névoa, com alguma angústia à mistura. Por vezes fazia-me chá e eu acariciava-lhe as costas. Adormecíamos os dois sem tempo para mais nada. A sociedade dos homens, tinha, há muito, começado a enganá-los, os dois procuravam, agora, partilhar um novo sentido para as coisas.

- Fala-me de ti, no passado. Das coisas que gostavas e que agora já não. Das coisas que te faziam rir e chorar como ainda agora ris e choras. E o contrário disso.
- Procuras-me sempre nos mesmos lugares!
- Eu sei, é me mais fácil encontrar-te, é-me mais fácil encontrar-me. É sempre uma forma eficaz de encontrar o que se quer, com o mínimo de esforço. E eu esforço-me pouco, muito pouco para me encontrar.
- Sabes, às vezes fico a pensar e duvido. Duvido de Helena, da forma e do modo como ela ainda vive em mim. Sabia sempre o que eu não queria. Raramente sabia o que queria.
- Os homens são criaturas cheias de dúvidas. Interrogam-se com as evidências e tu não deixas de ser uma excepção.
- Helena era uma excepção. Uma excepção na minha vida. Procurei sempre encontrar nela um pouco da minha parte que está vazia. A minha parte, talvez meia parte, ainda vazia.
- Como conheceste Helena?
- Já quase não me lembro. Na verdade, acho que nós só nos lembramos daquilo que realmente queremos é quase que uma atitude inconsciente de lembrar e deixar de lembrar. As imagens, os sons e os aromas ainda cá estão dentro, parece que ainda os sinto, mas estão amontoados em mim. A minha tem sido vivida um pouco assim, amontoada, aos bocados, às partes. Os anos aproximam-se silenciosamente e eu vivo para além de mim.

Por vezes e às vezes falávamos de nós. Das coisas que os outros falavam de nós e de tudo que estava em volta disso. Ela tinha dias que não me via, eu também não a via. Vivíamos e partilhávamos o mesmo espaço mas o nosso tempo era marcado de uma forma desigual.

- A vida é estranha, começamos sempre por desejar o que nos escapa e acabamos a detestar o que está ao nosso alcance.
- Helena apareceu-me um dia à tarde, era Outono. Havia folhas no chão pássaros já não e depois ela apareceu. Estivemos junto até hoje. As coisas mais inesperadas acontecem quando menos esperamos que elas aconteçam e nesse dia e nos que se lhe seguiram talvez tenha sido um pouco assim. Não sei de onde é que ela apareceu ou sequer de onde veio. Também nunca lhe perguntei, talvez porque nunca tenha realmente tido necessidade disso, talvez por que dessa forma não teria nunca de me iludir com nada, inclusive com aquilo que me estava a acontecer.

Naqueles dias trocávamos angústias e pequenos medos enrolados em lindos embrulhos, papel de rebuçado, laços cor de rosa, por vezes vermelhos. Mastigávamos os mesmos sabores, partilhávamos as mesmas cores que serviam de aperitivo na beleza de um mundo que queríamos muito ir recreando, aos poucos, às partes, aos bocados.

- Solta-me o vestido! Sim aí esse pequeno nó tenta deslaçá-lo. Nó cego.
- Sabes Marta, não consigo perceber o que me persegue. Se será realmente Helena, ou a parte dela que ainda existe em mim. Por vezes fico a pensar se os segredos que ainda guardo comigo e que ambos partilhávamos me podem servir de alguma forma para criar algo de novo. Talvez para me ir alimentando deles, em pequenos momentos que a memória vai deixando lembrar. O filho que ambos vimos crescer continua a ser a recordação mais forte que ainda tenho dela, ainda assim foge-me uma parte, que não consigo explicar, está a tornar-se invisível. Céu azul limpo sem nuvens.

Marta sabia sempre ocupar o seu lugar. Mesmo quando não havia lugar para ela. A sua presença marcava todo o espaço, por muito grande ou pequeno, sentia-a como ninguém mais. Demais.

- Arrepiam-me esses lugares.
- De que falas?
- Sítios de lugar nenhum. Lugares de exílio talvez. São sempre assim, aí procuramos alguma coisa sem percebermos muito bem o quê, nem sequer sabendo se existem. Eu também não sabia da tua existência.
- Descreve-me Helena ao contrário. Como que do mesmo lado, mas ao inverso. Reverso.
- Helena por vezes gelava-me com os seus beijos. Os olhos dela procuravam sempre encontrar algo de novo à sua volta.

Para Helena o mundo fechava-se. Por vezes partia em função de nada, e à procura de nada. Ouvíamos o barulho do mar, passar por detrás e depois ela fazia sempre aquele sorriso de como e quando a conheci. Às vezes ela ia e voltava, sem saber ou perceber porque ia e voltava e tudo ficava igual ao que sempre tinha sido. As vezes perguntava-lhe de quanto tempo mais precisava para chegar a esse lugar. Sabia que fugia de mim, mas também dela e do mundo que tinha deixado ficar para trás. Sabia que fugia do medo, da morte das coisas que sentia trazer agarradas a si. Coladas.

Naquele ano as coisas tinham começado mal. Entre eles as discussões agravaram-se e as coisas sempre estiveram por um fio e nem um nem outro queriam segurar o que ambos assumiam como perdido. Por vezes punha-me a pensar procurando perceber por que é que as coisas se tinham passado daquela forma. Angustiava-me pensar tudo aquilo que iríamos perder para sempre. O presente.

- Sabes Helena, às vezes penso que teria sido melhor para ambos se não nos tivéssemos conhecido. As coisas acontecem, na maior parte das vezes e durante muito tempo não encontramos justificação para elas. Não encontramos justificação para que eles ocorram daquela maneira e um dia paramos e pomo-nos a pensar um pouco sobre tudo o que se passou antes, como se passou e perguntamos será que valeu a pena?
- Um dia o mundo cai-nos em cima e depois começamos por que é que isso aconteceu. Porquê nós?

Helena tinha os cabelos louros, por vezes dourados pelo sol, olhos verdes cor de cereja e vestia-se sempre em tons de azul. Oceano. Ao fim do dia caminhava pelo campo em volta da casa que o seu pai lhe tinha deixado em herança. A sua mãe tinha desaparecido, era ela muito pequena, tão pequena que já não se lembrava. Do seu pai também não, a não ser por fotografias que guardava na sala num armário ao fundo e que por vezes procurava encontrar. Amar. Caminhava pelo campo em busca da sua alma, ou de uma coisa qualquer que pudesse substituí-la, talvez mesmo esse sentido. Pesado.

- Quando somos crianças o mundo cabe-nos numa das nossas mãos. Sorrimos e pensamos que lindo é o teu sorriso, quando sorris. Para mim estás sempre a sorrir.
- Gosto muito de ti ao contrário. Beija-me.
Perguntava-lhe sempre o que é que isso poderia significar, mas ela nunca me deu o significado. Codificado.

Às vezes caminhávamos juntos pelo campo, procurávamos ver e ouvir os pássaros que fugiam por cima das nossas cabeças. Tocava-mos com as mãos, por vezes suadas. Tínhamos sempre tempo para nos beijar. Kiss me dear.
- Sabes Marta, não sei explicar as coisas que me acontecem. O sentido que os outros têm delas, nunca é o mesmo que eu lhe procurei dar. Há sempre uma coisa que não liga com a outra e por mais que eu queira não consigo encontrar esse ponto que as liga. Electricidade.
- Beija-me com a tua boca. Desejas-me?
- Não se deseja aquilo que não conhecemos.

Marta lembrava a arte de amar e pensava que a beleza não bastava para se ser amado. Eu disse-lhe que a amava ela disse-me que não. Esse não poderia significar muita coisa, ou talvez até nada, bastava que para isso pudesse lembrar-me de tudo que já tínhamos passado juntos. Talvez um dia o amor chegasse, quando menos esperássemos. Olá.

- Lambe-me os pés. Depois o rosto.
- Sabes como me chamo?
- Que o amor penetre sobre o nome da amizade. Persistência.

4 comentários:

Anónimo disse...

O texto é muito bonito!Boa-tarde!

Anónimo disse...

Quem é esta Mata-Hari?

martim de gouveia e sousa disse...

konde, mata hari escreve por jornais e revistas. nada mais deve ser dito. abraço.

isabel mendes ferreira disse...

nada é fácil....e tudo é longe...cada vez mais longe....embora às vezes perto.


um abraço.Martim.