2006-05-23

a cidade & o texto

Os livros são caminhos inscritos contra a cidade. Não espanta, pois, que a gordura da pólis expluda no centro ígneo da usura: o poder invoca o fogo, porque não pode domar a “arca do espírito”, desarticulando o manto comunitário, como se, no sentido cervantino, as letras levassem os homens às chamas. É, no entanto, de ti, leitor com memória da biblioclastia da história, que nasce em cada dia de leitura, vida por sobre a morte de cada círculo hermenêutico por ti traçado, um livro sempre incombustível.
Inscrito e correctivo, o texto livresco manchado pela negrura da imprensa ilude a diferença epocal e abraça a rede aurática do saber, não obstante o avanço das tecnologias da informação que apertam contra a cidadela que sempre resiste. Resistirá sempre? O hipertexto à distância do dedo é suficientemente informe e gigantescamente disforme, plástico e refractário ao sentido, para que, mesmo que assinado, divirja da tonalidade anódina do anonimato. Incomensurável, vai ser sonegado pelas viroses e pelos fungos do esquecimento – em volta, agora vejo, aglomeram-se os ácaros para o manjar digital. Não temo, pois, que o “interland” da literatura, com inscrição remota e sempre moldável, feneça agrilhoada pelas estocadas do internauta.
A cidade abre-se à leitura, agora que a “máquina hermenêutica” carece de afinação e de um pouco mais se silêncio. Aliás, muita da crise propalada (índices de leitura, de alfabetização, de cultura…) tem origem nos demagogos que tomaram as universidades e as escolas, destruindo os textos primigénios em prol das leituras didácticas, das “fotocópias” fundamentais, da informação acessória, do discurso secundário… Abandonando os textos à escavação ocasional, fragmentária, transforma-se a literatura em burocracia, em vanidade, esgrimida sumptuosamente pelos guardiães da impostura que impõem Dan Brown e não conhecem Ramos Rosa. Eis o perigo da ilusão da literatura: deseja-se menos ao lado e muito mais ao centro.
Outras vezes, atira alguém com um rol de títulos que nunca leu. Sem lisura intelectual, a morte do livro vai saindo à rua. Quem lê, hoje, um livro completo? Quem vem matar o livro com a sua vaidade? Ao fim da escuta, as prensas não param quando o objecto celebrado é um livro de um nomoteta que existe para ser lido do princípio até ao fim.
Desprendidas as letras do objecto maior, ei-las no mundo e na cidade à espera de serem lidas. E assim lemos o mundo, com Deleuze, olhando a fragmentada cidade que arde. Esta é a nossa cidade. Com uma memória activa, ela reescreve-se, construindo-se em cada momento por mão irreconhecível, assim se condenando o cidadão a uma leitura “in fabula” (Fernando de la Flor).
A língua de pedra da cidade solta um queixume junto à pele. O texto do aglomerado, já ilegível, dói-se na superfície do granito que luta contra o ácido dos dias novos. Opaco e cinzento, temo, em cidade também dita “jardim”, que a pressa continue a debilitar as zonas verdadeiramente inscritas. A balbúrdia da pregnante intervenção, quase sempre obra sem ideia, convoca uma tensão insuperável: ou o antigo burgo era nuvem sem espessura ou o ritmo alucinante dos golpes cegos e desrespeitadores do cidadão é ferida incisa na memória que se destrói.
Pego na cidade desde o bolso e aproximo-me dos seus signos agudos. Rodeio-lhe a aspereza com o calor da inscrição. Leio o texto desalentado pela memória destruída. Não ler depressa, antes devagar. Assim, na algaravia do texto da nossa cidade. Fora dela, neste tempo de não-inscrição (José Gil), limpamos o corpo da aparência à sombra da textualidade. O texto já não habita a cidade.


6 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

mas a cidade habita-nos...e habiua-nos ao silêncio interior. sempre aqui posto a nu (leva acento?) por si. com o traço habitual de quem habita o dentro das cidades.


bom dia Martim.

beijo.

Anónimo disse...

Linda imagem parada no tempo. Boa-tarde!

porfirio disse...

:
mas o texto
habita
nesta casa

uma santa tarde martim
abraço
.

Anónimo disse...

A capa da revista é espectacular! Boa-tarde!

Anónimo disse...

Belo texto - Abraço

isabel mendes ferreira disse...

........e hoje a cidade perdeu mais um combatente...da cultura e da liberdade...........


beijo. de bom dia.