
Inscrito e correctivo, o texto livresco manchado pela negrura da imprensa ilude a diferença epocal e abraça a rede aurática do saber, não obstante o avanço das tecnologias da informação que apertam contra a cidadela que sempre resiste. Resistirá sempre? O hipertexto à distância do dedo é suficientemente informe e gigantescamente disforme, plástico e refractário ao sentido, para que, mesmo que assinado, divirja da tonalidade anódina do anonimato. Incomensurável, vai ser sonegado pelas viroses e pelos fungos do esquecimento – em volta, agora vejo, aglomeram-se os ácaros para o manjar digital. Não temo, pois, que o “interland” da literatura, com inscrição remota e sempre moldável, feneça agrilhoada pelas estocadas do internauta.
A cidade abre-se à leitura, agora que a “máquina hermenêutica” carece de afinação e de um pouco mais se silêncio. Aliás, muita da crise propalada (índices de leitura, de alfabetização, de cultura…) tem origem nos demagogos que tomaram as universidades e as escolas, destruindo os textos primigénios em prol das leituras didácticas, das “fotocópias” fundamentais, da informação acessória, do discurso secundário… Abandonando os textos à escavação ocasional, fragmentária, transforma-se a literatura em burocracia, em vanidade, esgrimida sumptuosamente pelos guardiães da impostura que impõem Dan Brown e não conhecem Ramos Rosa. Eis o perigo da ilusão da literatura: deseja-se menos ao lado e muito mais ao centro.
Outras vezes, atira alguém com um rol de títulos que nunca leu. Sem lisura intelectual, a morte do livro vai saindo à rua. Quem lê, hoje, um livro completo? Quem vem matar o livro com a sua vaidade? Ao fim da escuta, as prensas não param quando o objecto celebrado é um livro de um nomoteta que existe para ser lido do princípio até ao fim.
Desprendidas as letras do objecto maior, ei-las no mundo e na cidade à espera de serem lidas. E assim lemos o mundo, com Deleuze, olhando a fragmentada cidade que arde. Esta é a nossa cidade. Com uma memória activa, ela reescreve-se, construindo-se em cada momento por mão irreconhecível, assim se condenando o cidadão a uma leitura “in fabula” (Fernando de la Flor).
A língua de pedra da cidade solta um queixume junto à pele. O texto do aglomerado, já ilegível, dói-se na superfície do granito que luta contra o ácido dos dias novos. Opaco e cinzento, temo, em cidade também dita “jardim”, que a pressa continue a debilitar as zonas verdadeiramente inscritas. A balbúrdia da pregnante intervenção, quase sempre obra sem ideia, convoca uma tensão insuperável: ou o antigo burgo era nuvem sem espessura ou o ritmo alucinante dos golpes cegos e desrespeitadores do cidadão é ferida incisa na memória que se destrói.
Pego na cidade desde o bolso e aproximo-me dos seus signos agudos. Rodeio-lhe a aspereza com o calor da inscrição. Leio o texto desalentado pela memória destruída. Não ler depressa, antes devagar. Assim, na algaravia do texto da nossa cidade. Fora dela, neste tempo de não-inscrição (José Gil), limpamos o corpo da aparência à sombra da textualidade. O texto já não habita a cidade.
6 comentários:
mas a cidade habita-nos...e habiua-nos ao silêncio interior. sempre aqui posto a nu (leva acento?) por si. com o traço habitual de quem habita o dentro das cidades.
bom dia Martim.
beijo.
Linda imagem parada no tempo. Boa-tarde!
:
mas o texto
habita
nesta casa
uma santa tarde martim
abraço
.
A capa da revista é espectacular! Boa-tarde!
Belo texto - Abraço
........e hoje a cidade perdeu mais um combatente...da cultura e da liberdade...........
beijo. de bom dia.
Enviar um comentário