DESTINOS
Quando poisou o pé no último degrau das escadas de mármore frio e gasto (o pé esquerdo, lembro-me como se fosse hoje), libertou-se-lhe nas costas todo o receio de que tinha memória no corpo:
— A gente encontramo-nos lá fora. Lá fora é que a gente vamos ver como é que é. De homem para homem sem essa pasta de merda com manias de intelectual.
A orquestra cortou-me a recordação por instantes breves. Admirei-lhe novamente a compostura engravatada, os pés a hesitar atrás do ritmo difícil que vinha do palco do ginásio, santuário das festas de Natal, construído na parte mais antiga, a mais bonita, da Escola. O rosto jovem, sensualmente selvagem, que alegrava a mesa que me fiz calhar em sorte (a única mulher, todos os demais, homens — e eu, o seu eleito sem que os demais adivinhassem porquê) também o conhecia, a julgar pelo sorriso com que respondeu a um leve inclinar da sua cabeça, já com apetências de calvície.
A vida tem destas partidas: constrói, destrói e reconstrói ao ritmo e ao acaso de (des)encontros — sumariara, estranhamente para os alunos, no dia em que ele (Arlindo, tinha a certeza de que era Arlindo, isso mesmo, Ar lindo no gracejar nem sempre piroso dos colegas) soltara sonora gargalhada (como é que é doutor importa-se de repetir), quando já estavam silenciados os corpos e sossegados os espíritos danados com a substituição. Tinham chegado em magote à boca da sala (cadeiras e mesas presas em anfiteatro e quadro vincado a sulcos de pauta de música sem clave) e o Arlindo chefiou o assalto: — Onde é que está o gajo? Apesar das suas vinte e poucas elegantes primaveras que frequentemente o confundiam com os alunos e obrigavam os funcionários a gaguejar (desculpe, doutor, pode passar; é que... Não faz mal eu percebo), não se lhe notou qualquer hesitação senão numa leve tremura de voz, imperceptível à desatenção dos alunos acabados de sentar:
— O gajo está aqui! Um humilde professor de Português, às vossas ordens! Como pelos vistos sabem, venho substituir a vossa professora anterior.
À distância de vinte e tal anos, desassossega-me a facilidade com que hoje as cordas vocais me atraiçoam e me desvelam o universo interior. Conservo, no entanto, o mesmo gosto pelo desafio, o espírito aventureiro com que ele aceitou a substituição, por dinheiro também — que três horas extraordinárias, afinal, não é coisa que em início de vida se desperdice — por altruísmo talvez — que senhora entregue a uma ("cambada de matulões, todos homens de maior idade", avisou a colega quando pretendeu acabar com mês e meio de intolerável tormento) não era espectáculo que ele suportasse de boa mente. Mas essencialmente pelo desafio.
Consciente, reconheço. Como lhe escapariam as alterações provocadas pela unificação do ensino, pela transformação de Escola Industrial e Comercial
— Doutor, vai uma dança? Desculpei-me (não sei mesmo dançar, valsas então...), mas ela desarmou-me (não me diga que agora anda tocado a manias de intelectual). Chiça, que isto de se ser homem tem dos seus dissabores, como a impossibilidade de resistir a um corpo gracioso que se oferece para o prazer da partilha do movimento. Cedi.
Ela elevou as pupilas ao canto superior das sobrancelhas, que franziu — e o habitual sorriso, aos lábios simultaneamente torcidos de consentimento e reprovação, protestando pelo prazer ilícito que o roçar leve dos dedos lhe despertava na união superior das nádegas e lhe inundava de seguida a flor da pele:
— Doutor... assim não brinco...
Senti-lhe no meu peito a rigidez dos seios e nos braços, a entrega desfalecida de todo o corpo. Sorri-lhe também.
— Ouve lá... quem é aquele maricas que cumprimentaste há pouco?
Tinha a pele tão sensível que um ligeiro toque de barba, crescida de algumas horas, facilmente lha coloria de um vermelho irritado. Fenómeno incapaz de a dissuadir de um dos prazeres mutuamente consentidos: o contacto das faces.
— É um comerciante de sucesso. De pássaros, gaiolas e quejandos suficientes para uma fortuna nada desprezável.
Venham cá agora dizer-me que a divina Providência existe! Como pode o Arlindo, ex-aluno medíocre (conhecido por ter aldrabado centenas de alunos e até professores solicitando assinaturas para um pretenso baixo-assinado de protesto, na realidade utilizadas para a legalização da FSP), ser homem de sucesso? E, acima disso, “nada desprezável” (sendo a fortuna, em boca de mulher há-de ser também o dono)...
Não é fácil a um cavalheiro (mesmo sem proclamação de macho latino) aceitar os seus próprios ciúmes (fraquezas, enfim, e sintoma social de inferioridades em relação à concorrência, coisas de mulheres, portanto). Olhei-me na figura vestida de ganga, T-shirt e sapatilha descuidada: só então me feriu a observação com que ela me recebera, num corpo sugerido pelo comprido vestido preto:
— Ó doutor, eu compreendo-o, mas esses modos de vir a uma festa de ex-alunos pode ser entendido como afronta.
A orquestra fez breve pausa. Era exactamente isso: afronta (porra, uma afronta a mim, também e antes do mais, mesmo que não saiba bem porquê, e isso que importa, merda para os porquês, vou-me pôr a andar).
No ombro uma mão venceu-me a firmeza dos passos. Um toque conhecido há mais de 20 anos, quando o Arlindo lhe narrara os pormenores do enforcamento simbólico de um professor numa árvore do recreio. Tocou-lhe as costas e concluiu:
— É assim que hão-de acabar todos esses gajos com manias de intelectual.
Desapertou o casaco, estendeu-me a mão num vigoroso aperto em dois destacados andamentos: — Ó doutor!... Há quantos anos!... Como é que vai isso?... Tudo bem?... A minha esposa, Marília... Gostava que um dia destes aparecesse lá em casa para a gente bebermos um copo... Que diacho é o que a gente levamos desta vida e afinal a gente temos que ser todos amigos, não é doutor?... A vida acaba por ser uma escola dos diabos e a gente acabamos por ver os erros que fizemos... Desculpe lá aquelas traquinices todas pá! A gente quando é novo não pensamos... Ímpetos da juventude... não é doutor?
AERREGÊ
5 comentários:
Conto musculado...
Martim,
Abraço.
Bem narrado e conduzido como deve ser um conto.
Quantos são? Quantos são? Eu não tenho medo de ninguem!
"A vida tem destas partidas: constrói, destrói e reconstrói ao ritmo e ao acaso de (des)encontros —"
_________________mas aqui a vida tem este recomeço.
obrigada Martim.
beijo.
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