2007-02-28

noite funda

agora ouve como dentro do porto
uma ave branca desafia os céus
e as nocturnas cavalgadas em ti
mais não são do que agonia final
de virgílio na brindisi de broch.

sente ainda como o velho monte
adormece embalado nos nervos
nos ossos fugitivos delapidados
pela inutilidade da insónia clara
que na pele crava os lábios azuis.

a funda noite voa rasante nos frutos
no dia argênteo que amei palidamente.

2007-02-27

organon

na fissura a palavra cai redonda e nem os caldeus vêem, romba, a escrita a deitar-se, longa, na superfície da pele, dispersos caóticos símbolos sendo.
raízes breves incisas em arco dizendo, em fevereiro morrem. como varanda dentro da ruína.

2007-02-26

Santos de Lisboa


SANTOS DE LISBOA

Ciclo de Conferências

Casa Veva de Lima

21:30H

Falar de santidade hoje? Não é antes coisa do passado? A verdade é que, como tem lembrado Bento XVI, duas coisas podem fazer virar o coração das pessoas para Cristo: a arte e os santos. Olhar para os santos de Lisboa, é então o único caso em que se pode dizer, contrariando o provérbio, que fazem milagres.

Citando Nietzsche, Maria Ulrich sempre sublinhou a necessidade de superação. Não caiu no entanto no niilismo do filósofo alemão mas antes abraçou a plenitude da dimensão humana do cristianismo. “Sede perfeitos como o Meu Pai que está no céu é perfeito. Perfeito não no sentido de ser ‘virtuoso’, de suprimir defeitos que nos pertencem…mas no sentido de os sublimar e de atingirmos o máximo de que somos capazes.”

As Conferências serão editadas pela FMU.

27 de Fevereiro – Nuno Guedes – S. JOÃO DE BRITO

13 de Março – Isabel Alçada CardosoS. VICENTE

22 de Maio – Madalena FontouraBEATA JACINTA

12 de Junho – João César das Neves – SANTO ANTÓNIO

Outubro – Padre João Seabra – SANTOS MÁRTIRES DE LISBOA

Novembro – SAR D. Duarte de Bragança – SANTO CONDESTÁVEL

Rua Silva Carvalho, 240

1250-259 LISBOA

Tel.: 21.388.21.10 Fax: 21.383.01.35

fundmariaulrich@clix.pt

www.fmu.org

2007-02-25

é tão breve o silêncio quando dizer mais era urgente

é tão breve o silêncio quando dizer mais era urgente,
tão frágil o fogo das mãos sobre a pele,
tão lúcido o pensamento quando dizer tudo é pouco.
[Isabel Mendes Ferreira, um corpo (sub) exposto]

2007-02-24

fundo

as palavras são minhas
e dentro da caverna
numerosas são as vozes
e as sombras brancas.

na parede as visões
são documentos reais
vindos do século antigo.

opalina a terra ferve
e do sangue só o medo.

2007-02-23

José Afonso


Ontem como hoje, não há fronteiras para este canto único sempre dentro de nós. Ao grande músico, poeta, compositor, intérprete, professor, caminheiro do sonho...

Um olhar sobre "Outonalidades" de José Amaral







Seguindo pelo rito das estações do ano, sem que tal signifique ainda o estádio da matura idade literária que divisa um trajecto, este novo livro de José Amaral, com ilustrações de Ana Cristina Cruz, vindo a lume em Junho de 2006, com chancela da Papiro Editora, inscreve-se em linha ambivalente entre uma tradição lírica ingénua e um tardo-simbolismo mitificante.
A eficácia do primeiro segmento operativo logo ocorre no poema “Abelha”, aí se cultivando um despojamento de linguagem fomentador da tal ingenuidade lírica indutora de perfeitos quadros poéticos sem especial fractura hermenêutica: a derradeira estrofe, pela singeleza e pela possibilidade onírica, corta sapiencialmente o narrativismo das estrofes anteriores e instaura um canónico culto da “bela natureza” azulescente e/ou colorante. Comprove-se o asserto crítico, por exemplo, com os “explicit” de expectativa do citado poema e de “Amendoeira”, onde encontramos a “imensidão / do azul / do horizonte” (p. 13) a encaixar com os “estranhos bailados / no céu azul” (p. 17). Veja-se ainda o cromatismo de poemas como “Claridade”, aí se desvelando uma oficina poética cinérea de “versos amarelados” (p. 24).
Uma segunda e última linha possível é, por exemplo, a incisão decadentista-simbolista, visível, aqui e além, na estranhização linguística de poemas como “Amapolas” ou “Nuit”, no culto incontido dos raros vocábulos não só outoniços (‘argilosa’, ‘esquissos’, ‘famélica’, ‘exprobação’, ‘herífuga’, ‘selenografia’, ‘plúmulas’, ‘hipoacusia’…), no virtuosismo técnico-compositivo (poemas ordenados alfabeticamemte de “Abelha” até “Trágico”), nas “sinfonias labiais” de muitos poemas ou nos ritos formais.
Poeta longe do Outono, José Amaral procura ainda a tonalidade. Não espanta, até porque um escritor faz-se escrevendo, insistindo na dor reactiva. A toada divisada, como diria um C. S. Lewis, não é propriamente defeito, é antes “a primeira forma de sensibilidade rítmica”.
[Publicado no Jornal do Centro de hoje]

2007-02-22

mitema

eis-me agora a sós contigo:
por ti tomo as águas e o ar
correndo sobre os seixos
antes que as gotas fendam
os pés e a fibra dos ossos.
servo vou ao chão e soergo
os olhos prenhes de chama
contra o transepto do corpo
vendo o que sempre fito...
neste dia sou límpido assim
antigo como papiro do nilo.

esta a mitologia a sós contigo.

2007-02-21

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO SOBRE DIREITO NATURAL PROMOVIDO PELA PONTÍFICA UNIVERSIDADE LATERANENSE


DISCURSO DO PAPA BENTO XVI
AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO
SOBRE DIREITO NATURAL PROMOVIDO
PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE LATERANENSE

Segunda-feira, 12 de Fevereiro de 2007

Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Estimados Professores
Ilustres Senhoras e Senhores

É com particular prazer que vos recebo no início dos trabalhos congressuais, que nos próximos dias vos verão comprometidos no debate sobre um tema de importância relevante para o actual momento histórico, o da lei moral natural. Agradeço a D. Rino Fisichella, Magnífico Reitor da Pontifícia Universidade Lateranense, os sentimentos expressos no discurso com que desejou introduzir este encontro.

Não há dúvida de que nós estamos a viver um momento de desenvolvimento extraordinário na capacidade humana de decifrar as regras e as estruturas da matéria e no consequente domínio do homem sobre a natureza. Todos nós vemos as grandes vantagens deste progresso, e vemos cada vez mais também as ameaças de uma destruição da natureza pela força da nossa acção. Existe outro perigo menos visível, mas não menos preocupante: o método que nos permite conhecer cada vez mais profundamente as estruturas racionais da matéria torna-nos cada vez menos capazes de ver a fonte desta racionalidade, a Razão criadora. A capacidade de ver as leis do ser material torna-nos incapazes de ver a mensagem ética contida no ser, mensagem que a tradição denomina lex naturalis, lei moral natural. Trata-se de uma palavra que hoje para muitos é incompreensível, por causa de um conceito de natureza já não metafísico, mas somente empírico. O facto de que a natureza, o próprio ser, já não é transparente para uma mensagem moral, gera um sentido de desorientação que torna precárias e incertas as opções na vida de todos os dias. Naturalmente, a confusão atinge de modo particular as gerações mais jovens, que neste contexto devem encontrar as opções fundamentais para a sua vida.
É precisamente à luz destas verificações que se manifesta em toda a sua urgência a necessidade de reflectir sobre o tema da lei natural e de reencontrar a sua verdade, comum a todos os homens. Tal lei, à qual se refere também o Apóstolo Paulo (cf. Rm 2, 14-15), está inscrita no coração do homem e, por conseguinte, também hoje não é simplesmente inacessível. Esta lei tem como seu princípio primordial e generalíssimo o de "fazer o bem e evitar o mal". Trata-se de uma verdade cuja evidência se impõe imediatamente a cada um. Dela brotam os outros princípios mais particulares, que regulam o juízo ético sobre os direitos e os deveres de cada um. Trata-se do princípio do respeito pela vida humana, desde a sua concepção até ao seu termo natural, pois este bem da vida não é uma propriedade do homem, mas um dom gratuito de Deus. Trata-se também do dever de buscar a verdade, pressuposto necessário de toda o verdadeiro amadurecimento da pessoa.

Outra exigência fundamental do sujeito é a liberdade. Todavia, tendo em consideração o facto de que a liberdade humana é sempre uma liberdade compartilhada com os outros, é claro que a harmonia das liberdades só pode ser encontrada naquilo que é comum a todos: a verdade do ser humano, a mensagem fundamental do próprio ser, precisamente a lex naturalis. E como deixar de mencionar, por um lado, a exigência da justiça, que se manifesta em dar unicuique suum e, por outro, a expectativa da solidariedade, que alimenta em cada um, especialmente se estiver em dificuldade, a esperança de uma ajuda por parte daquele que teve uma sorte melhor? Nestes valores expressam-se normas inderrogáveis e inadiáveis, que não dependem da vontade do legislador e nem sequer do consenso que os Estados lhes podem conferir. Com efeito, trata-se de normas que precedem qualquer lei humana: como tais, não admitem intervenções em derrogação por parte de ninguém.

A lei natural é a nascente de onde brotam, juntamente com os direitos fundamentais, também imperativos éticos que é necessário respeitar. Na actual ética e filosofia do Direito são amplamente difundidos os postulados do positivismo jurídico. A consequência é que a legislação se torna com frequência somente um compromisso entre diversos interesses: procura-se transformar em direitos, interesses particulares ou desejos que contrastam com os deveres derivantes da responsabilidade social. Nesta situação, é oportuno recordar que cada ordenamento jurídico, tanto a nível interno como internacional, haure em última análise a sua legitimidade da radicação na lei natural, na mensagem ética inscrita no próprio ser humano. Em definitivo, a lei natural é o único baluarte válido contra o arbítrio do poder ou os enganos da manipulação ideológica. O conhecimento desta lei inscrita no coração do homem aumenta com o progredir da consciência moral. Portanto, a primeira preocupação para todos, e particularmente para quem tem responsabilidades públicas, deveria consistir em promover o amadurecimento da consciência moral. Este é o progresso fundamental, sem o qual todos os outros progressos terminam por ser não autênticos. A lei inscrita na nossa natureza é a verdadeira garantia oferecida a cada um, para poder viver livres e ser respeitado na própria dignidade.

O que dissemos até agora tem implicações muito concretas, se se faz referência à família, ou seja, àquela "íntima comunidade conjugal de vida e de amor... fundada e dotada de leis próprias pelo Criador" (Constituição pastoral Gaudium et spes, 48). A este propósito, o Concílio Vaticano II reiterou oportunamente que a instituição do matrimónio recebe a sua "estabilidade do ordenamento divino" e, por isso, "este vínculo sagrado, por causa do bem tanto dos esposos e da prole, como da sociedade, está fora do arbítrio humano" (Ibidem). Portanto, nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador, sem que a sociedade seja dramaticamente ferida naquilo que constitui o seu próprio fundamento basilar. Esquecê-lo significaria debilitar a família, penalizar os filhos e também tornar precário o futuro da sociedade.

Enfim, sinto o dever de afirmar mais uma vez que nem tudo o que é cientificamente realizável é também lícito sob o ponto de vista ético. Quando reduz o ser humano a um objecto de ensaio, a técnica termina por abandonar o sujeito frágil ao arbítrio do mais forte. Confiar cegamente na técnica como a única garantia de progresso, sem oferecer ao mesmo tempo um código ético que mergulhe as suas raízes na mesma realidade que é estudada e desenvolvida, equivaleria a causar violência à natureza humana, com consequências devastadoras para todos.

A contribuição dos homens de ciência é de importância primária. Juntamente com o progresso das nossas capacidades de domínio sobre a natureza, os cientistas devem contribuir também para nos ajudar a compreender profundamente a nossa responsabilidade pelo homem e pela natureza que lhe é confiada. Tendo isto como base, é possível desenvolver um diálogo fecundo entre crentes e não-crentes; entre filósofos, juristas e homens de ciência, que podem oferecer também ao legislador um material precioso para a vida pessoal e social. Por isso, faço votos a fim de que estes dias de estudo possam impelir não apenas a uma maior sensibilidade dos estudiosos em relação à lei natural, mas levem também a criar as condições para que, no que diz respeito a esta temática, se chegue a ter uma consciência cada vez mais plena do valor inalienável que a lex naturalis possui, para um progresso real e coerente da vida pessoal e da ordem social.

Com estes bons votos, asseguro a minha lembrança na oração por vós e pelo vosso compromisso académico de investigação e de reflexão, enquanto concedo a todos vós a minha afectuosa Bênção Apostólica.

© Copyright 2007 - Libreria Editrice Vaticana

Oasis & os Brit-awards 2007: o reconhecimento




Brilhantes Oasis no encerramento da cerimónia dos British Awards 2007.


2007-02-20

pedra sobre pedra

a noite vem e declina funda nos miósporos
o júbilo percorre então o corpo que sustém
as colunas da casa e o aroma do vinhático.

cintilam os líquidos e a resina do pinho
rebenta nas veias enquanto lábil a linfa
cobre o mármore e os membros vívidos.

no chão uma pedra cicatriza o tempo ácido.

2007-02-19

"Em forma", no Gymno Três

A pensar nas necessidades cada vez mais exigentes dos nossos clientes, o GymnoTrês e a Haja Saúde uniram-se e criaram o programa Em Forma. O objectivo é ter uma vida mais saudável, incluindo uma alimentação equilibrada, exercício físico regular e suplementação alimentar para colmatar alguns défices que possam existir. Este programa pode ser direccionado para a perda de peso, aumento de massa muscular, ou simplesmente manutenção de bons hábitos. Para mais informações não hesite em contactar-nos.
Com muita estima
GymnoTrês, Ginásio Lda.

2007-02-18

"Destinos" - conto por António Rodrigues Gomes

DESTINOS

Quando poisou o pé no último de­grau das escadas de mármore frio e gasto (o pé esquerdo, lembro-me como se fosse hoje), libertou-se-lhe nas costas todo o receio de que tinha memória no corpo:

— A gente encontramo-nos lá fora. Lá fora é que a gente vamos ver como é que é. De homem para homem sem essa pasta de merda com mani­as de intelectual.

A orquestra cortou-me a recordação por ins­tantes breves. Admirei-lhe novamente a compos­tura engravatada, os pés a hesitar atrás do ritmo difícil que vinha do palco do ginásio, santuário das festas de Natal, construído na parte mais an­tiga, a mais bonita, da Escola. O rosto jovem, sensualmente selvagem, que alegrava a mesa que me fiz calhar em sorte (a única mulher, todos os demais, homens — e eu, o seu eleito sem que os demais adivinhassem porquê) também o conhe­cia, a julgar pelo sorriso com que respondeu a um leve inclinar da sua cabeça, já com apetências de calvície.

A vida tem destas partidas: constrói, destrói e reconstrói ao ritmo e ao acaso de (des)encon­tros — sumariara, estranhamente para os alu­nos, no dia em que ele (Arlindo, tinha a certeza de que era Arlindo, isso mesmo, Ar lindo no gra­cejar nem sempre piroso dos colegas) soltara sonora gargalhada (como é que é doutor importa-se de repetir), quando já estavam silenciados os corpos e sossegados os espíritos danados com a substituição. Tinham chegado em magote à boca da sala (cadeiras e mesas presas em anfiteatro e quadro vincado a sulcos de pauta de música sem clave) e o Arlindo chefiou o assalto: — Onde é que está o gajo? Apesar das suas vinte e poucas elegantes pri­maveras que frequentemente o confundiam com os alunos e obrigavam os funcionários a gaguejar (desculpe, doutor, pode passar; é que... Não faz mal eu percebo), não se lhe notou qualquer hesitação senão numa leve tremura de voz, imper­ceptível à desatenção dos alunos acabados de sentar:

— O gajo está aqui! Um humilde professor de Português, às vossas ordens! Como pelos vis­tos sabem, venho substituir a vossa professora anterior.

À distância de vinte e tal anos, desassossega-me a facilidade com que hoje as cordas vocais me atraiçoam e me desvelam o universo interior. Conservo, no entanto, o mesmo gosto pelo desa­fio, o espírito aventureiro com que ele aceitou a substituição, por dinheiro também — que três horas extraordinárias, afinal, não é coisa que em início de vida se desperdice — por altruísmo talvez — que senhora entregue a uma ("camba­da de matulões, todos homens de maior idade", avisou a colega quando pretendeu acabar com mês e meio de intolerável tormento) não era es­pectáculo que ele suportasse de boa mente. Mas essencialmente pelo desafio.

Consciente, reconheço. Como lhe escapari­am as alterações provocadas pela unificação do ensino, pela transformação de Escola Industrial e Comercial em Escola Secundária e o risco das reacções daqueles moços com corpo tão cresci­do quanto o seu e destino marcado para a Mecanotecnia? Acalmou a segunda aula com a declaração solene e sonora de que levara "muito peido de cigano" — expressão com que recor­dava para si os tempos em que na Faculdade afixava proibidos panfletos iludindo a vigilância dos olhares do chefe de Secretaria (informador da Pide, todos sabiam) e escondia que andara, em noites a que perdeu a conta, a colar cartazes (do MRPP, partido de que fora expulso por ex­cesso de reaccionarismo, sem nunca lhe ter pertencido — não obstante as quantidades do jor­nal oficial que vendera nas ruas e as discussões que nas mesmas vencera) de matraca segura no interior do velho sobretudo. Cenas muito recen­tes: tinham começado com as manifestações do dia seguinte ao da Revolução, que percorreram as ruas e arrancaram das empresas os trabalha­dores da cidade dos Arcebispos.

— Doutor, vai uma dança? Desculpei-me (não sei mesmo dançar, valsas então...), mas ela desarmou-me (não me diga que agora anda tocado a manias de intelectual). Chiça, que isto de se ser homem tem dos seus dissabores, como a impossibilidade de resistir a um corpo gracioso que se oferece para o prazer da partilha do movimento. Cedi.

Ela elevou as pupilas ao canto superior das sobrancelhas, que franziu — e o habitual sorri­so, aos lábios simultaneamente torcidos de con­sentimento e reprovação, protestando pelo pra­zer ilícito que o roçar leve dos dedos lhe desper­tava na união superior das nádegas e lhe inunda­va de seguida a flor da pele:

— Doutor... assim não brinco...

Senti-lhe no meu peito a rigidez dos seios e nos braços, a entrega desfalecida de todo o cor­po. Sorri-lhe também.

— Ouve lá... quem é aquele maricas que cumprimentaste há pouco?

Tinha a pele tão sensível que um ligeiro to­que de barba, crescida de algumas horas, facil­mente lha coloria de um vermelho irritado. Fenómeno incapaz de a dissuadir de um dos pra­zeres mutuamente consentidos: o contacto das faces.

— É um comerciante de sucesso. De pássa­ros, gaiolas e quejandos suficientes para uma for­tuna nada desprezável.

Venham cá agora dizer-me que a divina Pro­vidência existe! Como pode o Arlindo, ex-aluno medíocre (conhecido por ter aldrabado cente­nas de alunos e até professores solicitando assinaturas para um pretenso baixo-assinado de protesto, na realidade utilizadas para a legalização da FSP), ser homem de sucesso? E, acima disso, “nada desprezável” (sendo a fortuna, em boca de mulher há-de ser também o dono)...

Não é fácil a um cavalheiro (mesmo sem proclamação de macho latino) aceitar os seus próprios ciúmes (fraquezas, enfim, e sintoma social de inferioridades em relação à concorrên­cia, coisas de mulheres, portanto). Olhei-me na figura vestida de ganga, T-shirt e sapatilha descui­dada: só então me feriu a observação com que ela me recebera, num corpo sugerido pelo com­prido vestido preto:

— Ó doutor, eu compreendo-o, mas esses modos de vir a uma festa de ex-alunos pode ser entendido como afronta.

A orquestra fez breve pausa. Era exactamente isso: afronta (porra, uma afronta a mim, também e antes do mais, mesmo que não saiba bem por­quê, e isso que importa, merda para os porquês, vou-me pôr a andar).

No ombro uma mão venceu-me a firmeza dos passos. Um toque conhecido há mais de 20 anos, quando o Arlindo lhe narrara os pormeno­res do enforcamento simbólico de um professor numa árvore do recreio. Tocou-lhe as costas e concluiu:

— É assim que hão-de acabar todos esses gajos com manias de intelectual.

Desapertou o casaco, estendeu-me a mão num vigoroso aperto em dois destacados anda­mentos: — Ó doutor!... Há quantos anos!... Como é que vai isso?... Tudo bem?... A minha esposa, Marília... Gostava que um dia destes aparecesse lá em casa para a gente bebermos um copo... Que diacho é o que a gente levamos desta vida e afinal a gente temos que ser todos amigos, não é doutor?... A vida acaba por ser uma escola dos diabos e a gente acabamos por ver os erros que fizemos... Desculpe lá aquelas traquinices todas pá! A gente quando é novo não pensamos... Ímpetos da juventude... não é doutor?


AERREGÊ

2007-02-17

Klaus Nomi_The Cold Song (live)

Nomi sings the air of the cold genius from Purcell's "King Arthur".

Ao melómano ARGOMES

2007-02-16

enuma ellis

do tridente de marduk célere
uma seta de água límpida
despede sobre tiamat deusa
quando do alto entrevista.

e o mundo acontece assim
nas ruínas de assurbanipal
porque a cidade é um livro
esquecido nos escombros.

nem nomeados o céu a terra
só a obcuridade que ordena
o espírito e o objecto celebrado.

sem ser boca a boca na boca.

2007-02-14

persistência

no ouvido um fio corre
do fundo poço vindo
e por um nervo escorre
o mar dentro da escarpa.

o tempo de heraclito é
um espaço pele do corpo
no extremo o sol na mão.

o fóssil rompe a pedra
que dentro de ti sangra.

como maré a vida é côncavo
buril e aresta na concha dura.

"A Liberdade Criadora do Homem"

Paróquia de Nossa Senhora do Carmo
e
Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano

Dia 14 de Fevereiro de 2007 - 21.30

A Liberdade Criadora do Homem
Uma abordagem no Pensamento de Bento XVI

Mons. Roberto (da Nunciatura em Lisboa)

No salão Paroquial de Nossa Senhora do Carmo
(esquina da Rua Raul Mesnier du Ponsard com a Av. Maria Helena Vieira da Silva - perto do Hospital Pulido Valente)

desmemória

agora vou dizer-te o que fiz:

ao fundo da avenida o túnel
longe já do vazio da casa
soterrados passos na água
eis-me entrando no corpo
pelo punho fora cortando
as veias o sangue a pele.

dormi na úlcera da dor
espalhando o feno rubro
no peristilo da aorta e
as melhores folhas foram
sedimentos em que me
lavei comburente e nu.

no cérebro a memória
já não flui e o branco
oculta a última fissura.

2007-02-13

Chico Buarque e Gilberto Gil - Cálice censurado

a usura dos tempos, novos tempos que cavam o vinagre dentro do sangue, lembra muito haver de definitivamente superior: o claro génio que não ajoelha a quaisquer poderes.

Marcadores: escolhas

2007-02-12

Seminário de Ciências Documentais - Tópicos (Conclusão).

3.3. SÉC. XVIII: O CASO DE BOCAGE


Debaixo do brilho do Iluminismo, as preocupações educativas afinam-se, não sendo despiciendos os contributos estruturados de um John Locke (1632-1704), de um Rousseau (1712-1778) ou de um Pestalozzi (1746-1827).
Locke, em Some Thoughts concerning Education (1693), para além de frisar o utilitarismo da educação, “aconselha as crianças a escolherem as fábulas de Esopo e o Romance da Raposa para primeira leitura, pois considera a literatura infantil como um meio de formação cultural e moral”[1], o que está de acordo, por exemplo, com o postulado lockiano que defende a impossibilidade inata dos princípios práticos validados por todos.[2] Rousseau[3] aproveitará as ideias de Locke no seu Émile, ou de l´éducation (1762), aparecendo então vários publicações didácticas para gente miúda. Pestalozzi, por seu lado, extrema a vertente pedagógica dos actos educativos ao defender que a vida é educação.
Não poderia o nosso país ficar indemne a estes ventos racionalistas, registando-se, a partir do século XVIII, um acréscimo nos índices de leitura, vulgarizando-se também as traduções de obras de popularidade mais do que comprovada. A literatura para crianças e jovens, de acordo com os preceitos filosóficos atrás entrevistos, era um meio formativo a que a família recorria cada vez mais.
Como género, dominava a fábula, aparecendo traduções, quase sempre a partir do francês, de Filinto Elísio (1734-1819) e da Marquesa de Alorna (1750-1839), responsáveis pela fixação de inúmeros leitores da época. Neste contexto, salientam-se, pela vocação infanto-juvenil, as Fábulas de Bocage (1765-1805), ilustradas por Julião Machado, traduzidas a partir de La Fontaine ou criadas originalmente pelo Poeta.
Na época, e até um pouco antes, não pode deixar de ser mencionada a apropriação por Perrault (1628-1703) das histórias populares orais dos séculos XII ao XV, bem como as suas Histoires ou Contes du Temps Passé avec des moralités (1697), contendo autênticos paradigmas da literatura infantil (“Gata Borralheira”, “O Polegarzinho”, “Barba Azul”, “A Bela Adormecida”, “O Gato das Botas”, “O Capuchinho Vermelho”…), reaproveitados, como ele fizera já com a tradição oral (oratura), pelos clássicos posteriores Andersen e os irmãos Grimm, por exemplo. Quanto à transmissão e à força irradiante da literatura tradicional, lembro aqui as palavras de Maria Laura Bettencourt Pires que, em ensaio com cerca de um quartel, informa que “foram encontradas trezentas variantes da Cinderela desde uma do antigo Egipto até à The Little Sacared One dos Índios Americanos.”[4]
A fábula, com fortuna desde o século XVII, veio a conhecer igual glória no setecentismo, e será Bocage um dos seus mais notáveis cultores, seja traduzindo La Fontaine, seja exercendo a sua indesmentível capacidade criativa através de inéditos seus. É o caso do texto seguinte, que transcrevo:

O pássaro prisioneiro
Na gaiola empoleirado,
Um mimoso passarinho
Trinava brandos queixumes
Com saudades do seu ninho.
«Nasci para ser escravo
(Carpia o cantor plumoso),
Não há ninguém, neste mundo,
Que seja tão desditoso.
Que é do tempo, que eu passava,
Ora descantando amores,
Ora brincando nos ares,
Ora pousando entre flores?
Mal haja a minha imprudência,
Mal haja o visco traidor;
Um raio, um raio te abrase,
Fraudulento caçador!
Em que pequei? Porventura
Fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos,
Como o daninho pardal?
Agrestes incultas plantas
Produziam meu sustento,
Inútil aos que se prezam
Do alto dom do entendimento...
Do entendimento! Ah malignos!
Vós, possuindo a razão,
Tendes de vícios sem conto
Recheado o coração.
Ah! Se a vossa liberdade
Zelosamente guardais,
Como sois usurpadores
Da liberdade dos mais?
O que em vós é um tesouro,
Nos outros perde o valor?
Destrói-se o jus do oprimido
Pela força do opressor?
Não tem por base a justiça,
Funda-se em nossa fraqueza
A lei, que a vós nos submete,
Tiranos da Natureza.
Em ofensa das deidades,
Em nosso dano abusais
Da primazia, que tendes
Entre os outros animais.
Mas ah triste! Ah malfadado!
Para que me queixo em vão?
Que espero, se contra a força
De nada serve a razão?»
Aqui parou de cansado
O volátil carpidor;
Eis que vê chegar da caça
O seu bárbaro senhor.
Trazia encostado ao ombro
O arcabuz fatal, e horrendo,
E alguns pássaros no cinto,
Uns mortos, outros morrendo.
Das penetrantes feridas
Ainda o sangue pingava,
E do cruento verdugo
As curtas vestes manchava.
O preso vendo a tragédia,
Coitadinho, estremeceu,
E de susto, e de piedade
Quase os sentidos perdeu.
Mas apenas do soçobro
Repentino a si tornou,
Cos olhos nos seus finados
Estas palavras soltou:
«Entendi que dos viventes
Eu era o mais infeliz:
Que outros têm pior destino
Aquele exemplo me diz.
Da minha sorte já agora
Queixas não torno a fazer:
Antes gaiola que um tiro,
Antes penar que morrer.»

Como vemos, a fábula bocagiana contém os “ingredientes” possibilitadores de leitura interessada e poliédrica. O recorte moralizador é visível e não deixa de ser evidente a acção simples e concentrada. Como o defende Carlos Reis, deve a fábula manifestar uma estrutura e uma funcionalidade próximas do conto infantil, não faltando ainda a vocação ético-moral. Assim nesta fábula de Bocage.

3.4. SÉC. XIX: CASOS EXEMPLARES


O século XIX, até pela força inicial do Romantismo, é um momento de intensa actividade afim ou preparatória daquilo a que se poderia fase de consciencialização da literatura para a infância e a juventude. Desde as lacerações garrettianas na fábula até às escavações estiloepocais nos cancioneiros populares e na tradição (quem esquece a confidência do narrador das Viagens de haver tido uma velha Brígida “contista de histórias da Carochinha”?) efectuadas pelo mesmo Garrett, é impossível não lembrar, sem ordem que não a temporal, pares de nomeação como Guerra Junqueiro (1850-1923) e os Contos para a Infância Escolhidos dos Melhores Autores (1877), Antero de Quental (1842-1891) e o seu Tesouro Poético da Infância (1883), Gonçalves Crespo (1846-1883) e Maria Amélia Vaz de Carvalho (1847-1921) com Contos para os nossos Filhos (1886), Henrique O’ Neill (1821-1890) e o seu Fabulário (1888), Eça de Queirós (1845-1900) e o texto “A Literatura de Natal” das Cartas de Inglaterra (1903) – comparando o que se passava entre nós e o que se passava em Inglaterra a respeito da literatura para crianças, é bem irónico e incisivo aquela queirosiano: “Em Portugal, nada”. -, etc…

3.5. O SÉC. XX E A ACTUALIDADE

Eis alguns nomes fundantes:
ANA DE CASTRO OSÓRIO (1872-1935)
AFONSO LOPES VIEIRA (1878-1946)
VIRGÍNIA DE CASTRO E ALMEIDA (1874-1945)
MARIA LAMAS (Pseud. Rosa Silvestre, 1893-1983)
ANTÓNIO BOTTO (1897-1959)
TERESA LEITÃO DE BARROS (1898-1983)
FERNANDA DE CASTRO (1900-1994)
AGOSTINHO DA SILVA (1906-1994)
ADOLFO SIMÕES MϋLLER (1909-1989) – semanário infantil “O Papagaio”…
RICARDO ALBERTY (1919-1992)
SOPHIA DE MELLO BREYNER (1919-1994)
ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA (1923).
Eis mais uns tantos, dos tempos novos, sabendo-se dos muitos que poderiam ser convocados: Eugénio de Andrade, Álvaro Magalhães, António Torrado, Manuel António Pina, Jorge Reis-Sá, José Jorge Letria...
Alguns conselhos:

Ler as recensões de revistas especializadas (“Malasartes”, “Aprender a Olhar”…), prémios literários, grupos de leitura e intercâmbio, estabelecimento de um cânone, atenção às novidades, …

Valorizar a qualidade: tema, valores, elementos da narrativa, linguagem, ilustração, formato…

[1] Maria Laura Bettencourt Pires, História da Literatura Infantil Portuguesa, Lisboa, Veja, s.d., p. 57.
[2] John Locke, Ensaio acerca do entendimento humano, “Os Pensadores”, São Paulo, Nova Cultural, 1988, cap. II, pp. 22-24.
[3] Para o aprofundamento da influência e presença do pensamento rousseauniano no nosso país, veja-se Fernando Augusto Machado, Rousseau em Portugal – Da clandestinidade setecentista à legalidade vintista, Porto, Campo das Letras, 2000.
[4] Maria Laura Bettencourt Pires, op. cit. , p. 61.

2007-02-11

nine inch nails

um lugar perto da cidade nem sempre é o mar
de gente ou a linha fluida da maxila cantante.

no espaço úbere quentes os corpos os nervos
e até os músculos rangem no subsolo da carne.

aloendros vêm ao coliseu e mesmo uma lua
dita spell germina desconhecida na multidão.

penetrável a arena nem está vazia nem é de feras.

2007-02-10

mar de "mágua"

A José Valle de Figueiredo

enfrentam o mar as madeiras e os interstícios
do olhar mal lobrigam os trabalhos além ocultos.

talvez a névoa inunde o cérebro e o abismo da água
mais não seja do que um abraço fundo fluido sinal
que cobre o ouro dos líquidos fenda a fenda vindo.

o inverno mata o estio do sal e da terra nem um lugar.

2007-02-09

sim




klaus nomi

a floração converge sobre uma cold song
e dos lugares emerge inscrito um nome
estrofe musical que divina é parágrafo
lei vinda da folhagem do belo possível.

cresce o fogo dos lábios como a partitura
entra na carne dos ossos as palavras lava
são. ardentes as paredes esfregam o corpo
e o campo votivo tange na flor da boca.

entre a morte e o esquecimento um rio
um fluxo de pó e líquenes abandonado
caindo incinerado pela memória lenta
contra a bela voz e os cristais fundentes.

nervo sentimental diz nomi, klaus - sempre.

2007-02-08

"arcas da memória" de Alberto Correia


heraclito

claras correndo sem regresso
às águas encosta os olhos os dedos
pé no lodo e outro em pedra macia
o gelo da levada inunda o sangue
e o sussurro e a corrente explodem
a verdade dentro do ouvido fundo.

nunca aqui na mesma água, sabes?

2007-02-07

dentro da sede

dentro do silêncio a lira chora
e o coração bate em arco seco
medindo os atalhos os timbres.

ao tempo o gado recolhe preso
vertendo os cascos no solo seu
unindo-se à noite ao estábulo.

no chão em lume um corpo
deita-se nas folhas no claustro
junto à voz da terra da pedra.

um frémito inunda a página
e as cidades dentro das veias
lembram o espaço sitiado.

não há laje que a luz não fenda
nem fungos dentro da sede.

2007-02-06

artes do Mosteiro


Imagens e artesanato dos Mosteiros de Belém, da Assunção da Virgem Maria e de S. Bruno


Agora também em Lisboa


Na R. Ressano Garcia, 27 - B

(ao Bairro Azul)

A Descendência do Marquês de Pombal


Geração Pombalina – Descendência de Sebastião José de Carvalho e Melo da autoria de João Bernardo Galvão Telles, sub-director do Centro de Estudos Genealógicos e Heráldicos da Universidade Lusíada de Lisboa, é o resultado de um projecto de investigação histórica que aquele Centro vem desenvolvendo sobre a descendência do primeiro marquês de Pombal até aos nossos dias, estando prevista a sua divulgação completa num total quatro volumes.

A obra inclui uma abordagem biográfica do primeiro-ministro de D. José e de todos os seus descendentes, com aturadas informações sobre as actividades que desenvolveram, as mercês e honrarias que grangearam, o património que detiveram e muitos outros aspectos de interesse histórico, social e patrimonial.

Neste primeiro volume desenvolve-se a descendência dos dois filhos varões, num livro de elevada qualidade gráfica, totalmente impresso a cores, que contará com cerca de 500 páginas e perto de 300 imagens provenientes de colecções particulares, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, da Biblioteca Nacional, do Museu Nacional de Arte Antiga, do Museu da Cidade de Lisboa, do Gabinete de Estudos Olissiponenses, do Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa, entre outras instituições. Inclui também numerosos esquemas genealógicos e quadros que completam a informação constante do texto.

Esta iniciativa conjunta do Centro Lusíada de Estudos Genealógicos e Heráldicos da Universidade Lusíada de Lisboa e da Dislivro tem o lançamento previsto para o próximo dia 22 de Fevereiro em hora e local a anunciar brevemente.

Geração Pombalina – Descendência de Sebastião José de Carvalho e Melo - Livro Primeiro pode ser aqui subscrito até ao próximo dia 9 de Fevereiro pelo valor especial de lançamento de 65 euros, sendo posteriormente comercializado a 80 euros.
Com os melhores cumprimentos
Luis Amaral

2007-02-05

arquitextura

a fenda divide o espaço e as águas
correm de novo por sobre as heras
inundando as fontes o ventre da terra.

arrastando os cereais o mel e a cal
os rios correm alados sem destino
lambem o tecto das casas e os frutos.

a folhagem tomba e movimenta-se
efémera morrendo em tapete azul
projectado em arco da mão saindo.

2007-02-04

ocaso

lembram os ossos da casa
os órgãos vivos vibrando
e nem o súbito verão aí
exuma os fumos da noite
o leve terror e os silvos
o ocaso das palavras certas.

2007-02-03

As bibliotecas (escolares): animação e boletim (in)formativo - notas breves sobre um caso concreto", por António Rodrigues Gomes


As bibliotecas (escolares):
animação e boletim (in)formativo

-- notas breves sobre um caso concreto

por ANTÓNIO RODRIGUES GOMES

O presente texto assume-se como despretensiosa reflexão

[sobre uma vertente do trabalho desenvolvido pelo seu autor no Centro de Documentação e Informação (CDI) da Escola Secundária de Emídio Navarro (ESEN), em Viseu]

subordinada ao tema

a (importância da) imprensa escolar colocada ao serviço da animação das bibliotecas escolares/mediatecas”.

Tem como pano de fundo os boletins Contexto publicados no âmbito do referido trabalho[1].

1. A animação é, actuaalmente, uma nota característica de todas as bibliotecas em geral e, com mais razão, das escolares. Num sentido muito amplo, é mesmo essa nota que permite distinguir as bibliotecas de outras “realidades” afins; os próprios documentos reunidos numa biblioteca são, por natureza, “dinâmicos” — mais do que, por exemplo, aqueles que constituem um arquivo

(cujo objectivo principal é criar um conjunto documental que reflicta a actividade e a vida de algum(s) organismo(s)/instituição(s) — seja exemplo o dos Arquivos Distritais — portanto, com vocação muito menor para a “circulação”, se comparado com o acervo documental de uma biblioteca).

Esta distinção, já se vê, tem como referente um tipo ideal de biblioteca — não aqueles espaços caracterizáveis como “armazéns de livros”, que eram modelo há ainda poucos anos mas, felizmente, são espécies em vias de extinção. E se, nas listas bibliográficas dedicadas à área biblioteconómica, a percentagem de documentos versando a organização documental é significativa — não é menos verdade que mesmo esta organização é focalizada amiúde no sentido da circulação dos documentos, sendo este o objectivo de qualquer tratamento documental: garantir aos potenciais utilizadores o acesso

(consulta/utilização),

em condições adequadas, dos recursos existentes

(livros e outros materiais)[2].

2. Num sentido mais restrito, e mais vulgar, a animação compreende as actividades paralelas às que concernem à vida “normal” de uma biblioteca

(designadamente, a gestão dos documentos: o planeamento da sua aquisição, o tratamento técnico — catalogação, classificação, indexação, etc. —, empréstimos...).

A caracterização dessas actividades como “paralelas”

(às tarefas “habituais”)

só em parte é correcta. Na verdade, o seu desenvolvimento não apenas pode potenciar a utilização dos recursos existentes

(seja o exemplo dos espaços do conto, existentes num número cada vez maior de bibliotecas, instrumento óptimo para motivação à leitura),

como supõe uma outra “filosofia de base” das bibliotecas

(sumariamente: a passagem do restrito universo dos recursos escritos para o dos audio-scripto-visuais/multimédia)

e, consequentemente, exige a reformulação dos espaços. As mudanças operadas de há uns anos a esta parte foram tão significativas que se tornou necessário traduzi-las numa nova designação: desde o início, mediateca foi o termo com que se indicou uma biblioteca que, decididamente, optou pela causa dos novos materiais e das novas tecnologias — e pela multiplicação e melhoria dos serviços ao utilizador que elas possibilitam. Os equipamentos informáticos e a Internet não só alteraram muitos processos, tornando-os mais dinâmicos/interactivos

(cabe lembrar a substituição dos catálogos manuais, a possibilidade de acesso imediato, desde os pontos mais diversos e longínquos, à informação bibliográfica e textual/imagética/sonora: a quantidade de livros digitalizados e outros documentos de bibliotecas do mundo inteiro que encontramos, para descarga ou consulta, à distância de um clique!...),

como apoiaram a transformação, acima referida, dos espaços, revitalizando-os com um dinamismo antes desconhecido

(seja exemplo o contraste entre uma biblioteca-lugar-de-consulta e a biblioteca-lugar-de-consulta-e-produção-documental. Esta segunda “imagem” é, sem dúvida, a mais adequada a uma biblioteca escolar, por definição vocacionada para o apoio ao ensino e à aprendizagem — à educação).

Em síntese: não causa qualquer estranheza a presença, no plano de actividades de uma biblioteca, de concursos, comemorações de “o dia de...”, conversas com escritores, acções de formação nos domínios da fotografia ou da utilização de equipamento informático — menos estranheza ainda, as feiras do livro ou as sessões de poesia. O que estranha, cada vez mais, é a sua ausência.

3. Nos diversos números do atrás referido boletim, o Contexto,

(que só pela evidente falta de espaço, aqui, se não anexam)

é fácil detectar o reflexo da transformação que o autor deste texto propôs

(ao Conselho Pedagógico)

e cuja execução coordenou durante três anos lectivos.

A Biblioteca da ESEN era, em 1997/98

(e por razões, algumas, comuns a muitas outras portuguesas, e outras, específicas — não sendo este o local para as analisar),

um espaço... sem vida. O projecto “Por uma biblioteca viva integrada na prática pedagógica; por uma optimização dos recursos educativos propôs-se (re)vitalizá-lo. O processo

(que, é justo ainda que pouco modesto dizer-se, viria a atingir os seus grandes objectivos de “revitalização”)

desenvolveu-se em várias fases

(mais lógicas do que temporais, já que por vezes coexistiram)

e pelo recurso a algumas estratégias bem definidas:

a. prévia reorganização sumária dos recursos então existentes, essencialmente livros, segundo critérios de organização mais actuais

(ao tempo o critério eram as disciplinas ou grupos disciplinares existentes)

e a sua divulgação / formação-dos-utilizadores

(no Contexto n.º 1, por exemplo, publicou-se um texto sobre a CDU – Classificação Decimal Universal, o sistema hoje mais generalizado de classificação de documentos, e um outro sobre A cotação dos documentos);

b. concretização de estratégias de atracção dos potenciais

(mas não efectivos)

utilizadores: diversificação de recursos e equipamentos de acordo com os interesses (sobretudo) dos alunos

[aquisição de equipamento informático com ligação à Internet, de publicações periódicas (incluindo jornais desportivos e revistas de informática acompanhadas por cd-rom com programas), de equipamento audiovisual (tv, vídeo, aparelhagem sonora), etc.],

“conquista” de novos espaços

(para diversificação/melhoria de serviços: por ex., criando lugares de leitura/presença informal),

dotação dos espaços de novo equipamento

(sirvam apenas de exemplo, então inteiramente inovador, os sofás num “espaço de estar” onde uma máquina passou a disponibilizar bebidas diversas — a fim de tornar os locais agradáveis: o Contexto n.º 5 inclui o texto Uma biblioteca à medida do Homem, onde se propõe para as bibliotecas um espaço… humanizado)

lançamento de concursos

(como foi o caso de Ao sabor das letras, in Contexto n.º 1).

O impacto desta “estratégia” exemplificou-se em A partir do 3º período, no Contexto n.º 4;

c. consolidação do processo: início da informatização do catálogo, divulgação da informação

(criação de um site dedicado)[3],

criação de instrumentos de apoio à aprendizagem

(por ex.: o Centro de Estudos — divulgado em Centro de Estudos, no Contexto n.º5 —, com a constituição de dossiês disciplinares contendo textos de apoio, fichas de trabalho, etc.; ou a progressiva colocação na Internet dos catálogos em constituição, enquanto se aguardava a disponibilização da respectiva base de dados).

A avaliação do processo foi ficando escrita em relatórios feitos periodicamente

(e apresentados aos órgãos da Escola)

e um balanço global foi publicado no Contexto n.º 9

(no Editorial Conclusão na 1ª pessoa do singular, nos textos Sumário: trabalho, ócio e partilha e Divagações sobre o Centro de Estudos).

De qualquer modo, as mudanças foram tão notórias que se julgou justificada a alteração da designação — de Biblioteca para Centro de Documentação e Informação. A nova designação, proposta pelo autor destas linhas e aprovada em reunião do Conselho Pedagógico

(refere-se-lhe o editorial Era tempo disso do Contexto n.º 5),

não está isenta de reparos[4] mas pareceu-nos a mais exacta: acentuou-se deste modo o seu carácter coordenador de actividades em áreas diversas

(a biblioteconomia, os audiovisuais, a ligação à Internet, etc.)

e a pretensão de constituir um sítio que centralize e disponibilize aquela informação difícil de localizar em determinados momentos

(pensávamos sobretudo nos alunos: os horários dos transportes seriam um exemplo significativo, porque “transgressor” da ideia tradicional de Biblioteca).

4. O boletim de uma biblioteca/mediateca escolar cumpre as funções supostas nos parágrafos anteriores: documentar as suas actividades, publicitando-as. Mas não se esgotam aí as suas potencialidades de animação — dir-se-ia que nem são aquelas as funções principais. Estruturou-se a ideia de um boletim

(de um Contexto)

em torno das seguintes linhas orientadoras:

a. espaço de divulgação da (e incentivo à) “produção literária” da população escolar

(encontram-se nele múltiplos textos, alguns poéticos, de alunos e professores);

b. instrumento de motivação à leitura

(insistiu-se nos poemas, na primeira página do Contexto)

e à utilização das novas tecnologias

(publicaram-se artigos sobre a Internet)

e de divulgação do livro

(designadamente, através de recensões);

c. instrumento de motivação

(o texto A Alice e a Matemática, no Contexto n.º 6, perspectiva Alice no País das Maravilhas a partir da Matemática)

e apoio à aprendizagem

(nomeadamente, através de artigos sobre a feitura de trabalhos escolares ou sobre métodos de estudo ou técnicas de leitura)

e à promoção do que costuma chamar-se de “cultura geral

(por exemplo, através de artigos sobre as comemorações de datas/a­con­tecimentos, personalidades, etc. — ou de números temáticos, como foi o caso do n.º 7, com dominância do tema Liberdade, a propósito do 25 de Abril);

d. veículo transmissor da fundamentação das transformações operadas/a operar

(no Contexto n.º 4 em Reflexão sobre uma decisão polémica, a tomar, mais dia menos dia propõe-se uma reflexão sobre o livre acesso aos documentos, então ainda em prateleiras fechadas à chave),

desconstruindo algumas “ideias feitas”

[Leitura silenciosa/em voz alta, no Contexto n.º 5, põe em questão a tese de que a leitura/estudo requer silêncio (absoluto); O Direito de não ler, no n.º 6, dá a conhecer os direitos do leitor, na visão de D. Pennac, e questiona a obrigatoriedade de ler];

e. testemunha do quotidiano escolar

(no caso específico, sobretudo devido à inexistência, então, de um jornal de escola).

5. Há questões interessantes/importantes para um boletim de uma biblioteca que aqui escaparão à análise por falta de experiência concreta: a sua relação com o jornal escolar

(insisto: inexistente então, na ESEN),

por ex.. Outras foram só muito levemente tocadas

(não se avançou mais para não correr o risco de desfocagem do tema desta reflexão);

exemplifica-se com a pergunta: que diferenças, em termos de animação

(cultural),

implicam as diferenças entre um arquivo, um centro de documentação e uma biblioteca/mediateca? ou esta: sendo desejável uma ligação forte de todos os (da maior parte dos) serviços da biblioteca à Internet e tendo apostado nessa ligação em outros domínios

(o da colocação de catálogos ou de ajuda aos estudantes na pesquisa documental, por ex. — a que eram dedicadas algumas páginas do site do CDI),

seria desejável

(haveria vantagens em)

ter investido esforços na continuação do trabalho de colocação, iniciada, do boletim no referido site?

De qualquer modo, pensamos que ficou demonstrada a importância, para uma biblioteca, de um boletim

(com carácter meramente informativo ou, acreditamos que de preferência, formativo).

6. Como nota final, são de notar duas pequenas alterações: os 2 últimos números sofreram alteração no aspecto gráfico e a designação do boletim foi… evoluindo

[da inicial boletim informativo da Biblioteca da Escola Secundária de Emídio Navarro passou para boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Emídio Navarro (n.º 7) e fixou-se (a partir do n.º 10) em boletim do c.d.i. da Escola Secundária de Emídio Navarro].

Não parecem descabidos comentários a esses... pormenores. Na verdade, as reacções desfavoráveis em relação à apresentação gráfica estimulam esforços no sentido de, dentro das limitações inevitáveis

(orçamentais, por exemplo),

entregar a profissionais o que aos profissionais compete

(o tratamento gráfico dos primeiros 9 números foi trabalho de um gabinete profissional).

Deve igualmente cuidar-se de que os nomes dos projectos signifiquem, na própria terminologia utilizada, aquilo que pretendem ser, com as funções que pretendem cumprir

(procurou-se que isso acontecesse no próprio título do boletim — Contexto).



[1] O último n.º publicado do boletim tem data de Dezembro de 2000. Na origem da suspensão da publicação estiveram motivos vários; a referência, aqui, a alguns deles seria descabida — mas, de um modo ou de outro, todos estão relacionados com as condições em que trabalham os professores que coordenam as bibliotecas escolares/mediatecas (algumas, verdadeiramente incompreensíveis: seja exemplo o n.º de horas oficialmente atribuíveis a esse desempenho, que é vergonhosamente pequeno).

[2] Ao jeito de nota e desabafo: diz-me a experiência que é ainda frequente os “mais superiores” responsáveis locais pela definição de estratégias (e, sobretudo, pela atribuição/distribuição de verbas) não entenderem ideias tão simples como esta (por exemplo): a informatização de uma biblioteca, sendo inegavelmente importante, só é prioritária se o acesso aos documentos não for fácil de outro modo — e por norma é-o, no caso das “normais” bibliotecas escolares. É claro que há iniciativas que “enchem mais o olho”, mesmo não sendo tão razoáveis e, sobretudo, úteis aos utilizadores “menos superiores”.

[3] Desde muito cedo foi sentida a importância da criação do site do CDI. Serviu como instrumento de divulgação de actividades, de textos de apoio sobre métodos de estudo, do Centro de Estudos, de dossiês como o dossiê do Director de Turma, etc.. Nele estiveram disponíveis para consulta, entre outros recursos, listas bibliográficas das monografias da classe 1 da CDU (Filosofia e Psicologia) ordenadas por temas, por autores e por títulos; o início da lista dos títulos de banda desenhada; recursos diversos relativos a exames e provas globais de várias disciplinas... A aposta na sua criação e manutenção viria a revelar-se adequada, se para tal aceitarmos o critério do número de visitantes; bastante tempo após o autor deste texto ter suspenso a dinamização da biblioteca e a dinamização do site, mesmo não tendo este sido “tocado” em rigorosamente nada sequer publicitado, continuava, em 2002, a ter uma média de mais de 500 acessos semanais (em Maio desse ano, 519).

[4] Os centros de documentação pretendem satisfazer necessidades dos investigadores em matérias específicas, respondendo a necessidades bibliográficas, mas também de carácter científico ou técnico. Não é esta a vocação das bibliotecas, especialmente as escolares.

2007-02-02

da memória as manhãs

a vibração nua dois minutos e uma estrada aberta
com uma pedra no centro e vermes em volta - a luz
e os astros iluminam o palco e a vida dois minutos
de morte como se a memória dos sons não fosse
a emergência dos principais objectos e lugares...

a fábula muda diz-se em dois minutos.

contra, funda a memória as manhãs
a crescente voz que ainda ouço.