2006-04-28

a poetisa Fernanda de Castro, a confeitaria Santa Rita e a cidade de Viseu





Este é um texto sobre os confins da memória. Dita selectiva, substantiva, atenta ao rumor das invulgares figuras que connosco cruzam, sem que se saiba, sem que se inscreva no nosso lexicon de dias assombrados.
Um outro nome que merece convocação, pela importante acção alardeada nessa vertiginosa década de vinte do século anterior e não só, é a figura também esquecidíssima de Fernanda de Castro (1900-1994). Olho só para essa década e vejo nela tanto ter trabalhado e nela ter cumprido o seu período formativo este fulgurante e persistente caso de mulher, que, "de molde mais moderno", como o afirma Gaspar Simões, publica, nesse lapso de dois lustros, obras como os livros de poesia Danças de Roda (1921), Cidade em Flor (1924) e Jardim (1928), com capas de Cottinelli Telmo o primeiro e de Bernardo Marques os dois restantes, saindo ainda nessa década o drama Náufragos (1924-1925?), o livro infantil Varinha de Condão (1924-1925?), em colaboração com Teresa Leitão de Barros, e o romance O Veneno do Sol (1928). Alguma obra se publicou antes e muito mais se viria a publicar depois.
Interessando ao nosso particular somente uma abordagem genérica dos livros de poesia editados por Fernanda de Castro na turbulenta década de vinte, diga-se que neles habita um aroma atractivo do "realismo" de Cesário Verde que lhes confere indenegável força persuasiva, inquestionável valor artístico e evidentes traços de modernidade ( são exemplo os poemas "Cidade em Flor", "Varinas", "Bairros Pobres" e não só...), pese embora a contínua e compresente religiosidade que é estruturante do neo-romantismo lusitanista: " Envolve Deus num longo e doce abraço, / a multidão fiel. / Um gosto a primavera anda no espaço. A manhã sabe a mel. // É a hora em que a fé, na comunhão,/ expulsa os fariseus./ A igreja, agora , é toda um coração./ A manhã sabe a Deus."
Abandono, breve, a poesia, ligada apenas à década de vinte, porque no seu início nos visitou, em Viseu, Fernanda de Castro. Dirijo-me pelos fios da memória para a Pastelaria Santa Rita, felizmente ainda hoje activa e com as suas notas de exemplaridade. Reconto agora aquilo que é possível saber-se pela leitura de um dos livros de memórias de Fernanda de Castro (Ao Fim da Memória. Memórias: 1906- -1939). Adianta a memorialista os profundos laços de amizade que a uniam a Branca de Gonta Colaço, referindo, de seguida, umas iluminadas férias proporcionadas pela filha de Tomás Ribeiro na quinta familiar de Parada de Gonta. Por convite de Tomás Ribeiro Colaço (“-Estamos aqui há quase um mês e que temos nós feito? Comer, dormir, andar por caminhos de cabras e que mais? Alguém conhece Viseu?”), que passava férias com Aninhas, Cristina, Laura Syder e Fernanda Castro aqui bem perto de nós, eis que a decisão de visitar a nossa cidade fica para o dia seguinte. E assim, num sonho de igrejas, monumentos, museus, palácios e casas solarengas, cedo chegaram as dez horas do dia seguinte e a esperada viagem até Viseu.
Procuro reconstruir o celulóide. Estaríamos por volta de 1920, mais ano, menos ano. O grupo de jovens, vindo de Parada de Gonta, estaciona algures na nossa cidade. Perto da Sé ou do Museu? – interroga-se com justiça o amável leitor. Não. Mais uma vez se exerceu a influência do jovem Tomás e o trem de visitantes pára, naquele ano já distante, “à porta da Confeitaria Santa Rita, especializada há mais de um século em doces de ovos, lampreias, trouxas, castanhas, pingos de tocha”, nesses prazeres-sabores se esgotando todo o dinheiro que os jovens possuíam para a semana inteira.
É esta a sina da nossa cidade desde há muito: ser um lugar de encontros de pessoas assinaladas que os homens ditos “de cultura” desconhecem, por não saberem aproximar-se das fogueiras criativas e dos espaços de identidade viseense que nunca deveriam morrer. Que memória de Fernanda de Castro? Que continuidade qualitativa na confeitaria Santa Rita?
Exagerei. Não creio. Com Fernanda de Castro e com a sua poesia, emparceira toda uma família de nomes culturalmente importantes. Cito: António Ferro, António Quadros e Rita Ferro. Não desmerecermos das nossas memórias é uma difícil e importante tarefa.
Olho, por último, para a obra poética da poetisa sobre que falo. Escreve ainda a ilustre senhora nas décadas de trinta, quarenta, cinquenta, sessenta, setenta e oitenta... Não espanta, no entanto, tamanho esquecimento. É preciso falar para a outra face, para o lado de dentro da pele, sem medo do deserto que, como o disse a poetisa, é a habitação do artista “na floresta do mundo”. A paixão, essa, rejeita a visibilidade banal e rejeita o mundo, pertencendo-lhe intimamente nesse canto desertado: “Não queiras a piedade de ninguém. / Faze do teu orgulho uma couraça. / A piedade é uma forma do desdém. / Nunca peças esmolas a quem passa.” Entende- -se?


5 comentários:

Su disse...

gosto de estar aqui no "teu cantinho" e ler.te...ler.te.....

jocas maradas de palavras

isabel mendes ferreira disse...

que bom saber lembrar.....


que bom não aprender a esquecer.



bom dia . beijo Martim.

Anónimo disse...

A memória assim não morre... Bom início de noite...

porfirio disse...

hélas martim
:
assim se reanimam memórias
e surgem
pessoas mais uma vez
.

«Existir não é pensar: é ser lembrado.»
Teixeira de Pascoaes

máxima que se aplica à força toda neste blog.

Anónimo disse...

Boa-noite e bons sonhos. MM.