2014-03-10

LIMIARES DA ESCRITA A «Vida Bohemia (amor e satyra)»: José Branquinho & o descaso


LIMIARES DA ESCRITA 
A Vida Bohemia (amor e satyra): José Branquinho & o descaso
Sulcando os mares da poesia e o peso de mais de um século, resulta estranhíssimo que a mais do que produtiva lira de José Branquinho não seja exalçada pelos sabedores da coisa literária e antes seja praticamente sonegada. Não se entendendo, desde há muito e cada vez mais, a cultura como central energética, não espanta até que alguns dos nossos melhores nomes – e só os de cultura me interessam… - permaneçam pendurados numa qualquer rua, sem outras referências e mobilizadores enquadramentos. Afinal, os nomes mais não são do que meros usos utilitários ao sabor da usura política.
José Branquinho nasceu em Viseu, no ano de 1871, tendo estudado na cidade, por cá cumprindo algumas etapas liceais, antes de entrar na vida ativa como amanuense do Comissariado de Instrução Primária distrital. Dividindo-se a sua atividade profissional pelas cidades de Viseu, Porto e Lisboa, o legado de José Branquinho é todo ele poético e cultural – dispersa permanece ainda uma importante colaboração do poeta em publicações periódicas. Acometido por doença mental, Branquinho, que era revisor do Diário de Notícias, suicidar-se-á em 1916, engrossando um já caudaloso rio de «suicidados da sociedade» com indesmentível genialidade – lembrar Ângelo de Lima, António Gancho ou Sebastião Alba é aqui mero exercício…
Mas esqueçamos o condicionalismo que tantas vezes permeou autores maiores e deixemo-nos levar por esta Vida Bohemia (1901), uma edição da tipografia viseense Folha, que abre sob a alçada de homenagem do Autor a seu Pai, Francisco Gomes de Macedo Branquinho («Se alguma coisa vale ou significa este livro, sejam esse valor e significação testemunho de amor filial, e homenagem ao seu inquebrantável carácter.») e se alonga por rotas de dor e de confissão. Assim acontece com o esclarecido e ominoso primeiro poema, «Eu», que logo parece desvelar o futuro a haver do então poeta nascente:
Como tantos de vós, na minha infância encalma,
Percorri a cantar a estrada da loucura
              Em doce devaneio;
Simples de coração e de ilusões na alma,
              Feita de paz e anseio.
              De esse passado ardente,
De esperanças ideais numa ideal ventura,
Dos sonhos infantis que já não sonho agora,
              Sinto que no meu seio
              A saudade mora!

E segue o poeta por via lacrimosa lembrando o tempo das ilusões e das quimeras, rindo e chorando dos ritos da dor, fingindo como se não fingisse: «E finjo que não amo o que em verdade adoro! / E minto para mim, e rio de mim mesmo!» (explicit do poema «Eu»).
Sem grandes sinais de abismos extrapoéticos, mostra-nos ainda o poeta lugares da cidade de Viseu que todos conhecemos (o Fontelo, o Cemitério, o Rossio…) ou espaços culturais que se querem habitados (Victor Hugo, Augusto Hilário, João de Deus…). Hábil e certeiro, era temível a verve lírica e satírica de Branquinho, como acontece no poema «Sua Ex.ª (Tipos… de fora)», a lembrar, nalguns pontos, o grande Cesário Verde.
Lutando contra as mágoas persistentes, José Branquinho merecia um outro futuro e um outro modo de atenção. Mas quem quer olhar para esta existência que assim vai na levada? [Correio Beirão, nº 7]


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