LIMIARES DA ESCRITA
António Alves
Martins, o poeta e a desgraça
É um lindíssimo objeto estético aquele com que
António Alves Martins inicia a sua obra impressa em livro. Principalmente
poeta, mas também jornalista e diretor editorial (da coimbrã A Galera), o sobrinho do bispo Alves
Martins nasceu em Viseu, no dealbar de outubro de 1894, vindo a falecer, depois
das vivências coimbrãs e lisboetas, nesta mesma cidade a 22 de fevereiro de
1929, vitimado pela tuberculose que o afetava desde há anos. Talvez o burgo mal
o lembre, talvez não o conheça até. E, no entanto, estudou no então Liceu de
Viseu, deambulou e sonhou nas esquinas agudas das ruas da cidade que é seu
berço e influência, bem antes de ter cursado Direito em Coimbra e ter sido
bancário em Lamego, redator do Diário de
Lisboa e escrivão no espaço que o viu nascer.
A coletânea Anunciação,
ilustrada na capa por António Soares e vinda a lume em agosto de 1921,
espalhava desde logo, cataforicamente, o rito dolorido do curso vital – afinal,
o que o poeta anunciava, em matriz neorromântica, era a lassidão e exaustão de tudo.
Com motivos assinalados (ingratidão, saudade, ausência, ansiedade, destino,
mágoa, evasão, inscrição, desengano… ), lugares de eleição (a Senhora da Lapa, Leomil
e a zona do Távora…) e afinidades eletivas literárias (Camilo e Guedes
Teixeira, por exemplo), destaca-se ainda do conjunto poético a injubilosa nota
sobre o país: «ai, que Portugal / é o país da ausência!».
António Alves Martins será sempre um poeta com
inscrição na literatura portuguesa. Multímoda, a atividade do escritor
estendeu-se da tragédia ao mais depurado lirismo, do drama à entrevista (e
Fernando Pessoa foi um dos seus entrevistados…), do academismo à colaboração
crítica e literária, por exemplo. Perseguido pela desgraça da má sorte, um
poeta como Alves Martins não se rende nunca, antes assume aquilo que é: «Enfim,
/ Desculpa, eu sou Poeta: / Só sei escrever assim!» (p. 15).
E quem só sabe escrever assim aproxima-se, no
sentido de Gamoneda, do território do frio onde a poesia conhece o
revigoramento soprado pela morte. Assim nesta «Sina crepuscular» que transcrevo
e o poeta dedicou ao seu irmão Adelino:
Erro,
de incerto. Desconheço o norte.
Dentro
de mim a luz do sol declina!
- Um
cigano vai ler a minha sina:
Estendo
a mão… vou entregar-me à sorte!...
No
vagabundo olhar, como em transporte,
Sonho
a Aventura, a Caravana, a Ruína…
-
Diz-me que tem inspiração divina;
Que
prende a Vida e tem poder na Morte!
Revejo-o
bem: descende de alcateias;
Andou
a monte; incendiou aldeias!...
-
Aberta a mão, vai ler-me o desengano.
Depressa,
a minha sina, oh peregrino!
- Meu
Deus! Como será o meu destino,
Para
viver na alma dum cigano?! (pp. 67-68)
E há um brilho nisto que me entra no olhar. Como não
ouvir a voz do poeta na noite em que o escrevo? [Correio Beirão, nº 6.]
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