2014-03-01

LIMIARES DA ESCRITA: António Alves Martins, o poeta e a desgraça


LIMIARES DA ESCRITA
António Alves Martins, o poeta e a desgraça

É um lindíssimo objeto estético aquele com que António Alves Martins inicia a sua obra impressa em livro. Principalmente poeta, mas também jornalista e diretor editorial (da coimbrã A Galera), o sobrinho do bispo Alves Martins nasceu em Viseu, no dealbar de outubro de 1894, vindo a falecer, depois das vivências coimbrãs e lisboetas, nesta mesma cidade a 22 de fevereiro de 1929, vitimado pela tuberculose que o afetava desde há anos. Talvez o burgo mal o lembre, talvez não o conheça até. E, no entanto, estudou no então Liceu de Viseu, deambulou e sonhou nas esquinas agudas das ruas da cidade que é seu berço e influência, bem antes de ter cursado Direito em Coimbra e ter sido bancário em Lamego, redator do Diário de Lisboa e escrivão no espaço que o viu nascer.
A coletânea Anunciação, ilustrada na capa por António Soares e vinda a lume em agosto de 1921, espalhava desde logo, cataforicamente, o rito dolorido do curso vital – afinal, o que o poeta anunciava, em matriz neorromântica, era a lassidão e exaustão de tudo. Com motivos assinalados (ingratidão, saudade, ausência, ansiedade, destino, mágoa, evasão, inscrição, desengano… ), lugares de eleição (a Senhora da Lapa, Leomil e a zona do Távora…) e afinidades eletivas literárias (Camilo e Guedes Teixeira, por exemplo), destaca-se ainda do conjunto poético a injubilosa nota sobre o país: «ai, que Portugal / é o país da ausência!».
António Alves Martins será sempre um poeta com inscrição na literatura portuguesa. Multímoda, a atividade do escritor estendeu-se da tragédia ao mais depurado lirismo, do drama à entrevista (e Fernando Pessoa foi um dos seus entrevistados…), do academismo à colaboração crítica e literária, por exemplo. Perseguido pela desgraça da má sorte, um poeta como Alves Martins não se rende nunca, antes assume aquilo que é: «Enfim, / Desculpa, eu sou Poeta: / Só sei escrever assim!» (p. 15).  
E quem só sabe escrever assim aproxima-se, no sentido de Gamoneda, do território do frio onde a poesia conhece o revigoramento soprado pela morte. Assim nesta «Sina crepuscular» que transcrevo e o poeta dedicou ao seu irmão Adelino:


Erro, de incerto. Desconheço o norte.
Dentro de mim a luz do sol declina!
- Um cigano vai ler a minha sina:
Estendo a mão… vou entregar-me à sorte!...

No vagabundo olhar, como em transporte,
Sonho a Aventura, a Caravana, a Ruína…
- Diz-me que tem inspiração divina;
Que prende a Vida e tem poder na Morte!

Revejo-o bem: descende de alcateias;
Andou a monte; incendiou aldeias!...
- Aberta a mão, vai ler-me o desengano.

Depressa, a minha sina, oh peregrino!
- Meu Deus! Como será o meu destino,
Para viver na alma dum cigano?! (pp. 67-68)



E há um brilho nisto que me entra no olhar. Como não ouvir a voz do poeta na noite em que o escrevo? [Correio Beirão, nº 6.]

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