2014-03-24

LIMIARES DA ESCRITA - «Novilúnio» (1923) de João d’Almeida - «a régia flor de brancos braços»


 LIMIARES DA ESCRITA -
Novilúnio (1923) de João d’Almeida - «a régia flor de brancos braços»

É uma régia flor que cai da deslembrada poesia de João d’Almeida (1902-1935), escritor de um livro só e outras incisões, nascido ali por Sezures, Penalva do Castelo, no início do século vinte. Contra o bulício da espuma quotidiana, é de «Novilúnio» na mão que lanço estas palavras dentro da crónica. Adiando o tediário, palavra esta que tomo de Murilo Mendes, é com este livrinho, publicado em 1923 na cidade de Coimbra, que rompo, uma vez mais, um silêncio estrondoso – afinal, que hermenêutica literária esta que só trata dos admiráveis sucessos e facilmente esquece os atores menos evidentes?
João d’Almeida fez estudos superiores de Direito em Coimbra, entre 1920 e 1926, publicou no entremeio a coletânea de poemas acima mencionada, tendo integrado, no mesmo ano de 1923, a equipa diretiva da revista «Byzancio», publicação onde colaboraram, entre tantos outros, os reputados nomes de Fausto José, José Régio ou Vitorino Nemésio. Diga-se até, para simplificar, que esta revista coimbrã foi já um aquecimento para a deflagração do movimento presencista que ocorreria meia dúzia de anos à frente. Face ao descaso futuro, continuam a ser  as «Páginas do Diário Íntimo» de José Régio uma forte garantia de salvaguarda da memória de João d’Almeida.
Concluído o curso universitário, viria o poeta penalvense a exercer advocacia em Luanda, cidade onde viria a falecer, depois de ter chefiado a secretaria da câmara municipal local.
Decadentista epigonal, como se comprova, por exemplo, no poema «Ária do Poente»: «sinto-me decadente, e adoro o abismo / do Poente, num desmoronar completo.» Mas outras particularidades se podem destacar em «Novilúnio»: os pensamentos agónicos («E fico agonizando»), as taras psiconervosas e viciosas («Fico a delirar, irrequieto, / preso desta emoção toda histerismo…», as excentricidades e bizarrias multímodas («Ei-la que vem andando, a Grande Dama, / mãos em cálice aberto, sobre o seio…»), a musicalidade e a liberdade prosódica (o recensor Álvaro Maia viria a acusar João d’Almeida de não saber contar as sílabas), a imagética sensualista (rutilista, necrófila, nosológica…: «Templo de ágata», «tenho suores na fronte cadavérica»…) ou ainda os raros vocábulos («quimeral», «longevas», «vesperal», «latescentes»…).
Pintor de poentes rútilos e de desejos febris, outros encantos se desvelam ainda na limitada e estimulante obra de João d’Almeida. Converta-se este memorial em eco do tempo e em palavra perene. Noivável com o presente, a dignidade desta poesia é uma régia flor que assim abraçamos em lamentação profunda por um livro primeiro que não viu segundo. Desterrada como se promete na epígrafe camoniana, é tempo de ouvir a voz da poesia que do chão se levanta:

E na poalha,
a inundar a mortalha,
do sangue de mil feridos, pelo chão,
o Sol é um jovem rei, um rei sem par,
louco de dor, perdido na batalha…
O Sol é D. Sebastião
Morrendo devagar.                                                    [Correio Beirão, nº 9.]



Sem comentários: