LIMIARES DA ESCRITA -
Novilúnio (1923) de
João d’Almeida - «a régia flor de brancos braços»
É uma régia flor que cai da deslembrada
poesia de João d’Almeida (1902-1935), escritor de um livro só e outras incisões,
nascido ali por Sezures, Penalva do Castelo, no início do século vinte. Contra
o bulício da espuma quotidiana, é de «Novilúnio» na mão que lanço estas
palavras dentro da crónica. Adiando o tediário, palavra esta que tomo de Murilo
Mendes, é com este livrinho, publicado em 1923 na cidade de Coimbra, que rompo,
uma vez mais, um silêncio estrondoso – afinal, que hermenêutica literária esta
que só trata dos admiráveis sucessos e facilmente esquece os atores menos
evidentes?
João d’Almeida fez estudos superiores de
Direito em Coimbra, entre 1920 e 1926, publicou no entremeio a coletânea de
poemas acima mencionada, tendo integrado, no mesmo ano de 1923, a equipa
diretiva da revista «Byzancio», publicação onde colaboraram, entre tantos
outros, os reputados nomes de Fausto José, José Régio ou Vitorino Nemésio.
Diga-se até, para simplificar, que esta revista coimbrã foi já um aquecimento
para a deflagração do movimento presencista que ocorreria meia dúzia de anos à
frente. Face ao descaso futuro, continuam a ser
as «Páginas do Diário Íntimo» de José Régio uma forte garantia de
salvaguarda da memória de João d’Almeida.
Concluído o curso universitário, viria o
poeta penalvense a exercer advocacia em Luanda, cidade onde viria a falecer,
depois de ter chefiado a secretaria da câmara municipal local.
Decadentista epigonal, como se comprova,
por exemplo, no poema «Ária do Poente»: «sinto-me decadente, e adoro o abismo /
do Poente, num desmoronar completo.» Mas outras particularidades se podem
destacar em «Novilúnio»: os pensamentos agónicos («E fico agonizando»), as
taras psiconervosas e viciosas («Fico a delirar, irrequieto, / preso desta
emoção toda histerismo…», as excentricidades e bizarrias multímodas («Ei-la que
vem andando, a Grande Dama, / mãos em cálice aberto, sobre o seio…»), a
musicalidade e a liberdade prosódica (o recensor Álvaro Maia viria a acusar
João d’Almeida de não saber contar as sílabas), a imagética sensualista
(rutilista, necrófila, nosológica…: «Templo de ágata», «tenho suores na fronte
cadavérica»…) ou ainda os raros vocábulos («quimeral», «longevas», «vesperal»,
«latescentes»…).
Pintor de poentes rútilos e de desejos
febris, outros encantos se desvelam ainda na limitada e estimulante obra de
João d’Almeida. Converta-se este memorial em eco do tempo e em palavra perene.
Noivável com o presente, a dignidade desta poesia é uma régia flor que assim
abraçamos em lamentação profunda por um livro primeiro que não viu segundo.
Desterrada como se promete na epígrafe camoniana, é tempo de ouvir a voz da
poesia que do chão se levanta:
E
na poalha,
a
inundar a mortalha,
do
sangue de mil feridos, pelo chão,
o
Sol é um jovem rei, um rei sem par,
louco
de dor, perdido na batalha…
O
Sol é D. Sebastião
Morrendo devagar. [Correio Beirão, nº 9.]
Morrendo devagar. [Correio Beirão, nº 9.]
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