LIMIARES DA ESCRITA
Quadros de João Pedro Grabato
Dias em 40 e tal sonetos de amor e
circunstância e uma canção desesperada (1970)
Todos nos lembramos dele e do perfume
diferente que a sua presença infundia. O poeta João Pedro Grabato Dias, noutras
artes (na vida e na pintura), António Quadros, esteve junto de nós,
mergulhando-nos na difícil capacidade da diferença. Mais alto que baixo,
tisnado, de boina basca e muitas vezes de cachimbo, alinhava-se na sua
impecável verticalidade dentro de um fato-macaco azul, o nosso escritor
divisava-se desde logo, ao vento entregando os caracóis transbordantes dos
longos e sobrantes cabelos. A bem dizer, a imagem do poeta nascia das originais
patilhas. Vejo-o todos os dias cruzar a nossa cidade e ele já não está entre
nós. Mas está.
António Augusto de Melo Lucena e Quadros
nasceu em Santiago de Besteiros, a 9 de
julho de 1933, vindo a falecer, por início de julho de 1994, no lugar natal,
com inconclusos sessenta e um anos de idade. Entre os pontos alfa e ómega, o artista
diplomou-se em Pintura pela ESBAP (onde ainda lecionou, preparando-se para um
sonhado doutoramento em Arquitetura), estudou Gravura em Paris, passando a
viver em Lourenço Marques até 1985. Cantado por José Afonso e Amélia Muge, João
Pedro Grabato Dias (também Frei Ioannes Garabatus e Mutimati Barnabé João) é
detentor de uma obra literária desconcertante, vasta e quase sempre genial.
E tudo começou na velha Lourenço
Marques, quando o poeta se viu premiado com o prémio Reinaldo Ferreira 1968 da
câmara local. Eugénio Lisboa explica como tudo se passou: deparando-se com um
poema excecional, o júri do concurso (de que faziam parte, para além de Lisboa,
Rui Knopfli, Orlando Mendes, Eduardo Parreira e Maria de Lourdes Cortez) logo
decidiu da superioridade de um poeta que nunca veio a reclamar o prémio, nem
tão pouco se apresentou – até ao dia em que irrompeu perante si João Pedro
Grabato Dias, agora com rosto social, com um punhado de sonetos que originariam
os 40 e tal sonetos de amor e
circunstância e uma canção desesperada.
Diz Eugénio Lisboa na segunda orelha do livro: «Os sonetos traziam de
novo aquela voz singular ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica,
ironicamente realista, brutal, descabelada, ardentemente bizarra, reveladora de
um mundo fantasmagórico e quase demasiado verdadeiro, traduzido por uma
extraordinária fauna léxica que a um
tempo nos subjuga e desorienta…»
Sem hesitação, reabro o livro e leio e
subjugo-me a um magnífico itinerário lírico que diz:
3
Percorro um
itinerário de palavras
rumo ao
estratificado. Pouso o metro
infantil e
maquinal, o quase incesto
matinal do riso.
Ó puras glabras
endechas
transparentes, do canhestro
inquietante amor
das velhas fadas!
Roçagante festim
de sedas! Searas
ornadas de
despojos do funesto
rir apocalíptico
e dorida
ânsia! Fosse eu
menino ainda, e a dor
só a antiga
sensação carente,
grande avó de
regaço permanente
acolheria o
sono. Hoje, incolor
orfeu de luxo, a
dor é preferida.
Espantosamente em nós, na raiz do
granito das nossas ruas, as palavras dizem o que são, «desde Tomar a Viseu»…
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