2014-03-15

LIMIARES DA ESCRITA Quadros de João Pedro Grabato Dias em «40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada» (1970)


 LIMIARES DA ESCRITA 
Quadros de João Pedro Grabato Dias em 40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada (1970)

Todos nos lembramos dele e do perfume diferente que a sua presença infundia. O poeta João Pedro Grabato Dias, noutras artes (na vida e na pintura), António Quadros, esteve junto de nós, mergulhando-nos na difícil capacidade da diferença. Mais alto que baixo, tisnado, de boina basca e muitas vezes de cachimbo, alinhava-se na sua impecável verticalidade dentro de um fato-macaco azul, o nosso escritor divisava-se desde logo, ao vento entregando os caracóis transbordantes dos longos e sobrantes cabelos. A bem dizer, a imagem do poeta nascia das originais patilhas. Vejo-o todos os dias cruzar a nossa cidade e ele já não está entre nós. Mas está.
António Augusto de Melo Lucena e Quadros nasceu em Santiago de Besteiros,  a 9 de julho de 1933, vindo a falecer, por início de julho de 1994, no lugar natal, com inconclusos sessenta e um anos de idade. Entre os pontos alfa e ómega, o artista diplomou-se em Pintura pela ESBAP (onde ainda lecionou, preparando-se para um sonhado doutoramento em Arquitetura), estudou Gravura em Paris, passando a viver em Lourenço Marques até 1985. Cantado por José Afonso e Amélia Muge, João Pedro Grabato Dias (também Frei Ioannes Garabatus e Mutimati Barnabé João) é detentor de uma obra literária desconcertante, vasta e quase sempre genial.
E tudo começou na velha Lourenço Marques, quando o poeta se viu premiado com o prémio Reinaldo Ferreira 1968 da câmara local. Eugénio Lisboa explica como tudo se passou: deparando-se com um poema excecional, o júri do concurso (de que faziam parte, para além de Lisboa, Rui Knopfli, Orlando Mendes, Eduardo Parreira e Maria de Lourdes Cortez) logo decidiu da superioridade de um poeta que nunca veio a reclamar o prémio, nem tão pouco se apresentou – até ao dia em que irrompeu perante si João Pedro Grabato Dias, agora com rosto social, com um punhado de sonetos que originariam os 40 e tal sonetos de amor e circunstância e uma canção desesperada.  Diz Eugénio Lisboa na segunda orelha do livro: «Os sonetos traziam de novo aquela voz singular ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada, ardentemente bizarra, reveladora de um mundo fantasmagórico e quase demasiado verdadeiro, traduzido por uma extraordinária fauna léxica que a um tempo nos subjuga e desorienta…»
Sem hesitação, reabro o livro e leio e subjugo-me a um magnífico itinerário lírico que diz:
                               3

Percorro um itinerário de palavras
rumo ao estratificado. Pouso o metro
infantil e maquinal, o quase incesto
matinal do riso. Ó puras glabras

endechas transparentes, do canhestro
inquietante amor das velhas fadas!
Roçagante festim de sedas! Searas
ornadas de despojos do funesto

rir apocalíptico e dorida
ânsia! Fosse eu menino ainda, e a dor
só a antiga sensação carente,

grande avó de regaço permanente
acolheria o sono. Hoje, incolor
orfeu de luxo, a dor é preferida.


Espantosamente em nós, na raiz do granito das nossas ruas, as palavras dizem o que são, «desde Tomar a Viseu»… 

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