LIMIARES DA ESCRITA
António da Silva Gaio – o autor do romance histórico «Mário – Episódios das lutas civis portuguesas de 1820-1834» (1868)
«pode nem sempre ser assim», como no poema de e.e. cummings, mas tudo indicia que assim é – o que mais perto de nós se encontra é muitas das vezes o que não vemos, não sabemos ou deslembramos. Que estranho destino este de os naturais de suas terras voltarem a cara, ouvindo sempre mais «um pássaro / cantar terrivelmente longe nas terras perdidas» como ensina o autor de «Tulips and Chimneys» (1923). Mais tarde, o grande e estranhamente esquecido Vergílio Ferreira ensinaria a nossa cegueira relativamente ao entorno mais próximo.
António de Oliveira da Silva Gaio nasceu em Viseu, a 14 de agosto de 1830, vivendo juvenilmente na cidade as atribulações marciais que percorreram o país até mais de meados do século, por cá tendo feito estudos no seminário, vindo a formar-se em Medicina, na Universidade de Coimbra, em 1857, aí permanecendo, como professor, a partir de 1858. Veio a falecer no Buçaco, depois de constantes aprisionamentos, a 8 de agosto de 1870.
Nascido ali pela rua Direita, onde muito perto perderia a visão de um dos olhos em brincadeiras infantis, não é fácil não nos lembrarmos da sua presença evidentíssima. Ainda agora, vindo daquelas paragens, noto em mim um eco percutivo que tudo invade. Afinal, como não termos como emblema aquele fabuloso «incipit» da sua primeira obra literária impressa de título «Mário», nós que tanto apreciamos o espírito dos lugares e os palcos transmigrados para a ficção! Aprecie-se então este motivema literário do capítulo I «Um presbitério na Beira»:
«Conheceis a Beira Alta?
É uma fértil província, portuguesa de lei, que vê, a leste, a serra da Estrela com as suas neves; a oeste, o Caramulo com a sua tristeza; ao sul, o Bussaco de gloriosa memória, e de mística tradição.
É acidentado o solo, sucedendo-se às pequenas ondulações do terreno, as colinas, os cerros e os montes, separados, uns dos outros, por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas.
As cumeadas ou são vestidas de urzes, e de ásperos tojos, ou são toucadas com a rama verdenegra dos pinheiros. Mas tão rica de seiva é toda a terra, que nos lugares em que o machado desbastou o pinhal, vedes logo aparecer a leira verdejante, que irá escorregando pela encosta, até se casar com a farta cultura dos vales.»
A literatura é isto: espanto e aprendizagem. E magna «ciência». Que belos quadros das romarias da Beira pela pena de Silva Gaio! Que bela aproximação a Viseu a partir da quinta de S. Caetano!
Tomás Ribeiro, que foi amigo de António Silva Gaio, assim se refere ao romancista: “amava a vida, era namoradeiro, eloquente, corajoso e temerário, ao ponto de se bater em duelo, em 1854, com Filipe do Quental, por um motivo fútil”.
Nada fútil, este romance é um claro recado ao coração. [Correio Beirão, nº 10]