2007-10-05

"Da fímbria de Aquilino Ribeiro", por Paulo da Costa Domingos


Amanhã – e por mim, por nós (frenesi), nada obsta – vão descarregar os ossos do escritor e carbonário Aquilino Ribeiro no Panteão Nacional. Nem pelo símbolo, mas pelo espaço a ir ocupar, preocupa-nos se ainda lá cabe. Outrossim, há a levar em conta o que a ética obriga a projectar-se no mundo físico, sendo que figura cultural de um tal gabarito nunca deveria ser deixada às portas da Eternidade posto na horizontal, mas sim da crosta para o centro da Terra, jus se lhe faça à verticalidade. À boa maneira dos astecas: que sempre dará para meter mais um. Assente é, ainda, o facto que, mesmo depois de mortos, os génios, de sua natural tendência, incham e tendem a invadir também os baldios mediáticos anteriormente tribuna de carolinas-ó-i-ó-ai, ineses-pirosas, chutos-&-pontapés, quins-barreiros, joões-botelhos, coelhos-à-caçadora, inomináveis funcionários da política, belmiros, joes, jardins, figos, bentos-com-tranquilidade, floribelas, lilis-bucelas, etc… Será?… Não! não é verdade, estava só a brincar. Estas marionetas do arrivismo consumista nunca desbancam, nem quando é evidente dever citar-se alargadamente valores autênticos!… Aliás, os empregados mediáticos (essa coisa nauseabunda a fingir-se neutra – deontologia oblige –, como se aquilo que eles têm na conta de notícia, de per si, dos males globais do mundo não fosse desde logo escolha do exacto ponto de vista unidimensional apropriado a entreter as massas com fumaça!) fazem vida de promover à laia imoderada e com igual, senão mais, destaque as sujeiras de par com os triunfos das sociedades, julgando-se, assim, arautos do sistema democrático… Ou serão antes, se tanto, uns paus-mandados?
Talvez, num flash, um antigo sonho nosso se realize amanhã: ver os cabeçalhos das primeiras páginas, as aberturas dos noticiários, as capas das revistas, os boletins paroquiais e sindicais, inundados pela foto e as gordas alusivas ao escritor, e carbonário, Aquilino Ribeiro…… Fazendo regredir a segundo plano a comissária de polícia que, indo à Baixa convencida de ir comprar algum louvor à pala dos lelos dos relógios marados e do haxixe, só encontrou dissabores: louro moído e prensado com merda nem de camelo, e umas velhas e blenorrágicas carcaças a angariarem na mamada uns dinheiritos para a renda do quarto e para a conta no Minipreço, sem chulo, sem referências legislativas (de semi-analfabetas que são todas), pés inchados, uns trambolhos dentro de joanêticos sapatos cambos, pintura remelosa, cheiro a sopa azeda. Afinal, ali, catando os tostões em sobra na insolvência e na injustiça distributiva do Fundo Nacional de Pensões.… Fazendo recuar à sua ínfima importância, neste mundo de violência física e psicológica e de roubo institucional, o folhetim diário do capuchinho-vermelho desaparecido nas sendas orgíacas pedófilas ou barbitúricas, ou ambas, do lobo mau.… Fazendo desandar da ribalta tanto cagão doutorado pelo paradigma das universidades à portuga, com umas gravatas de seda que não lembrariam ao careca, e que são emblema de certas ratazanas do interior, filhos-família de uns pais indescritíveis cujos lucros da venda de hortaliça e ovos do campo lá foram dando para o menino ir estudar para a cidade.… Fazendo as marias-elisas e as fátimas-campos-ferreiras interromperem por instantes uma prestação de serviço descaradamente dedicado à obediência, à família, à pátria, ao exército e forças policiais, à superstição religiosa, à ordem reinante – à estupidez, em suma.… Desfazendo a razão de ser reaccionariamente normativa e desinformativa dos jornais "grátis" que inundam os passeios públicos, reduzido pela população a lixo o lixo jornalístico e o crime ecológico de deflorestação que, por seu turno, eles veiculam e de que são directos co-responsáveis. –Eis a alta expectativa que um simples trânsito de ossos pode fazer-nos acalentar, confirmando o perigo transgressor daqueles que, mui correctamente, tomam os seus sonhos pela realidade. De amanhã. E mais desejamos, a contento de gregos e troianos: se espaço houver – não o simbólico: o outro –, vá de perfurar ainda uns poços, dê-se aí guarida, na vertical, da crosta para o centro da Terra, por que não?, à Severa (a sua sífilis, agora já não infectará o convívio), à Hermínia Silva (também nesta o baixo nível linguístico já ninguém incomodará), ao Joaquim Agostinho (o seu incessante pedalar pode até servir de ventoinha aos corta-fitas), ao Matateu (convém à pluri-racialidade),… Sei lá!… Ao Toni-dos-bifes, ao Rei-das-farturas-do-parque-Mayer, à zarolha do fundo da Rua da Barroca, ao conde Andeiro, ao João Franco, ao Diogo Alves, ao Alves dos Reis, ao Camilo Alves, ao Salazar, etc., etc., etc. Finalmente, bem medidinho o espaço – não o simbólico: o outro –, bem apertadinhos os furos, não se esqueçam de lugar a João César Monteiro, a Angelina Vidal, a Emídio Santana, a Camilo Castelo Branco, a Eça de Queirós, a Maria da Fonte, a Rafael Bordalo Pinheiro, a Fialho de Almeida, a Júlio César Machado, a Cavaleiro de Oliveira, a Francisco Manuel de Melo, à padeira de Aljubarrota, a António Serrão de Crasto, a Ribeiro Sanches, a Damião de Góis, a Josefa de Óbidos, a Uriel da Costa, a Iehudah Abrabanel… – Cenotáfios para toda a gente! A ver veremos então se já nos será possível cuidar dos vivos.


Paulo da Costa Domingos (in http://www.frenesi-livros.blogspot.com/)

5 comentários:

lourenja.blogspot.com disse...

Há mais marionetes, mas eles é que gozam a vida,pois fazem o que gostam...

pn disse...

A chamada azia fodida.
Kompensan...
Kompensan...

Anónimo disse...

Há muito que não li assim um texto tão corrosivo e irónico... Grande palavra de um grande poeta... que aqui reencontro fora da poesia. Abraço...

isabel mendes ferreira disse...

e um beijo.


para festejar.


:)

martim de gouveia e sousa disse...

caro pn, paulo da costa domingos é um fabuloso poeta e um fantástico editor. o texto publicado é uma peça em alto lugar. o mais, mera circunstância. em antologiadoesquecimento.blogspot.com diz-se:

Paulo da Costa Domingos nasceu em Lisboa, em Setembro de 1953. Estreou-se em 1972 com Palavras, título retirado do mercado. Alguns dos seus primeiros livros, tais como Gogh Uma Orelha Sem Mestre (1975) e Asfalto (1977), inicialmente publicados pela &etc, têm sido alvo de novas versões, saídas na Frenesi, casa editorial da qual o próprio é editor. Publicou ainda sob os pseudónimos de Celeste Viriato, Eva Blush’ô e Eva Ruivo. Em 1987 organizou, com Al Berto e Rui Baião, a antologia Sião. Colaborador em várias revistas, como a Pravda. Revista de Malasartes, Hífen, Tabacaria, Canal e Bíblia, salienta-se a edição, em 1995, de Carmina – 1971-1994, pela Antígona, onde reviu e reuniu a sua produção poética anterior. Mais recentemente, publicou o volume Nas Alturas (2006).