0. Um tanto à maneira de Paul de Man[1], gostaria de dizer, nesta abertura ainda solene, que todo o interesse que manifestamente tenho (ou penso ter) pela circunstância e coisa literária – e o mesmo é dizer pela crítica, ensino e “ciência” dela- me advém dos textos literários, dos textos primários, que recriam fulgurantemente uma matéria-prima chamada língua.
No passo seguinte, afirmo também que nós, alunos, professores e formadores, vivemos da e para a literatura e nem sempre na literatura, ainda que por lá possamos andar, sempre que “escritores” ou “leitores de dentro”. As duas primeiras palavras prepositivas sugerem uma via profissional e um missionarismo pouco integráveis na genialidade literária; ao contrário, a última inocula uma familiaridade, um laço essencial, do foro compositivo e hermenêutico que não pode ser denegado – e a criação subjaz sempre ao textos críticos, segundo penso, não sendo apanágio privilegiado da literatura e dos seus modos. Tal questionação da interioridade e da exterioridade literárias coloca em crise, pelo menos no segundo caso, a possibilidade do ensino da literatura[2], que deve ser lida como artefacto mostrativo.
Muitas das vezes, o didactismo literário arvora-se (alguém por si, diga-se) em “saber absoluto” que não deixa lugar para a interrogação, não valendo aqui desenvolver casos sobre crianças e jovens que pouco privaram com as obras de arte literárias e muito leram de súmulas e esquemas didácticos, com manifesto proveito escolar, que não outro. A literatura luta, assim, contra o fictivo resultado escolar. Mas, pergunto-me eu, a quem serviram essas ensaboadelas nas margens da “coisa literária”? Saberemos nós, professores, distinguir, no acto avaliativo, o leitor de literatura e o leitor de paráfrases e esquemas? Saberemos nós ser ou ficar-nos-emos pelo parecer? Não será fraude intelectual falar do que não se leu? Poderá alguém, por exemplo, falar com propriedade de uma obra musical sobre a qual tão só leu mas nada ouviu? Terão essas crianças e jovens, que não leram o objecto literário e que obtiveram prémio avaliativo, crescido e ganho competências de leitura e de inferências dela?
Foi um Giordano Bruno (Nola, 1548-Roma, 1600), que pagou com a vida o apego à urgência do pensar, quem colocou este problema do totalitarismo sapiencial de forma límpida. Diz o filósofo italiano, personalidade coeva de Gonçalo Fernandes Trancoso de que falarei à frente, tipificando essa epidemia cultural do “parecer”: “Espíritos sórdidos e mercenários, que, pouco ou nada preocupados com a verdade, se contentam com saber aquilo que geralmente é considerado o saber, pouco amigos da verdadeira sabedoria, sedentos de fama e do desejo de ser considerados na posse daquela, ansiosos por parecer, pouco se preocupando com ser...”[3] . Aliás, ainda recentemente, em polémica cultural que sazonalmente varre o nosso país, uma Rita Ferro, pese embora todo o peso intelectual, especializante e institucional de Carlos Reis, sustentou ler Os Maias de forma diversa da do Professor de Coimbra e nada ligar à sua exegese esquemático-didáctica.
Nada interessa, pois, um didactismo castrador, muito interessando uma didáctica mostrativa, que permita, na subjectividade construtiva de cada leitor, um mais amplo conhecimento do sangue das palavras, que é, em imagem influenciada, sem angústia, som e fúria, imagem e cor, perfume e vulcão da pele. Desta promoção das palavras ao rigor dos sentidos, resulta uma clara presença da vertente didáctica e paidêutica do texto literário, o que é corroborado, por exemplo, por Luísa Dacosta, quando, há alguns anos atrás, disse que Sá de Miranda, Nicolau Tolentino, Cesário Verde, Camilo Pessanha e Cecília Meireles lhe ensinaram a usar “muitas vezes a palavra pelo som, pela visualidade, pela cor, pela textura, peso ou leveza”. [4] Esta transmissão primigénia e anterior, esta atenção à música das palavras e à força presente nas obras literárias, resulta de um amor que nos acompanha desde o berço e desde aí se firmou em adesão afectiva. Ler passa a ser, desde então, respirar.
1. A literatura para crianças e jovens é uma “ilha fantástica” à qual é preciso chegar. Importa que o leitor cedo parta, interessa que o educador olhe distante e sempre vigilante. O estímulo é a palavra certa sobre um mundo que o jovem sorveu voraz. O pequeno leitor escolhe a sua ilha, ele que consigo transporta uma “ilha” de sortilégio. O adulto deve ele próprio interessar-se e falar das suas leituras e sugerir outras rotas e deixar-se arrastar pela força das águas da curiosidade que existe em cada ilha e em cada criança já nessa “ilha fantástica”. O resto, nova partida, outras chegadas, é tão-só a pulsão de uma leitura enraizada, próxima da respiração, que diz no cólofon de cada texto que vale a pena partir e que várias serão as chegadas, se valer a pena chegar.
Baralho e dou de novo, repetindo. A textura física e semântica da palavra ‘ilha’ é facilitadora, desde logo, desta ligação ao mundo infanto-juvenil, nomeadamente pela sugestão directa do fantasioso e do quimérico, qualidades que enformam o mundus de crianças e de jovens. Mas não só. A ilha é sonho e sofrimento da literatura de todos os tempos e lugares. Provoca ainda um espaço de evocação que é halo de mistério indenegável. Tal tonalidade penumbrosa e estranhizante–cativante é apanágio da homérica ilha dos Ciclopes, da fugaz ilha de Topázio da História Natural de Plínio ou da consabida e desafortunada ilha Perdida de que nos fala, verbi gratia, Gil Vicente. E depois há toda uma atmosfera sinistra em muitas delas, seja pelo perigo dos seus contornos, seja pela tectónica vulcânica, que indubitavelmente nos leva ao “pestanejamento” de Georges Steiner – como não lembrar, num misto de terror e de pulsão, a platónica e infeliz ilha Atlântida, a ilha-namorada do capitão Nemo d’ A Ilha Misteriosa de Júlio Verne ou a fantástica ilha de seres impensáveis de The Island of Doctor Moreau (1896)?
Sem corte, com sutura, vemos ainda nessa palavra ‘ilha’ um nimbo de superioridade e de força mágica. E, de facto, em ilhas nasceram notáveis seres mitológicos como o cretense Zeus, a citéria Afrodite ou o brilhante Apolo, natural de Delos. Imaginárias umas vezes, mais reais noutras, paradisíacas algumas, infernais umas quantas, quem resiste ainda aos encantos da mediévica ilha de Avalon, fiel depositária do rei Artur, ou a tantas recriações insulares da literatura de todos os tempo e lugares? Quem permanece indemne a esta atmosfera que paira no ar à espera do nosso sonho?
A literatura é esse sonho. É nessa senda que se despenham criador e eco da coisa criada. E a ilha, essa fulguração de atracção e superação, em toda a obra habita como um corpo totalizador. Assim acontece com a literatura “pairadora”, colhida nas vozes reprodutoras, em caldeamento oralizante, com muita produção que gente miúda e gente graúda não deixa de conhecer, por leitura directa ou por incorporação ocasional. Cito ainda, neste movimento motivemático, outras ilhas e outros voos com palavras aladas. Sem exaustão, vem à memória a ilha Utopia da homónima de Thomas More e os seus habitantes bem educados, vivendo comunitariamente e infensos à dor pela eutanásia, nesse não-lugar habitável pelo poder da imaginação. Neste contexto de utopismo insular, chamo também à colação a Cidade do Sol, ideada por Campanella em 1602, na mítica Taprobana, ou, em matiz similar, a ilha de Bensalém de New Atlantis (1627)de Francis Bacon.
É de ilhas e de conquistas que vou falando. Avanço. Um livro que fácil e prazenteiramente foi conquistado por crianças e jovens, pese embora o seu tom filosofante, foi aquele livro que conta a história do fantástico Robinson Crusoe e que Daniel Defoe publicou em 1719, com as aventuras de Selkirk na ilha de Juan Fernández. Outras ilhas existem: a “ilha Namorada” de Camões, as ilhas encantada e do Pranto do Orlando Furioso (1516) de Ariosto. Fantásticas e infungíveis são ainda as aventuras de Gulliver nas ilhas Balnibarbi, Blefescu, Laputa, Liliput e Luggnagg, tão de todos, da autoria de Jonathan Swift. É também o viseense João de Barros, na sua Crónica do Imperador Clarimundo (1522), quem abre o caminho ao fantástico e ao possível com as suas ilhas do Abismo, afumada, do Alto Pináculo, Abundante, Bem-Aventuradas, Deleitosa e outras. E nem poderá faltar aqui, nesta incursão rápida pelo motor insular de mundos possíveis a haver, a possibilidade que Cervantes reserva ao seu Pança de poder governar a ilha da Barataria. É este o poder das palavras no turbilhão da imaginação.
2. O tema da criança e a sua ideia como evasão ou passado obsidiante, como crítica ou ponto nodal do desenvolvimento, têm a idade da palavra e o afecto da literatura de sempre. Não há autor, nem leitor que o desmintam. E, de facto, desde a aparentemente longínqua Comédia de Rubena (1521) de Gil Vicente – dramaturgo que jubilosamente celebro aqui na juventude dos quinhentos anos do seu Monólogo do Vaqueiro– até incrustações posteriores que passam por Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, pelas confissões maravilhadas de Almeida Garrett a respeito dos velhos tempos de criança ouvindo as encantadas histórias da criada idosa; pelo desencanto de Eça de Queirós nas Cartas de Inglaterra ao reparar que um vazio de acção recobria a actividade editorial no nosso país no respeitante à literatura infantil; chegando-se, por último, a toda a tematização de ambiências infanto-juvenis e adolencentes que percorre a nossa literatura portuguesa do século XX e dos tempos novos. E lembro, por exemplo, romances de formação como Uma Luz ao Longe de Aquilino Ribeiro ou Manhã Submersa de Vergílio Ferreira; recordo ainda o mergulho na infância e na adolescência levada a cabo pela maior parte dos escritores presencistas e afins (Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Tomaz de Figueiredo, Marmelo e Silva...); avoco também, nesta perquirição pelo mundos criados de incidência infanto-juvenil, os sentidos poemas dedicados às mães[5] ou destas decorrentes em emoção (de um Fernando Pessoa: “Lá longe, em casa, há a prece: / <> / (Malhas que o Império tece!) / Jaz morto, e apodrece, / O menino de sua mãe.”; de um Almada Negreiros: “Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade.”; de uma Judith Teixeira: “Fecha a janela, Mãe! Vem-me cobrir. / Mãe! sinto frio, até no teu olhar! // Mãe! quero regressar – voltar ao Nada - / e perder-me na grande Escuridão!”; de uma Florbela Espanca. “Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste? / Entre agonias e em dores tamanhas / Pra que foi, dize lá, que me trouxeste”; de um Sebastião da Gama: “Pra que o dia fosse enorme, / bastava/ toda a ternura que olhava / nos olhos de minha Mãe...”; de um José Régio: “Já tenho três maços, Mãe, / Das cartas que tu mês escreves / Desde que saí de casa...”; de um Vergílio Ferreira: “Espera aí ainda um pouco. Ouve aí. É um momento. / Agora que viraste costas definitivamente / e arrumaste a vida, para ires ter com o velho Pai, / que eu estou a ver daqui já impaciente pela demora, / veio-me uma necessidade bruta de te dizer duas coisas / que nunca calhou dizer-te.”; de uma Maria Judite de Carvalho: “Inventei-te para mim nocturna e mansa / e dei-te o olhar negro e tão parado / com que velavas meus sonhos de criança / sem estares ao meu lado”; de um Eugénio de Andrade: “Não me esqueci de nada, mãe. / Guardo a tua voz dentro de mim. / E deixo-te as rosas. // Boa noite. Eu vou com as aves.”; de uma Maria Alberta Menères: “Mãe rosa desnudada / pétalas de sangue evoluído / ficou a tua onda ondeada / Mãe do rosto dormido?”; de um José Manuel Mendes: “eras a mais pura fala / do silêncio: / rumor; manhã / nas nervuras / da folhagem”; de um Vasco da Graça Moura: “E não queria ser vista e foi envolta / num lençol branco em suas dobras leves. / Pus junto dela algumas rosas breves / e a lembrança represa ficou solta”; de um António Franco Alexandre: “Vejo a pequena terra em que nasci / o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa / o rosto de minha mãe”; de um Luís Miguel Nava: “De astros / as ruas eram cheias que os cuspiam hoje / na minha mãe de outrora, nas crianças de água”; e, por último, desse fugidio cometa das nossas letras, de nome Daniel Faria, que os tempos encaminharão para lugar central na literatura portuguesa, e que diz como só ele poderia dizer esse fascínio de lugar temático que é a presença da mãe como sujeito e objecto literário do nosso imaginário: “O filho é o carrossel à volta da mãe / O carrossel no coração da mãe / A luz dos carrosséis e a música / E leva a mãe no seu cavalo.”).
3. Em 1894, Stéphane Mallarmé realizou, em Oxford, uma conferência que deveio célebre. Refiro-me à consabida “La Musique et les lettres”. E as primeiras palavras do notável poeta não deixam de ser apelativas. Cito: “Trago-vos com efeito notícias. As mais surpreendentes. Nunca se viu coisa assim. Mexeram no verso... On a touché au vers.”[6]
Assim modestamente vos digo eu também trazer notícias surpreendentes sobre um autor de nome Gonçalo Fernandes Trancoso, quase desconhecido, que nos obriga a algumas arrumações no âmbito da literatura para a infância e juventude e não só. E se tal acomodação pode passar pelo estabelecimento do termo a quo da literatura para gente mais nova a partir de si, avanço ainda que as suas histórias escritas no quinhentismo português são produtos literários de proveito e exemplo à espera da curiosidade dos mais diversos leitores.
Mas, quem foi Gonçalo Fernandes Trancoso, para que valha a pena falar dele? Nascido em finais da segunda década do século XVI, provavelmente em Trancoso, sabe-se pela sua obra mais conhecida (1575) que morou em S. Pedro de Alfama. Vivendo em Lisboa ao tempo da peste de 1569, só a custo resistiu ao cataclismo que lhe dizimou a família: “perdi no terrestre naufrágio uma filha de vinte e quatro anos, que em amor e obras me era mãe; um filho estudante; um neto moço do coro da Sé. E para mais minha lástima, perdi a mulher, que por suas virtudes era de mim amada, o que foi causa de grande tristeza minha.”[7]
A tragédia moral que por sobre si se abateu espoletou-lhe o gosto pela redacção de contos, que, influenciados pela tradição italiana de Boccaccio e Sacchetti, entre outros, bem como pela oratura nacional, lhe serviam “por fugir daquelas tristezas”.
A popularidade da sua obra é bem visível na justa e bem merecida fama que conquistou, tendo sido um dos escritores mais lidos do século XVI ao século XVIII, espaço temporal em que imprimiram dezasseis edições, o que atesta a adesão de público aos seus contos exemplares e apotegmáticos com as raízes atrás assinaladas e natural decorrência do quatrocentista Orto do Esposo.
Não obstante as vozes dissonantes, parece-me certo que estes contos de Trancoso, até pela adjectivação que promovem (populares, edificantes, sobrenaturais, vivazes, originais, curiosos, singelos, fantásticos...), devem ser inseridos na fase formativa da chamada literatura para a infância e a juventude. Aliás, relembro um aspecto biográfico que não mencionei que se prende com a possibilidade de ele ter sido preceptor de meninos e mestre de Humanidades (Latim e Retórica) e que certamente terá interferido na sua criação literária.
Inaugurador entre nós do conto e, segundo João Palma-Ferreira, “caso único na literatura portuguesa do século XVI”, a influência de Gonçalo Fernandes Trancoso terá sido tal que no Brasil chamam “histórias de Trancoso” àquilo a que nós chamamos “histórias da Carochinha” e, no primeiro quartel do século XX, um Agostinho de Campos di-lo “o avô rústico que conta histórias aos meninos”.
João Gaspar Simões vê em Trancoso “um autêntico aedo popular”, contribuindo para o seu carácter atractivo a simplicidade de redacção, a coordenação predominantemente sindética, a utilização de provérbios e anexins, bem como o ingénuo realismo.
Coevo de um importantíssimo conjunto de vultos literários (Camões, Bernardim, Cristóvão Falcão, Sá de Miranda, António Ferreira, Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz, Gil Vicente, João de Barros, Diogo do Couto, Damião de Góis...), o que justifica, até certo ponto, a sua ocultação, Gonçalo Fernandes Trancoso virá a falecer no penúltimo lustro do século XVI.
4. Como atrás disse, trago-vos notícias surpreendentes: Gonçalo Fernandes Trancoso é o nosso primeiro ficcionista utilitarista e cibernético (de acordo com o grego, κυβερνητική, cibernética, é a arte de governar os homens), com um inusitado vezo de “observação psico-social”. Próximo da ambiência criada por Gil Vicente, dele se destaca pelo teor paidêutico e directivo. Mas debrucemo-nos, para terminar, sobre um dos seus contos e destaquemos nele algumas qualidades que o tornam inserível no âmbito da literatura para gente mais nova.
Como se sabe, o conto, pese a sua antiguidade e peso tradicional, só adquire configuração literária no século XIX. Até aí a fluidez entre o oral e o literário era indesmentível. Tal facto só abona Trancoso, tanto mais que ele supera influências e incorporações folclóricas por uma originalidade que não pode ser denegada. E assim poder-se-á dizer que o conto autoral português nasce com Gonçalo Fernandes Trancoso – na sua criação contista encontramos já as características do conto moderno, e falo do halo fantástico, da estrutura febril, nervosa e breve, e das descargas emocionais por si provocadas, num processo de concentração que confere ao texto uma matização semipoética.
O investigador francês Marc Soriano defende ser a literatura a juventude um tipo de comunicação entre um locutor ou um escritor adulto e um destinatário criança. Não parece que o espírito de Trancoso descurasse essa particularidade, como o corrobora, por exemplo, o já citado Agostinho de Campos. E se pensarmos na tentativa de definição do literatura infanto-juvenil por parte de Judith Hillman, vemos que ela, no que diz respeito ao conteúdo, sugere o perspectivismo infanto-juvenil, a incipiência caractereológica, a intriga simples com centramento na acção, o happy-end e a mistura do real com o fantástico; já no atinente à qualidade, e ainda segundo a mesma autora, deverá ela estar presente como factor preponderante do prazer do texto. A necessidade do preceito qualitativo já fora enunciado trinta anos antes por Sophia de Mello Breyner em entrevista ao Diário de Lisboa. Trancoso tem, neste sentido, uma evidente qualidade.
O conto em que vou pegar, o décimo, integra-se, de acordo com a proposta de Câmara Cascudo, nos chamados contos de exemplo, sofrendo ligeira nuance se se adoptar a classificação de Michelle Simonsen que prescreve para este tipo a designação de conto moral ou filosófico. Transcrevo o conto, para que conste:
CONTO X
No passo seguinte, afirmo também que nós, alunos, professores e formadores, vivemos da e para a literatura e nem sempre na literatura, ainda que por lá possamos andar, sempre que “escritores” ou “leitores de dentro”. As duas primeiras palavras prepositivas sugerem uma via profissional e um missionarismo pouco integráveis na genialidade literária; ao contrário, a última inocula uma familiaridade, um laço essencial, do foro compositivo e hermenêutico que não pode ser denegado – e a criação subjaz sempre ao textos críticos, segundo penso, não sendo apanágio privilegiado da literatura e dos seus modos. Tal questionação da interioridade e da exterioridade literárias coloca em crise, pelo menos no segundo caso, a possibilidade do ensino da literatura[2], que deve ser lida como artefacto mostrativo.
Muitas das vezes, o didactismo literário arvora-se (alguém por si, diga-se) em “saber absoluto” que não deixa lugar para a interrogação, não valendo aqui desenvolver casos sobre crianças e jovens que pouco privaram com as obras de arte literárias e muito leram de súmulas e esquemas didácticos, com manifesto proveito escolar, que não outro. A literatura luta, assim, contra o fictivo resultado escolar. Mas, pergunto-me eu, a quem serviram essas ensaboadelas nas margens da “coisa literária”? Saberemos nós, professores, distinguir, no acto avaliativo, o leitor de literatura e o leitor de paráfrases e esquemas? Saberemos nós ser ou ficar-nos-emos pelo parecer? Não será fraude intelectual falar do que não se leu? Poderá alguém, por exemplo, falar com propriedade de uma obra musical sobre a qual tão só leu mas nada ouviu? Terão essas crianças e jovens, que não leram o objecto literário e que obtiveram prémio avaliativo, crescido e ganho competências de leitura e de inferências dela?
Foi um Giordano Bruno (Nola, 1548-Roma, 1600), que pagou com a vida o apego à urgência do pensar, quem colocou este problema do totalitarismo sapiencial de forma límpida. Diz o filósofo italiano, personalidade coeva de Gonçalo Fernandes Trancoso de que falarei à frente, tipificando essa epidemia cultural do “parecer”: “Espíritos sórdidos e mercenários, que, pouco ou nada preocupados com a verdade, se contentam com saber aquilo que geralmente é considerado o saber, pouco amigos da verdadeira sabedoria, sedentos de fama e do desejo de ser considerados na posse daquela, ansiosos por parecer, pouco se preocupando com ser...”[3] . Aliás, ainda recentemente, em polémica cultural que sazonalmente varre o nosso país, uma Rita Ferro, pese embora todo o peso intelectual, especializante e institucional de Carlos Reis, sustentou ler Os Maias de forma diversa da do Professor de Coimbra e nada ligar à sua exegese esquemático-didáctica.
Nada interessa, pois, um didactismo castrador, muito interessando uma didáctica mostrativa, que permita, na subjectividade construtiva de cada leitor, um mais amplo conhecimento do sangue das palavras, que é, em imagem influenciada, sem angústia, som e fúria, imagem e cor, perfume e vulcão da pele. Desta promoção das palavras ao rigor dos sentidos, resulta uma clara presença da vertente didáctica e paidêutica do texto literário, o que é corroborado, por exemplo, por Luísa Dacosta, quando, há alguns anos atrás, disse que Sá de Miranda, Nicolau Tolentino, Cesário Verde, Camilo Pessanha e Cecília Meireles lhe ensinaram a usar “muitas vezes a palavra pelo som, pela visualidade, pela cor, pela textura, peso ou leveza”. [4] Esta transmissão primigénia e anterior, esta atenção à música das palavras e à força presente nas obras literárias, resulta de um amor que nos acompanha desde o berço e desde aí se firmou em adesão afectiva. Ler passa a ser, desde então, respirar.
1. A literatura para crianças e jovens é uma “ilha fantástica” à qual é preciso chegar. Importa que o leitor cedo parta, interessa que o educador olhe distante e sempre vigilante. O estímulo é a palavra certa sobre um mundo que o jovem sorveu voraz. O pequeno leitor escolhe a sua ilha, ele que consigo transporta uma “ilha” de sortilégio. O adulto deve ele próprio interessar-se e falar das suas leituras e sugerir outras rotas e deixar-se arrastar pela força das águas da curiosidade que existe em cada ilha e em cada criança já nessa “ilha fantástica”. O resto, nova partida, outras chegadas, é tão-só a pulsão de uma leitura enraizada, próxima da respiração, que diz no cólofon de cada texto que vale a pena partir e que várias serão as chegadas, se valer a pena chegar.
Baralho e dou de novo, repetindo. A textura física e semântica da palavra ‘ilha’ é facilitadora, desde logo, desta ligação ao mundo infanto-juvenil, nomeadamente pela sugestão directa do fantasioso e do quimérico, qualidades que enformam o mundus de crianças e de jovens. Mas não só. A ilha é sonho e sofrimento da literatura de todos os tempos e lugares. Provoca ainda um espaço de evocação que é halo de mistério indenegável. Tal tonalidade penumbrosa e estranhizante–cativante é apanágio da homérica ilha dos Ciclopes, da fugaz ilha de Topázio da História Natural de Plínio ou da consabida e desafortunada ilha Perdida de que nos fala, verbi gratia, Gil Vicente. E depois há toda uma atmosfera sinistra em muitas delas, seja pelo perigo dos seus contornos, seja pela tectónica vulcânica, que indubitavelmente nos leva ao “pestanejamento” de Georges Steiner – como não lembrar, num misto de terror e de pulsão, a platónica e infeliz ilha Atlântida, a ilha-namorada do capitão Nemo d’ A Ilha Misteriosa de Júlio Verne ou a fantástica ilha de seres impensáveis de The Island of Doctor Moreau (1896)?
Sem corte, com sutura, vemos ainda nessa palavra ‘ilha’ um nimbo de superioridade e de força mágica. E, de facto, em ilhas nasceram notáveis seres mitológicos como o cretense Zeus, a citéria Afrodite ou o brilhante Apolo, natural de Delos. Imaginárias umas vezes, mais reais noutras, paradisíacas algumas, infernais umas quantas, quem resiste ainda aos encantos da mediévica ilha de Avalon, fiel depositária do rei Artur, ou a tantas recriações insulares da literatura de todos os tempo e lugares? Quem permanece indemne a esta atmosfera que paira no ar à espera do nosso sonho?
A literatura é esse sonho. É nessa senda que se despenham criador e eco da coisa criada. E a ilha, essa fulguração de atracção e superação, em toda a obra habita como um corpo totalizador. Assim acontece com a literatura “pairadora”, colhida nas vozes reprodutoras, em caldeamento oralizante, com muita produção que gente miúda e gente graúda não deixa de conhecer, por leitura directa ou por incorporação ocasional. Cito ainda, neste movimento motivemático, outras ilhas e outros voos com palavras aladas. Sem exaustão, vem à memória a ilha Utopia da homónima de Thomas More e os seus habitantes bem educados, vivendo comunitariamente e infensos à dor pela eutanásia, nesse não-lugar habitável pelo poder da imaginação. Neste contexto de utopismo insular, chamo também à colação a Cidade do Sol, ideada por Campanella em 1602, na mítica Taprobana, ou, em matiz similar, a ilha de Bensalém de New Atlantis (1627)de Francis Bacon.
É de ilhas e de conquistas que vou falando. Avanço. Um livro que fácil e prazenteiramente foi conquistado por crianças e jovens, pese embora o seu tom filosofante, foi aquele livro que conta a história do fantástico Robinson Crusoe e que Daniel Defoe publicou em 1719, com as aventuras de Selkirk na ilha de Juan Fernández. Outras ilhas existem: a “ilha Namorada” de Camões, as ilhas encantada e do Pranto do Orlando Furioso (1516) de Ariosto. Fantásticas e infungíveis são ainda as aventuras de Gulliver nas ilhas Balnibarbi, Blefescu, Laputa, Liliput e Luggnagg, tão de todos, da autoria de Jonathan Swift. É também o viseense João de Barros, na sua Crónica do Imperador Clarimundo (1522), quem abre o caminho ao fantástico e ao possível com as suas ilhas do Abismo, afumada, do Alto Pináculo, Abundante, Bem-Aventuradas, Deleitosa e outras. E nem poderá faltar aqui, nesta incursão rápida pelo motor insular de mundos possíveis a haver, a possibilidade que Cervantes reserva ao seu Pança de poder governar a ilha da Barataria. É este o poder das palavras no turbilhão da imaginação.
2. O tema da criança e a sua ideia como evasão ou passado obsidiante, como crítica ou ponto nodal do desenvolvimento, têm a idade da palavra e o afecto da literatura de sempre. Não há autor, nem leitor que o desmintam. E, de facto, desde a aparentemente longínqua Comédia de Rubena (1521) de Gil Vicente – dramaturgo que jubilosamente celebro aqui na juventude dos quinhentos anos do seu Monólogo do Vaqueiro– até incrustações posteriores que passam por Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, pelas confissões maravilhadas de Almeida Garrett a respeito dos velhos tempos de criança ouvindo as encantadas histórias da criada idosa; pelo desencanto de Eça de Queirós nas Cartas de Inglaterra ao reparar que um vazio de acção recobria a actividade editorial no nosso país no respeitante à literatura infantil; chegando-se, por último, a toda a tematização de ambiências infanto-juvenis e adolencentes que percorre a nossa literatura portuguesa do século XX e dos tempos novos. E lembro, por exemplo, romances de formação como Uma Luz ao Longe de Aquilino Ribeiro ou Manhã Submersa de Vergílio Ferreira; recordo ainda o mergulho na infância e na adolescência levada a cabo pela maior parte dos escritores presencistas e afins (Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Tomaz de Figueiredo, Marmelo e Silva...); avoco também, nesta perquirição pelo mundos criados de incidência infanto-juvenil, os sentidos poemas dedicados às mães[5] ou destas decorrentes em emoção (de um Fernando Pessoa: “Lá longe, em casa, há a prece: / <
3. Em 1894, Stéphane Mallarmé realizou, em Oxford, uma conferência que deveio célebre. Refiro-me à consabida “La Musique et les lettres”. E as primeiras palavras do notável poeta não deixam de ser apelativas. Cito: “Trago-vos com efeito notícias. As mais surpreendentes. Nunca se viu coisa assim. Mexeram no verso... On a touché au vers.”[6]
Assim modestamente vos digo eu também trazer notícias surpreendentes sobre um autor de nome Gonçalo Fernandes Trancoso, quase desconhecido, que nos obriga a algumas arrumações no âmbito da literatura para a infância e juventude e não só. E se tal acomodação pode passar pelo estabelecimento do termo a quo da literatura para gente mais nova a partir de si, avanço ainda que as suas histórias escritas no quinhentismo português são produtos literários de proveito e exemplo à espera da curiosidade dos mais diversos leitores.
Mas, quem foi Gonçalo Fernandes Trancoso, para que valha a pena falar dele? Nascido em finais da segunda década do século XVI, provavelmente em Trancoso, sabe-se pela sua obra mais conhecida (1575) que morou em S. Pedro de Alfama. Vivendo em Lisboa ao tempo da peste de 1569, só a custo resistiu ao cataclismo que lhe dizimou a família: “perdi no terrestre naufrágio uma filha de vinte e quatro anos, que em amor e obras me era mãe; um filho estudante; um neto moço do coro da Sé. E para mais minha lástima, perdi a mulher, que por suas virtudes era de mim amada, o que foi causa de grande tristeza minha.”[7]
A tragédia moral que por sobre si se abateu espoletou-lhe o gosto pela redacção de contos, que, influenciados pela tradição italiana de Boccaccio e Sacchetti, entre outros, bem como pela oratura nacional, lhe serviam “por fugir daquelas tristezas”.
A popularidade da sua obra é bem visível na justa e bem merecida fama que conquistou, tendo sido um dos escritores mais lidos do século XVI ao século XVIII, espaço temporal em que imprimiram dezasseis edições, o que atesta a adesão de público aos seus contos exemplares e apotegmáticos com as raízes atrás assinaladas e natural decorrência do quatrocentista Orto do Esposo.
Não obstante as vozes dissonantes, parece-me certo que estes contos de Trancoso, até pela adjectivação que promovem (populares, edificantes, sobrenaturais, vivazes, originais, curiosos, singelos, fantásticos...), devem ser inseridos na fase formativa da chamada literatura para a infância e a juventude. Aliás, relembro um aspecto biográfico que não mencionei que se prende com a possibilidade de ele ter sido preceptor de meninos e mestre de Humanidades (Latim e Retórica) e que certamente terá interferido na sua criação literária.
Inaugurador entre nós do conto e, segundo João Palma-Ferreira, “caso único na literatura portuguesa do século XVI”, a influência de Gonçalo Fernandes Trancoso terá sido tal que no Brasil chamam “histórias de Trancoso” àquilo a que nós chamamos “histórias da Carochinha” e, no primeiro quartel do século XX, um Agostinho de Campos di-lo “o avô rústico que conta histórias aos meninos”.
João Gaspar Simões vê em Trancoso “um autêntico aedo popular”, contribuindo para o seu carácter atractivo a simplicidade de redacção, a coordenação predominantemente sindética, a utilização de provérbios e anexins, bem como o ingénuo realismo.
Coevo de um importantíssimo conjunto de vultos literários (Camões, Bernardim, Cristóvão Falcão, Sá de Miranda, António Ferreira, Diogo Bernardes, Frei Agostinho da Cruz, Gil Vicente, João de Barros, Diogo do Couto, Damião de Góis...), o que justifica, até certo ponto, a sua ocultação, Gonçalo Fernandes Trancoso virá a falecer no penúltimo lustro do século XVI.
4. Como atrás disse, trago-vos notícias surpreendentes: Gonçalo Fernandes Trancoso é o nosso primeiro ficcionista utilitarista e cibernético (de acordo com o grego, κυβερνητική, cibernética, é a arte de governar os homens), com um inusitado vezo de “observação psico-social”. Próximo da ambiência criada por Gil Vicente, dele se destaca pelo teor paidêutico e directivo. Mas debrucemo-nos, para terminar, sobre um dos seus contos e destaquemos nele algumas qualidades que o tornam inserível no âmbito da literatura para gente mais nova.
Como se sabe, o conto, pese a sua antiguidade e peso tradicional, só adquire configuração literária no século XIX. Até aí a fluidez entre o oral e o literário era indesmentível. Tal facto só abona Trancoso, tanto mais que ele supera influências e incorporações folclóricas por uma originalidade que não pode ser denegada. E assim poder-se-á dizer que o conto autoral português nasce com Gonçalo Fernandes Trancoso – na sua criação contista encontramos já as características do conto moderno, e falo do halo fantástico, da estrutura febril, nervosa e breve, e das descargas emocionais por si provocadas, num processo de concentração que confere ao texto uma matização semipoética.
O investigador francês Marc Soriano defende ser a literatura a juventude um tipo de comunicação entre um locutor ou um escritor adulto e um destinatário criança. Não parece que o espírito de Trancoso descurasse essa particularidade, como o corrobora, por exemplo, o já citado Agostinho de Campos. E se pensarmos na tentativa de definição do literatura infanto-juvenil por parte de Judith Hillman, vemos que ela, no que diz respeito ao conteúdo, sugere o perspectivismo infanto-juvenil, a incipiência caractereológica, a intriga simples com centramento na acção, o happy-end e a mistura do real com o fantástico; já no atinente à qualidade, e ainda segundo a mesma autora, deverá ela estar presente como factor preponderante do prazer do texto. A necessidade do preceito qualitativo já fora enunciado trinta anos antes por Sophia de Mello Breyner em entrevista ao Diário de Lisboa. Trancoso tem, neste sentido, uma evidente qualidade.
O conto em que vou pegar, o décimo, integra-se, de acordo com a proposta de Câmara Cascudo, nos chamados contos de exemplo, sofrendo ligeira nuance se se adoptar a classificação de Michelle Simonsen que prescreve para este tipo a designação de conto moral ou filosófico. Transcrevo o conto, para que conste:
CONTO X
Que nos mostra como os pobres com pouca coisa se alegram. E é um dito que disse um homem a seus filhos.
Perto da cidade do Porto, onde chamam Paço de Sousa, havia um pobre homem que tinha seis crianças entre filhos e filhas, de que alguns eram de dezassete ou dezóito anos e dali para baixo. E tendo-os derredor de si, um serão, sobre ceia de boroa e castanhas, derredor do lume, muito contentes, olhou para eles e viu-os tais que o melhor arroupado, se tinha camisa, não tinha pelote e, se pelote, sem mangas; e se mangas, sem fralda, e todos descalços e sem barrete nem coifas. Assim que todos seis se cobriam com fato que, para bem, não bastava a um e esse muito velho e esfarrapado que quase não prestava. Vendo-os tais, disse à mulher:
-Ouvis! Lembre-vos amanhã (se Nosso Senhor quiser) que peçais à minha comadre Briolanja de Paiva uma quarta de linhaça emprestada. Semeá-la-emos e, com a ajuda de Deus, haveremos linho de que façamos, no Verão, caçotes para estes cachopos.
Os filhos, tanto que o ouviram, saltando no ar, com muito prazer, diziam uns aos outros, rindo: - "
Espanta desde logo, neste conto susceptível de ser anexado ou conquistado por gente miúda, o carácter condensado, directo, próximo mesmo da noção do miniconto que um Sebastião Resende “teoriza” do seguinte modo:
... minipoema, minicrónica, mini-romance, poli-mini ou minitudo. nunca menos. abrangente e variável como as mudanças de nosso tempo, instrumento maleável, conciso, objetivo; sintético, cioso de sua funcionalidade, aqui-agora, lá-sempre, ubíquo, polivalente, verbivocovisual. com ele sentir e ver o mundo sem desperdícios e derramamentos. formalização das coisas com um mínimo de formas, um nada de fórmulas e um todo de formular, tecnificar. arte para um tempo de sustos, de síncopes, porém feita com suor + palavras + lágrimas, para sintetizar o humano, o não-humano e o que há de vir. close-up. underground. fotografia tirada com os olhos e o ser. miniformal, maxi-elaboração e vida. na época dos sintéticos e das sínteses. do microfilme. da pílula. dos comprimidos e das compressões. [8]
fTal modernidade é ainda detectável na lógica e na consistência do exemplar narrativo, que, a par disso, contém ainda postulados importantes como a clareza e a simplicidade gramaticais, a utilização de palavras concretas ou o carácter mostrativo, dignas qualidades de um texto infanto-juvenil. Acresce ainda que o conto de Trancoso é capaz de despertar valores para o embate social, é sugestivo de beleza estética (as repetições e o polissíndeto conferem-lhe mesmo aquela força patética própria dos textos poéticos de que tão exuberantemente fala Jean Cohen...), é indutor da realidade de forma subtil e é elemento de desenvolvimento da capacidade expressiva do leitor, seja no domínio lingüístico, seja na esfera cultural. Cite-se, por último, o inusitado final do conto de Fernandes Trancoso, que é um verdadeiro despiste do horizonte de expectativas criado. Afinal, o antegozo das roupas futuras é a clara sugestão do inesperado. Esta estranhização é uma porta para a dinamização da força imaginativa do leitor mais novo e para os seus actos de integração simbólica, assim se cumprindo a função socializadora da literatura.
Avanço mais. Toda a literatura estimável é tão-só literatura. Não me parece muito importante a divisão, que muitos ainda teimam em acentuar, entre literatura para crianças e literatura para adultos. A literatura existe perto da vontade de todos leitores sem idade. Os melhores textos serão sempre aqueles que, como os citados de Trancoso, possibilitem vários planos de leitura. Como o acentua Sophia de Mello Breyner desde a década de 60, escrever para crianças não é uma especialidade e a divisão divisada no espectro editorial radica no acto comercial e nunca no acto criativo.
Aproximemo-nos do calor das palavras, esperando, na radicalidade racionalista de Boileau, que, independentemente da temática literária, sempre o bom senso se combine com a rima. Enquanto tal acontece, esta súbita primavera teórico-pedagógica sugere-me, caros amigos, um rumor junto à voz de António Franco Alexandre que conjuga o sinal mudo com a vossa aceitação destas banalidades antigas como o mundo. Pode ser?
[1] Cf. Paul de Man, O Ponto de Vista da Cegueira. Ensaios sobre a Retórica da Crítica Contemporânea,, Lisboa, Braga – Coimbra – Lisboa, Angelus Novus, 1999, p. 9. No “Prefácio” à 2ª edição revista de Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism, em luminosa tradução de Miguel Tamen, Paul de Man confidencia: “O meu interesse pela crítica está subordinado ao meu interesse pelos textos literários, pelos textos primários.”
[2] A este propósito lembro, lembro as judiciosas palavras de Manuel Frias Martins influenciadas por Northrop Frye: “O chamado ‘ensino da literatura’ existe e deve continuar a existir no quadro mais geral de valorização daquilo que é ainda conhecido por humanidades. Mas engana-se quem julga que a literatura pode ser ensinada. A literatura pode e deve ser estudada e compreendida na lógica própria do funcionamento da composição literária.” (Matéria Negra. Uma Teoria da Literatura e da Crítica Literária, Lisboa, Edições Cosmos, 1993, p. 231.). Relembro ainda as reticências colocadas por Aguiar e Silva e outros relativamente ao ensino da poesia, no inquérito temático “A Poesia no Ensino”, que em boa hora a revista Relâmpago (nº 10, 4 / 2002) trouxe a debate.
[3] Cf. Giordano Bruno, Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
[4] Ernesto Rodrigues, “DACOSTA (Luísa)”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 2, Lisboa, Verbo, 1997, cols. 1-2.
[5] Para não sobrecarregar o texto com notas e citações, opto por não identificar os excertos.
[6] Apud Paul de Man, op. cit. , p. 37.
[7] Cf. prólogo-dedicatória à avó de D. Sebastião citado por João Palma-Ferreira, no importante prefácio a Contos e Histórias de Proveito e Exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974, p. XVI).
[8] Sebastião Resende, “Apresentação”, in Cadernos 20 , Minas Gerais, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Guaxupé, 1971.
4 comentários:
.............e bom domingo.
passo a correr....
volto com tempo.
e no entretanto deixo aquele abraço.
:
boa tarde martim
» nesta fonte de conhecimento
sempre transbordante
abraço
opssss acabei colada ao monitor mas estou contigo
"Toda a literatura estimável é tão-só literatura. Não me parece muito importante a divisão, que muitos ainda teimam em acentuar, entre literatura para crianças e literatura para adultos. A literatura existe perto da vontade de todos leitores sem idade."
jocas maradas de palavras
psst gostas do "inusitado";))))))
enormíssimo prazer....de ter ficado por aqui....bjo.
Enviar um comentário