Há uma carta de Teixeira de Pascoaes a Anrique Paço d’ Arcos que é deveras importante para a história de uma amizade exemplar entre dois grandes poetas e que, simultaneamente, comprova que o encontro do vate da saudade com a nossa cidade é tudo menos despiciendo. Trata-se de um texto epistolar, datado de 30 de Agosto de 1927, escrito em Amarante, e desvelador das relações do Autor de Marânus com figuras culturais viseenses, de nascimento ou de circunstância.
Mas não cessa aí o encanto desta missiva. Há outras alusões, à nossa região e não só, bem como uma encantadora deflagração do princípio irónico que permite concluir, neste caso, da actualidade e da presciência poética.
Vejamos como tudo se passa. Em busca de si e das suas sombras, consciente de que o homem não existe e é mera aparência, Pascoaes contempla Coimbra e ironiza sobre a fragilidade dos homens e a cegueira cultural. E tal reflexão a respeito da cidade dos doutores e dos estudantes é tanto mais interessante quanto se sabe das festividades culturais que por lá correm, alheias, no entanto, à límpida visão de um Poeta invulgar. Qual carta ao futuro vinda de 1927, eis o teor da ironia: “Assim meditei tristemente, em frente da Sé Velha e do Convento de Santa Clara, onde as mulas da artilharia substituíram as freiras do D. Miguel e do Camilo! Que tragicomédia! É da gente rir até incendiar Coimbra (passe a espanholada) e da gente chorar até fazer um dilúvio que inunde toda a cidade! E aquela cervejaria, na igreja de Santa Cruz? Oh manes de Henriques e Sancho! Hoje, não passais de pobres criados de café! Chama-se a isto democracia. Perfeitamente.” De então até hoje nada se alterou. Visitei recentemente os nossos primeiros reis em Santa Cruz e, como Pascoaes, não deixei de me interrogar sobre a persistência de tão grave atentado contra a memória cultural e a identidade de todo um povo.
Sigo para Viseu com o Poeta, que para a nossa cidade se desloca desesperançado já de se encontrar com Anrique Paço d’Arcos. Esperavam-no em Viseu Albano Guedes de Almeida, José Luís e um Ford. Albano Guedes era amigo íntimo de Pascoaes, ainda pintor e director do Museu Grão Vasco. Deste novo encontro com Viseu guarda o poeta uma vivíssima memória assim inscrita na carta mencionada: “Percorremos o berço de Viriato que faz pendant com o berço da monarquia, lá em cima, no Minho.” Ontem como hoje o mito do soldado bravo ocupa a história e inscreve-se, como sombra e como nada, no nosso local. E esse nada é tudo, porque não pode mais ser denegado por quaisquer cientismos que, no dizer de Amiel, são sempre inferiores à voz da poesia. Continuemos a ouvir o Poeta que diz da ligeira desilusão com este novo encontro com o Grão Vasco, do relacionamento com o poeta viseense Alves Martins (“Encontrei o Alves Martins que me agradou: mais carne e melhor cor.”) e do estranho sentimento face à existência de admiradores da sua poesia (“Num café de Viseu, apresentaram-me um admirador dos meus livros. Eu não acredito que haja alguém que os admire; e fico-me sempre espantado diante destes estranhos personagens que se dizem admiradores!”).
E há depois toda uma festividade em torno da chegada a Lafões, a Ansemil, que nos faz pensar no descanso do guerreiro e em dias iluminados de magia: “Passei dois encantadores em Ansemil. Comi de tudo e nada me fez mal. Nem o caldo verde, nem o bacalhau à espanhola, nem legumes com vinagre! Há terras onde mudo de estômago.” Esta atenção gastronómica, próxima mesmo da pregnância queirosiana, avança por S. Pedro do Sul, de ar minhoto, até Castro Daire, que “tem uma cor romana, mesmo virgiliana, carregando-se-lhe no rústico alpestre.” Aí o prazer da mesa passa a ser irreprimível: “Almoçámos de graça, num hotel, trutas, vitela de Lafões afamadíssima e mais dois ou três pratos deliciosos por nove escudos cada pessoa, incluindo vinho de garrafa e café!”
Abala para Lamego o Poeta, deslumbrado com o planalto de Montemuro e com as belíssimas aparições feminis. Em breve, beberá na “Raposeira” um “champanhe delicioso”. Siga Pascoaes a sua viagem debaixo do ‘reino trágico dos céus’...
Mas não cessa aí o encanto desta missiva. Há outras alusões, à nossa região e não só, bem como uma encantadora deflagração do princípio irónico que permite concluir, neste caso, da actualidade e da presciência poética.
Vejamos como tudo se passa. Em busca de si e das suas sombras, consciente de que o homem não existe e é mera aparência, Pascoaes contempla Coimbra e ironiza sobre a fragilidade dos homens e a cegueira cultural. E tal reflexão a respeito da cidade dos doutores e dos estudantes é tanto mais interessante quanto se sabe das festividades culturais que por lá correm, alheias, no entanto, à límpida visão de um Poeta invulgar. Qual carta ao futuro vinda de 1927, eis o teor da ironia: “Assim meditei tristemente, em frente da Sé Velha e do Convento de Santa Clara, onde as mulas da artilharia substituíram as freiras do D. Miguel e do Camilo! Que tragicomédia! É da gente rir até incendiar Coimbra (passe a espanholada) e da gente chorar até fazer um dilúvio que inunde toda a cidade! E aquela cervejaria, na igreja de Santa Cruz? Oh manes de Henriques e Sancho! Hoje, não passais de pobres criados de café! Chama-se a isto democracia. Perfeitamente.” De então até hoje nada se alterou. Visitei recentemente os nossos primeiros reis em Santa Cruz e, como Pascoaes, não deixei de me interrogar sobre a persistência de tão grave atentado contra a memória cultural e a identidade de todo um povo.
Sigo para Viseu com o Poeta, que para a nossa cidade se desloca desesperançado já de se encontrar com Anrique Paço d’Arcos. Esperavam-no em Viseu Albano Guedes de Almeida, José Luís e um Ford. Albano Guedes era amigo íntimo de Pascoaes, ainda pintor e director do Museu Grão Vasco. Deste novo encontro com Viseu guarda o poeta uma vivíssima memória assim inscrita na carta mencionada: “Percorremos o berço de Viriato que faz pendant com o berço da monarquia, lá em cima, no Minho.” Ontem como hoje o mito do soldado bravo ocupa a história e inscreve-se, como sombra e como nada, no nosso local. E esse nada é tudo, porque não pode mais ser denegado por quaisquer cientismos que, no dizer de Amiel, são sempre inferiores à voz da poesia. Continuemos a ouvir o Poeta que diz da ligeira desilusão com este novo encontro com o Grão Vasco, do relacionamento com o poeta viseense Alves Martins (“Encontrei o Alves Martins que me agradou: mais carne e melhor cor.”) e do estranho sentimento face à existência de admiradores da sua poesia (“Num café de Viseu, apresentaram-me um admirador dos meus livros. Eu não acredito que haja alguém que os admire; e fico-me sempre espantado diante destes estranhos personagens que se dizem admiradores!”).
E há depois toda uma festividade em torno da chegada a Lafões, a Ansemil, que nos faz pensar no descanso do guerreiro e em dias iluminados de magia: “Passei dois encantadores em Ansemil. Comi de tudo e nada me fez mal. Nem o caldo verde, nem o bacalhau à espanhola, nem legumes com vinagre! Há terras onde mudo de estômago.” Esta atenção gastronómica, próxima mesmo da pregnância queirosiana, avança por S. Pedro do Sul, de ar minhoto, até Castro Daire, que “tem uma cor romana, mesmo virgiliana, carregando-se-lhe no rústico alpestre.” Aí o prazer da mesa passa a ser irreprimível: “Almoçámos de graça, num hotel, trutas, vitela de Lafões afamadíssima e mais dois ou três pratos deliciosos por nove escudos cada pessoa, incluindo vinho de garrafa e café!”
Abala para Lamego o Poeta, deslumbrado com o planalto de Montemuro e com as belíssimas aparições feminis. Em breve, beberá na “Raposeira” um “champanhe delicioso”. Siga Pascoaes a sua viagem debaixo do ‘reino trágico dos céus’...
4 comentários:
Curiosa memória de Viseu, tão longe e tão perto...
Espectacular imagem da cidade perdida! Obrigada, Martim!
pronto. aqui. calo-me.....reiteradamente o meu POETA. telúrico panteísta...e tudo o que já nem sei nomear. o TODO.
obrigado Martim.
um beijo largo.
gostei...gosto de estar aqui..sossegada..lendo..relendo...
gosto
jocas maradas per te
Enviar um comentário