2006-06-20

o "bloomsday" ou o rim da literatura


Pouco mais de um século passa sobre o 16 de Junho de 1904, quatro dias passam sobre ele. Saio de casa pelas oito da manhã. Sei que no sítio da literatura é o dia das sandes de gorgonzola, do vinho da Borgonha, das canecas de Guinness, dos cafés duplos e de comer rim de porco. Sei que a literatura ensina a vida e que os seus marcos geodésicos não enganam. Da minha Viseu faço Dublin, percorrendo os espaços da cidade que conheço por dentro. Entalado nos dedos, viaja um livro de nome Ulysses.
Há livros assim. A partir deles nada do que havia sido dito se mantém, nada do que acontece depois poderá permanecer indemne. Joyce é um ponto nodal da literatura de sempre. Não há discussão. Com Shakespeare, o inventor do humano , e com Baudelaire, o Mittelpunkt da literatura moderna, Joyce habita uma cidade inexpugnável à qual é necessário chegar.
James Joyce nasceu em 2 de Fevereiro de 1882, perto de Dublin, em Rathgar. Seis anos depois, ingressou no Colégio dos Jesuítas de Clongowes. Por 1891, ano em que, por razões económicas, foi obrigado a ingressar numa escola mais barata e protestante, descobrem-se-lhe os primeiros tentames literários. Em 1893, deu entrada, no Colégio Jesuíta de Belvedere, vindo, em 1898, a ser admitido na University College, instituição católica da Universidade de Dublin.
Fascinado por Ibsen, publicou, em 1900, um artigo dedicado ao escritor norueguês, com quem, aliás, entabulará correspondência. Cumprida a graduação em 1902 (Bachelor of Arts in Modern Languages ), viaja até Londres e Paris, iniciando, no ano seguinte, o também cultuado Dubliners. Em 1904, publicou diversas composições poéticas em revistas e viajou com Nora Barnacle por Zurique e Pola. Em 1905, iniciou a sua carreira docente na Berlitz School de Pola, donde transitou para a homónima de Trieste, surgindo-lhe, enquanto trabalhava uns meses em Roma, as primeiras ideias para The Portrait of the Artist as a Young Man e Ulysses. Como aluno particular, sinal do nível pedagógico de Joyce, conta-se o ainda escassamente conhecido Italo Svevo. No ano de 1907, publica Chamber Music, saindo a lume, volvido quase lustro e meio, Dubliners (1914). Em 1913, fora nomeado para a cátedra de Inglês da Escola Comercial Revoltella , em breve integrada na Universidade de Trieste. Em 1916, deu-se à estampa The Portrait of the Artist as a Young Man , e, em 1918, Exiles .
Em 1920, instalou-se em Paris, onde travará conhecimento com Valéry Larbaud e Ezra Pound. Em 1921, concluiu o Ulysses, publicando-o na não despicienda data de 2 de Fevereiro de 1922. Nesse monumento perene estava a sua vida, ainda que, logo de seguida, se lhe tenha colado a ideia do inclassificável Finnegans Wake, que viria a iniciar no ano de 1923.
O tempo vai puindo. Joyce regressou à poesia com Pomes Penyeach (1927) e com Collected Poems (1936). A par dessa incursão lírica, vai publicando fragmento da sua "work in progress" Finnegans Wake , que verá, em curiosa atinência com Dubliners (obra publicada no início da I Guerra Mundial, em 1914), a luz do dia no ano de 1939.
Com inconclusos 62 anos de idade, Joyce abandonou o corpo e subiu ao Olimpo. Como um eco de si, voz por sobre a morte e por sobre os tempos, um póstumo Stephen Hero (1944) relembrou, se tal fosse preciso, que o avanço da narrativa joyceana era uma revolução tão completa quanto o era a teoria da relatividade na física, ou o vanguardismo na poesia, ou o cubismo na pintura, ou o funcionalismo na arquitectura... Igual? Mais profunda, porque mais avassaladora e fundacional. A partir de si, o homem é um ser feito de linguagem, que é corpo e é palavra.
Ulysses divide-se em dezoito capítulos heterógeneos. A sua acção inicia-se às 8 horas da manhã do Bloomsday e transcorre durante mais dezoito horas. Romance da deriva da mente e da "palavra interior", a "angústia da influência" leva-nos à primigénia Odisseia que os capítulos de Ulysses permanentemente convocam.
O entrecho, se tal lhe podemos chamar, é "linear" (leia-se tergiversativo): Stephen avança da fortificação onde vive em comunidade ( a ela "não podendo voltar" por não possuir chave, depois de conversa com os seus novos possuidores), esgotando o tempo de "exílio" na regência de uma aula, na errância por Dublin e na compulsão erudita na Biblioteca Nacional; Leopold Bloom, publicitário, nesse mesmo tempo, leva o pequeno-almoço (chá e pão) à cama da sua bela e perversa mulher, sai de casa para assistir a um enterro e trabalhar brevemente, almoça, passeia pela cidade pensando no desvario amoroso da mulher, come de novo ao sabor da música, ouve um nacionalista irlandês, observa na praia uma jovem exibicionista, visita uma maternidade (onde se interessará por uma vizinha) e aí conhece o jovem Stephen, avançam ambos para os bordéis, Stephen é sovado por um soldado, Bloom condu-lo para sua casa e oferece-lhe uma chávena de cacau, antes de o despedir. Em apêndice a esta só aparente monotonia, existe um importante solilóquio de Molly Bloom, em estado de quase-adormecimento, no qual revela os acontecimentos eróticos do dia e a vida passada.
Eis o rim da literatura. E mais não digo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Tenho ali o "Ulisses" na estante, há vários anos, e ainda não lhe peguei. Será desta?

porfirio disse...

boa noite martim

:
textos desta categoria
nunca irão precisar
de hemodiálise
.

abraço amigo




Ps: martim, s'il vous plait, dá novo salto ao tuga, pois quando comentaste ainda o post ia mal amanhado e ultra-embrionário (azares de teclar publish). até porque este texto é uma mini-homenagem à soberba Lhasa de Sela.

isabel mendes ferreira disse...

e Dubin continua a alimentar-se dele. eu tb. daqui.


ninguém como ele para levantar do chão a poeirA DE um universo caótico.


beijo Martim.