António de Sousa de Macedo é uma figura deslembrada no nosso Seiscentismo, sendo, ao mesmo tempo, um dos mais rigorosos e completos escritores do seu século. A sua obra multímoda espalha-se por géneros e modalidades, por modos e áreas, sem que parece existir ramo do saber que lhe tenha sido desconhecido ou desinteressante.
O múnus literário e os seus afectos proporcionam muitas vezes encontros que são deslumbramentos e conversas que são sentenças e exemplários. Vem esta divagação a propósito de casual e feliz encontro com uma Autora que eu conhecia mais por razões escolares do que propriamente por motivos de curiosidade poética.
Refiro-me, obviamente, a Lilaz Carriço, mulher poeta e intelectual de rara lucidez criativa e de notabilíssima originalidade pedagógico-didáctica, como o comprovam os variados manuais escolares e os não poucos artefactos de apoio com manifesto proveito e exemplo para gerações de estudantes, professores, educadores ou curiosos da literatura e da sua transmissão. Vive hoje a insigne professora e poetisa na vila de Moimenta da Beira. Por lá a encontrei, em viagem de amizade, “discutindo”, com ilustre doutorando da nossa praça, o lugar canónico de Camões na literatura portuguesa, bem como a sua experiência vivamente acrática e arejada com o Vate nacional.
O percurso pedagógico de Lilaz Carriço é exemplar. Não avanço muito por esta via luminosa. Permita-se-me, no entanto, mais uma notícia que não quero esquecida e que se prende com a história do “Liceu de Viseu” ou da Escola Secundária de Alves Martins, instituição em que a nossa pedagoga chegou a leccionar. Explico como o acaso decide nós e laços de uma vida: a jovem professora, por volta de meados do século XX, leccionava na cidade de Viseu e por cá viu a sua fama alargada devido ao voto de louvor exarado em acta, já em Lisboa, pelo inspector que lhe assistira a duas aulas. O metodólogo chamava-se Acácio de Gouveia e Sousa e era meu tio. Soube-o há tempos como se facto moderno e há pouco ocorrido!
Lilaz Carriço não possui ainda uma obra poética extensa. Nem a prolixidade é propriamente uma característica que ateste qualidade ou falta dela. Continuadora de uma linhagem de pedagogos-escritores que Emanuel Paulo Ramos elenca na “Nota Preambular” à primeira colectânea artística de nome Arco-Íris Poético (1988) – e acrescentar uns tantos é tarefa fácil: Carlos de Lemos, Roberto de Mesquita, David Mourão-Ferreira, Eugénio Lisboa, Gastão Cruz, António Franco Alexandre, Rui Magalhães, Luís Miguel Nava, António Gil... -, os sobejantes livros publicados pela poetisa, Miragem no tempo (1990) e No Labirinto da Vida (1991), ambos prefaciados por Eunice Ribeiro, fecham para já uma tríade que subsumo aos vectores entendimento, imaginação e memória, feixes iluminantes de toda a criação lilaziana.
Passo a explicar e conecto este passo ao parágrafo inicial: do mesmo modo que é estranho o descaso a que tem sido votado António de Sousa de Macedo, um dos escritores mais completos do nosso Seiscentismo, é também profundamente injusto que a poesia de Lilaz Carriço, mostrada ao público a partir de finais da década de oitenta e desde há muito iniciada no verso clandestino, como o comprovam, aliás, a datas de muitos poemas, esteja, não obstante a sua juventude, praticamente deslembrada das conversas literárias. Silenciosamente, em coonestação clara de qualidade estética, já não vai sendo fácil adquirir os títulos da escritora da palavra lustral.
O soneto é a forma poética que Lilaz Carriço privilegia, deixando-se enlevar pelo sopro classicizante de que quase nunca prescinde. Leitora competentíssima da literatura portuguesa e não só, habilitada como poucos por utensilagem teórica e histórico-literária favorecedora de seguros actos hermenêuticos, perpassa na poesia lilaziana toda uma panóplia de eufonias e de motivos que são contaminação e originalidade. Adianto algumas constantes transculturais que não denegam a influência e que logo deflagram novas produtividades: refiro-me, por exemplo, à fluidescência da vida e à uita breuis, à aura camoniana, pessoana, florbeliana, junqueiriana ou de efeméride (“Ao Prof. Dr. Francisco da Luz Rebelo Gonçalves”, e. g. ), o dialogismo com as artes plásticas e os seus fautores, as mitologias operativas da antiguidade (“A música de Orfeu vai embalando”) e da história de Portugal (“D. Teresa”, “D. Afonso Henriques”, “D. Dinis”...), o horacianismo (“Sicut apicula”), o arrojo sensual à Judith Teixeira (“Perfil crioulo”), a reflexão metaliterária (“A poesia é som nunca presente”), o vezo heraclitiano (“Temos todos, na vida, dois caminhos”), a tutela maternal (“Latente no meu ser uma verdade”), o fascínio Mariano (“Ave! Maria”), a desilusão amorosa (“Beijo”) ou o erotismo flagrante (“Os teus lábios, sedentos do meu ser”), constâncias estas que, escritas entre 1944 e 1988, para uma primeira colectânea poética, provam ser Lilaz Carriço uma poderosa voz enformada na tríade entendimento-imaginação-memória. Siga o leitor os dois caminhos outros que deixei intocados.
Ergue-se assim, lustral, cada verso lilaziano. Afirma-se no seu rumor um lampejo que é um invulgar repositório da nossa memória cultural. Como desejar mais?
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4 comentários:
a.deslumbro-me....sempre. por aqui.
obrigada Martim.
beijo.
Eis uma faceta da pedagoga e didacta Lilaz Carriço que desconhecia. Obrigado, Martim!
Esta poetisa é muito clássica... Boa-tarde!
Olá! Meu nome é Michelle e estava fazendo pesquisa sobre a família Carriço. Gostaria se possível de algumas informações de quem fez o site, sobre a Lilaz Carriço. Gostaria de saber alguma coisa sobre origem da família, enfim. Estou a procura das raizes da família Carriço. meu email pra contato é: michelle_carrico@ig.com.br
Agradeço desde já!
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