2006-06-08

da década de 20: do êxito ao (des)caso poético de Virgínia Vitorino

imagem retirada de www.bananaetc.blogbrasil.com



Do céu ao inferno, pouco mais do que um flébil cabelo da década “folle”. Do estrondo e do fulgor corre, intestino, o silêncio que sempre rói. Em volta, só o espanto do tempo ri, tudo acertando, nem sempre acertando. Quantos passos em volta, aturdidos, esquecidos, só da época, nem da época? A poesia não tem idade, nem defesa, pese Cícero e o seu Árquias. Eis um caso de êxito, sem sucesso no devir. Nem oito, nem oitenta, no rigor hodierno que é sempre justiça.
Nesse agitado período, em termos de adesão epocal, a mais conhecida mulher-poeta é Virgínia Vitorino (1898-1969), ideia que facilmente se aceita face às doze ou catorze edições sucessivas do livro de poemas “Namorados” (1920). Tal posição, que exalta mais o sucesso que a qualidade, é seguida por Cláudia Pazos Alonso e por outros reputados estudiosos da literatura. Olhemos, no entanto, para o livro referido, que sucedeu ao soneto "Incerteza" publicado em 1917 n' “O Século” , e ajuizemos a respeito dessa obra que "obtém espectaculoso êxito" e permite a Vitorino uma "grande popularidade" na década que se abre à participação da mulher no sucesso literário, para usarmos as consabidas palavras, entre aspas, de Gaspar Simões. Sob o signo da epígrafe da Condessa de Noailles, "Amour, allez-vous en pour qu'on puisse mourir", “Namorados” , que reúne quarenta e cinco sonetos, é um livro que se inscreve no gosto da mulher burguesa da época, de suave jogo amoroso, tocata e fuga que se logo se esboroa contra a paixão que cedo fenece. Nada de novo, para os nossos dias. Um passo em frente, no entanto, nessa década de sensibilidade feminina ainda debutante. E, por isso, este livrinho, que seguirei na minha 3ª edição de 1921, não pode deixar de ser um espelho no qual as mulheres de então se reconheciam, não faltando, obviamente, como motivo central a tópica amorosa. Assim, temas e motivos como o desencontro e o amor fugaz que conduz à tristeza ("Quando te vi", "Os teus olhos", "Ventura", "À janela", "Meia noite"), a dificuldade da delimitação conceptual do amor ("Amor", "Não sei"), a esperança incrustada num passado desesperançoso ("Alleluia"), o excesso amoroso e as loucuras da paixão ("Revelação"), a alegria e o reverso triste ("Alegria", "Dia 13", "Cinzas"), o requestamento de amor, que encobre e não diz ("Interrogação"), a inconstância ("Os cravos", "Incerteza"), a solidão e as saudades ("Longe", "Excerpto d' uma carta") ou a fluidescência da vida ("Velhice") farão das primícias literárias de Virgínia Vitorino um irrefragável êxito, não mensurável pelo falacioso número de edições. É que, a par desse livro que se nos afigura banal - muitas das vezes, até, desinspirado -, levanta-se a exigência de um canal para um emissor feminino ( pensemos nas vezes que a poetisa fala de cartas e telefone), que sabe que está a corresponder a um público, decerto pouco exigente, que espera ouvir-lhe a voz. E essa voz, emitida e ouvida, afirma uma identidade feminil que se aperfeiçoa ainda sob a capa do permitido e do convencional. Mas que, de qualquer forma, afirma a autoria e a recepção de uma mulher-poeta, que, como veremos pelo exemplo seguinte, com grafia epocal, só podia cair no goto da convivialidade feminina:

Meu amôr
Nem eu sei porque choro ao pé de ti
agora que o meu pranto aborreceste.
Choro, talvez, o amôr que me tiveste,
choro o teu coração, que já perdi.

O teu rosto era triste; agora ri,
contente d'este mal que me fizeste.
O que fui para ti, tudo esqueceste;
só eu, tudo o que foste, não esqueci.

Porque te quero ainda, meu amôr,
se tu não comprehendes este horror?
Porque me prende tanto essa altivez?

Olha-me bem: se as lagrimas cahidas
ao pé de ti, são poucas, são mentidas,
Crê ao menos n' aquellas que não vês.

Em 1923, publica Virgínia Vitorino um novo livro de título “Apaixonadamente” , que contará, em 1925, com cinco edições. Prosseguindo na predominância sonetista, que transcrevo com as suas peculiaridades, Vitorino retoma os vectores do neo-romantismo lusitanista, convocando desde o título a pregnância do sentimento amoroso, da saudade envolta pela serenidade do rouxinol ("Sósinha"), da tradição portuguesa ("Carta": "E eu quando á tarde vou, pelos carreiros, / opponho ao frio um chaile... á portugueza.") e do cosmopolitismo de hábitos ("Fumas, finda a ceia, / os teus cigarros certamente inglezes..."), do renovo do teísmo cristão ("Manhã": "-Oh! como eu sinto agora renovada / a minha fé tranquila de christã!"), do ruralismo omnipresente ou da necessidade evasiva ("Impossivel": "E como eu doidamente apetecia / voltar de novo ao tempo que não volta!"), conseguindo um conjunto de poemas nada desinteressantes, de que destaco o poema "Veneza" e o perturbador soneto "Salomé", que assim finaliza: "Deusa do Rhythmo, Salomé, fluctua, / e ri, n'um grande riso, e dansa... dansa...".
Seguiu-se ainda, em 1926, o livro de poemas “ Renúncia” , que em nada fugia aos motivemas que o primeiro livro anunciara com a conexa efusão laudatória de Júlio Dantas. A poetisa é um caso nítido de sucesso editorial na década de vinte, tendo conhecido os três livros de poesia referidos, em conjunto, mais de vinte edições, em pouco mais de uma década. Quem mais conhecido, no seu tempo, afinal? O silêncio que rompo repõe um modo laborioso e feminino de escrever poesia. Também um arrojo pontual e judithiano. Penso. Como desejar mais?

5 comentários:

porfirio disse...

:
neste ponto de encontro
em que o passado me é presente
a apontar futuras leituras
.

grande abraço

isabel mendes ferreira disse...

a poesia não tem idade
nem defesa...!

eu tb. não tenho desculpa. não conhecia.
defendo-me pelo súbito desejo aqui aberto de vir a conhecer. para já fica o agradecimento pelo levantar deste véu.

obrigado Martim. um beijo. sem idade.

Anónimo disse...

Grande notícia! Obrigado!

Anónimo disse...

A ilustração principal é muito engraçada, sim senhor! Boa-tarde!

Editor disse...

Gostei muito de ler o seu artigo sobre a grande rival literária de Florbela Espanca. Estou a iniciar a minha pesquisa sobre a Virgínia Vitorino e este foi um ótimo começo. Sugeria a colocação de um "motor de busca" interno ao blogue: é algo que se faz automaticamente, nas definições do blogue. Há que tornar acessível tantas ideias e materiais, toda a riqueza da "Ave Azul". Felicitações! José Carlos Canoa
PS. Obviamente que guardo a sua revista nos meus favoritos ;)