“ ... o trabalho de investigação, de leitura, da cópia, além de exigir conhecimento perfeito de paleografia, supõe qualidades raras de estudo, de trabalho, de perseverança que só um estudioso apaixonado, como é o Dr. Fernando de Gouveia e Sousa, pode reunir.”
(Alexandre de Lucena e Vale, Beira Alta , Ano XXX (1971), nº 4, p. 576)
O “achamento” do Brasil implica um insuperável e, no entanto, aceitável anacronismo. Afinal, como não utilizar o mágico topónimo para um espaço geográfico, que, em propriedade, não existia ao tempo da chegada cabralina? Ainda assim, dizer Brasil é, para todo o sempre, dizer Cabral e o seu sonho, não obstante toda a polémica conexa que passa pelo acaso ou intencionalidade da acção ou pelas possibilidades, não descartáveis, de dois anos antes por lá ter andado o Duarte Pacheco Pereira do Esmeraldo de Situ Orbis e de dois meses antes, na latitude da foz do Amazonas, nessas bandas ter acostado o espanhol Vicente Yáñez Pinzón. É ainda sob o signo da incerteza que se escreve a biografia do Navegador.
Pedro Álvares de Gouveia, depois de 1500 Pedro Álvares Cabral, é, indubitavelmente, uma figura grada da nossa memória colectiva. Perto, demasiado perto da aventura que sempre ousa, o ínclito Navegador inscreve o seu nome na alma dos ansiosos do futuro. Carácter pétreo, lustral e caprichoso por desígnio onomástico – e esse desígnio é sempre a pulsão para um destino peculiar a cumprir -, a sua idiossincrasia foi caldeada na circunstância beirã que tantas vezes tem sido berço de gente de visão rasgada. João de Barros, exaltando o seu carácter natural, na “Primeira Década” da Ásia, di-lo um “homem de muitos primores acerca de pontos de honra”. Volvidos séculos, um respeitadíssimo Jaime Cortesão destaca-lo-á dos demais capitães coevos por estar “acima da moral comum da sua época.” (Cortesão 1923: 21).
Fernão Lopes, esse visionário do espírito histórico, como o caracterizou, julgo, um Herculano, cedo viu que a “mundanal afeição” sempre embota a objectividade daqueles que, querendo fazer história, cedem aos influxos camufladores dos seus lugares e das suas gentes. Não sendo rude excesso que tal aconteça, porque de si e da sua circunstância se faz o acto histórico que é também subtileza que perpassa pelo filtro da corrente sanguínea do historiador, não penso que os escritos de Fernando de Gouveia e Sousa, fruto de uma heurística laboriosa e documentada, procedam de visão distorcida e demasiado humana e subjectiva, antes se firmando na vontade de carrilar indícios documentais e na coragem de, sempre no plano probabilístico, sustentar uma tese original e nem por isso facilmente confutável, que compete, em rigor, com quaisquer outras, ciente que estava, na esteira de Joseph Hours, que a história é uma ordem (Hours 1960: 68-70). Tal modo de “fazer história” não choca com o postulado de um Carr, por exemplo, que defende que a “objectivity in history (...) cannot be na objectivity of fact, but only of relation, of the relation between fact and interpretation, between past, present, and future” (Carr 1964: 120), ou com a dimensão da história “como ciência do passado, ciência do presente” sustentada por um Barradas de Carvalho (Carvalho 1979: 67-74).
Da probidade da investigação de Fernando de Gouveia e Sousa, em texto decisivo sobre a biografia cabralina publicado na Revista da Universidade de Coimbra em 1971, fala ainda o Professor Doutor Luiz Mello Vaz de Sampayo, por lá inscrevendo o carácter rigoroso do labor histórico do estudioso viseense em moldes que, para além de exaltarem a sua heurística, não deixam ainda de vincar o seu filantropismo. O excerto que o comprova é também acabado exemplo do bom hábito, quase sempre esquecido, de se “dar o seu a seu dono”, o que, no contexto, só eleva a constituição isenta do ilustre catedrático de Coimbra. Com referência à documentação sobre a vinda a Viseu do Conde de Seia e senhor de Cascais, D. Henrique Manuel de Vilhena, a fim de receber, a 11 de Abril de 1382, uma certa quantia do cabido nas pousadas de Álvaro Gil Cabral, eis o trecho evocativo das qualidades humanas, afinal, de ambos os investigadores: “Este documento, como outros, foi-nos comunicado pela generosa e rara isenção do Dr. Fernando de Gouveia, incansável investigador viseense.” (Sampayo 1971: LXX).
Um seu insuspeito amigo – e amigo é todo aquele que, no sentido de Goethe, diz palavras que são actos... -, de seu nome Manuel Rosado Marques de Camões e Vasconcelos, disse-o o maior investigador do Arquivo de Viseu. Todas as palavras injustas são absolutamente desnecessárias. Não é o caso, julgo, até porque o conhecido genealogista conjugava o rigor com a amizade e não era homem, segundo creio, de louvor fácil e de assertos vazios.
Impondo-se ao tempo (Pinto-Reis 1968: 5) e habitualmente dado como nascido em Belmonte (Peres 1943: 370; Pinto-Reis 1968: 5; Albuquerque 1985: 172; Nunes 1994: 153; Guedes 1999: 9), muitos historiadores e investigadores de não despiciendos méritos adoptam posições mais cautelosas e conjecturais sobre a naturalidade cabralina (Peres 1968: 81; Sampayo1971:LXVI; Albuquerque 1987: 128; Cosme 1993: 208; Magalhães 1998: 193), sendo dissidentes até os mesmos autores em obras diferentes, avançando uns S. Cosmado (Marques 1963: 66) e outros a nossa cidade de Viseu (Sousa 1973: passim), sendo certo que a reconstituição biográfica de Pedro Álvares Cabral é uma work in progress que o futuro há-de afinar (veja-se, por exemplo, as dúvidas que Estevão Pinto – ele, como muitos outros -, no lugar citado, não resolve relativamente à data de nascimento cabralina ou o cariz cuidadoso de Damião Peres, dificuldades, aliás, que as últimas monografias cabralinas, de que é exemplo a de José Martins Garcia, não dissipam). Certa é a ânsia de infinito que a história escreve desde aquela partida pela tarde de 9 de Março de 1500 até ao avistamento de terra brasileira em finais de Abril do mesmo ano e que Pero Vaz de Caminha tão eloquentemente descreve: “Neste dia a horas de véspera, houvemos vista de terra; primeiramente, dum grande monte mui alto e redondo, doutras serras mais baixas ao sul e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte o capitão pôs o nome de Monte Pascoal e à terra o de Terra de Vera Cruz”. Era dia 22 de Abril de 1500.
Figura polémica de acção controversa – pense-se nas teses que defendem a casualidade do achamento do Brasil (v.g. , Marques 1980: 315; Magalhães 1998: 194-196 ) e nas que postulam a clara intencionalidade do navegador português ( v. g. , Leone 1968: 193-199; Arruda 1972: 202-203; Guedes 1989: 180-190; Couto 1999: 18-31); relembre-se a eufórica partida e a circunspecta chegada por 1501... -, com motivos indutores de um halo de mistério que sempre recobre os mais dotados, é Pedro Álvares Cabral - dito por Gaspar Correia, nas suas Lendas da Índia, homem de “bom saber”- uma figura histórica nacional que não desmerece de outra gente beirã que na nossa circunstância geográfica nasceu ou se conjectura poder ter nascido, bastando citar, para tanto, os suficientes Grão Vasco, João de Barros, Gomes Eanes de Azurara ou Gil Vicente. A tese da probabilidade do nascimento de Pedro Álvares Cabral em Viseu segue à frente, a história, essa, como o diria um Duby, continua, em irónica e estimulante oposição ao sítio primeiro, logo denominado “Porto Seguro”, em que o corajoso e ponderado capitão lançou âncora em terras de Vera Cruz.
Seja, em passo quase final, o texto cabralino de Fernando de Gouveia e Sousa um contributo ainda interessante para o aclaramento da circunstância e do contexto em que nasceu e viveu aquela figura monumental que Jaime Cortesão descreve de forma tão viva no excerto que transcrevo: “... bem podemos evocar do nobre capitão o gigantesco vulto, cuidadamente vestido e adereçado, a barba pelo peito, o sobrecenho altivo, e, na face pálida e sombria de impaludado, a gravidade, a distância, a tristeza dos que não ignoram a sua perfeição.” (Cortesão 1923: 21).
Régio, escritor cuja acção literária se celebra com o pretexto do centenário do seu nascimento, disse em verso certeiro “Eu sou feliz porque SEI”. É essa a radical dignidade humana, é essa a superação consciente do roseau pensant que, na sua condição de pensador, vence as forças que o vão sitiando e ultrapassa os limites da cegueira, inscrevendo, no rasto de Marrou e em perspectiva historicista, o caminho da inteligibilidade (Marrou 1962: 28-50), sentindo desde a raiz da alma até ao vórtice venoso, ser a história a compreensão do presente pelo passado e do passado pelo presente (Bloch 1983: 39-46) . Assim o trajecto de meu pai, luz contra as trevas do desconhecimento, que, por palavras do reputado historiador viseense Alexandre de Lucena e Vale, deixou, no sector genealógico, “trabalhos valiosos que até fora de Viseu lhe lograram nome e autoridade.” (Beira Alta XXXIII-III, 1974).
Bibliografia cabralina
Albuquerque, Luís de. 1985. Os Descobrimentos Portugueses . Lisboa, Publicações Alfa.
Albuquerque, Luís de. 1987. “Pedro Álvares Cabral: O Brasil, pedra fundamental no domínio do Atlântico Sul”. Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses (Sécs. XV e XVI) II: 127-148. Lisboa, Círculo de Leitores.
Arruda, Virgílio. 1972. Presença de Cabral nas rotas do futuro. Santarém, Junta Distrital de Santarém.
Cortesão, Jaime. 1923. “A Expedição de Cabral (1500)”. Dias, Carlos Malheiro (Dir.). História da Colonização Portuguesa do Brasil II: 1-39. Porto, Litografia Nacional.
Cosme, João. 1993. “Os Navegadores: Pedro Álvares Cabral (ou de Gouveia)”. João Medina (Dir.). História de Portugal dos tempos pré-históricos aos nossos dias-I: O mar sem fim IV: 208-211. Alfragide, Ediclube.
Couto, Jorge. 1999. “A Expedição Cabralina: Casualidade versus Intencionalidade”, Oceanos nº 39: 18-31.
Garcia, José Manuel. 2001. Pedro Álvares Cabral e a primeira viagem aos quatro cantos do mundo. Lisboa, Círculo de Leitores.
Guedes, Max Justo. 1989. “O descobrimento do Brasil e suas consequências. O descobrimento e as primeiras viagens de reconhecimento”. Albuquerque, Luís de (Dir.). Portugal no Mundo 3: 180-197. Lisboa, Publicações Alfa.
Guedes, Max Justo. 1999. “O Descobrimento do Brasil”, Oceanos nº 39: 8-16.
Leone, Metzner. 1969. Pedro Álvares Cabral. Lisboa, Editorial Aster.
Magalhães, Joaquim Romero. 1998. “O Reconhecimento do Brasil”. Bethencourt, Francisco e Chaudhuri, Kirti (Dir.). História da Expansão Portuguesa 1: A Formação do Império (1415-1570): 192-216. Lisboa, Círculo de Leitores.
Marques, Amândio. 1963. Onde nasceu Pedro Álvares Cabral?. Porto, Edição do Grupo de Estudos Brasileiros do Porto.
Marques, A. H. de Oliveira. 1980. História de Portugal desde os tempos mais antigos até ao Governo do Sr. Pinheiro de Azevedo. Lisboa, Palas Editores.
Martinho, Telma da Conceição Correia. 2000. Pedro Álvares Cabral. O Homem, o Feito e a Memória. Coimbra, Faculdade de Letras
Nunes, Maria Teresa Alvarez. 1994. “Cabral, Pedro Álvares”. Albuquerque, Luís de (Dir.) e Domingues, Francisco Contente (Coord.). Dicionário de história dos Descobrimentos portugueses I: 153-154. Lisboa, Círculo de Leitores.
Peres, Damião. 1943. História dos Descobrimentos Portugueses. Porto, Portucalense Editora, S.A.R.L.
Peres, Damião. 1959. História dos Descobrimentos Portugueses . Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique.
Peres, Damião. 1968. O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral. Antecedentes e Intencionalidade. Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário do Nascimento de Pedro Álvares Cabral.
Pinto, J. Estêvão e Reis, Maria Alice. 1968. Pedro Álvares Cabral . Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário do Nascimento de Pedro Álvares Cabral.
Sampayo, Luiz Vaz de. 1971. “Subsídios para uma biografia de Pedro Álvares Cabral”, Revista da Universidade de Coimbra XXIV: I-CCCLII.
Sousa, Fernando de Gouveia e. 1968. “Teria Pedro Álvares Cabral nascido em Viseu?”, Jornal da Beira nº 2078 (17 de Agosto).
Sousa, Fernando de Gouveia e. 1969. “Os ascendentes de Pedro Álvares Cabral nas suas relações com a cidade de Viseu”, Beira Alta XXVIII (nº3).
Sousa, Fernando de Gouveia e. 1969. Os ascendentes de Pedro Álvares Cabral nas suas relações com a cidade de Viseu. Terá o navegador nascido nesta cidade? Viseu, Separata da Revista Beira Alta.
Bibliografia teórica
Bloch, Marc. 1983. Introdução à História. Mem Martins, Publicações Europa-América.
Carr, Edward Hallett. 1964. What is History?. Harmondsworth, Penguin Books.
Carvalho, Joaquim Barradas de. 1979. Da História-Crónica à História-Ciência. Lisboa, Livros Horizonte.
Duby, Georges. 1992. A História Continua. Porto, Edições Asa.
Hours, Joseph. 1960. Valeur de L’ Histoire . Paris, Presses Universitaires de France.
Marrou, Henri-Irénée. 1962. De la Connaissance Historique . Paris, Éditions du Seuil.
3 comentários:
Pois... Abraço!
Quem sabe se assim não foi? Boa-tarde!
o kuonde?! ganda kuonde!
abraçox2
Enviar um comentário