A história de Viseu vai sendo escrita. Nas ausências, fora dos signos agudos, exposta à morte. Também por isso o coração fica mais cheio, também por isso o néon da cidade empalidece, retracção animal que envolta a carapaça e espelha a vergonha e a acidez dos actos. Gostas? Não podes, ocasional leitor, impávido até, ficar, ver, nada dizer. No silêncio, junto à ferida áfona, acorda-se um dia a paixão que é marca singulativa, sinal de fogo como o seniano dito que sempre diz “Sinais de fogo, os homens se despedem, / exaustos e tranquilos, destas cinzas frias. / E o vento que essas cinzas nos dispersa / não é de nós, mas é quem reacende / outros sinais ardendo na distância, / um breve instante, gestos e palavras, / ansiosas brasas que se apagam logo.” Então desperta-se com a luz dentro, revelação interior que aparece, vergiliana aparição que enigmática mostra que “Do sangue nascem os deuses / que as religiões assassinam. / Ao sangue os deuses regressam / e só aí são eternos.”
Volto ao local, por exemplo, ágora ou rossio assinalados, e poucos ecos, pouco interesse. Mas há o sopro das aves, das árvores. Cada um é corpo aí, fisiologia exposta ao betão do íntimo da cidade. Ainda não volto a casa, penso em Beatriz Pinheiro debaixo das velhas tílias, com Walter Benjamin (dito radioactivo por Adorno) encostado às minhas mãos, já pássaros como no poema de Eugénio de Andrade. Leio e estremeço sob as árvores, vendo, “perdido num cenário dominado por forças destruidoras e explosões, o minúsculo e frágil corpo humano.”
Pegar na cidade, no calor do bolso. A cidade, “no seu lugar pôr um relâmpago”. E ver, ver para dentro e para fora como quem quer ver que… Beatriz Pinheiro (de Lemos, por casamento com o poeta Carlos de Lemos) nasceu em Viseu, no ano de 1872. Estreando-se ainda aluna do liceu na revista A Mocidade e ligando-se logo após ao professorado, veio a fundar em Viseu, com o marido, a revista Ave-Azul (1899-1900 [1]), importante publicação literária que congloba interessantes derivas do Decadentismo e do Simbolismo, bem como notórias progressões neo-românticas. Colaborada por importantes nomes epocais, nacionais e estrangeiros, saliente-se por lá a presença poética de Camilo Pessanha, que parece denunciar o chamamento amigo da mangualdense Ana de Castro Osório, que em Ave Azul inscreve também o seu nome.
Os dois anos de Ave-Azul demonstram, da parte da intelectual viseense, uma polivalência apreciável: penso no conto debutante “O Enjeitado”, no longo florilégio poético “Anhelia”, na recensão a Infelizes de Ana de Castro Osório, na crítica plástica ao quadro de Almeida e Silva “Depois da Refeição” ou na crónica editorial.
Em época convulsiva, quando se pensa que algo está mal com os direitos das mulheres, que agora não e que daqui a dois anos sim, exige-se um reparo que faz história. Beatriz Pinheiro, essa mulher que, no dizer criterioso de Tomás da Fonseca, nunca cedeu ao exemplo deletério duma contradição ou defecção moral, gritava de Viseu, em 1899, reivindicando os direitos da mulher e apontando o caminho da igualdade civil e política: “Lute sempre a mulher, sem descanso, sem a trégua de um segundo.”
Passam mais de cem espantosos anos sobre esses consistentes textos de Beatriz Pinheiro de Lemos, nos quais a poetisa terça armas em prol do emancipalismo feminino, não hesitando mesmo em polemizar com algum clero.
Beatriz Pinheiro, na qualidade de presidente da Comissão Executiva da União Liberal de senhoras viseenses, proferirá uma brilhante alocução, em 10 de Novembro de 1901, na sessão comemorativa da inauguração da Escola Liberal João de Deus.
Razões familiares afastam-na na cidade e não do estro. Acabo dizendo que a poetisa virá a falecer em Lisboa, no ano de 1922. Antes, volto à sessão de 1901, em on: “São elas, serão sobretudo elas, quem há-de preparar o caminho para o que há-de vir, para o que está para vir, para o que forçosamente tem de vir!...” Não é já tempo?
Volto ao local, por exemplo, ágora ou rossio assinalados, e poucos ecos, pouco interesse. Mas há o sopro das aves, das árvores. Cada um é corpo aí, fisiologia exposta ao betão do íntimo da cidade. Ainda não volto a casa, penso em Beatriz Pinheiro debaixo das velhas tílias, com Walter Benjamin (dito radioactivo por Adorno) encostado às minhas mãos, já pássaros como no poema de Eugénio de Andrade. Leio e estremeço sob as árvores, vendo, “perdido num cenário dominado por forças destruidoras e explosões, o minúsculo e frágil corpo humano.”
Pegar na cidade, no calor do bolso. A cidade, “no seu lugar pôr um relâmpago”. E ver, ver para dentro e para fora como quem quer ver que… Beatriz Pinheiro (de Lemos, por casamento com o poeta Carlos de Lemos) nasceu em Viseu, no ano de 1872. Estreando-se ainda aluna do liceu na revista A Mocidade e ligando-se logo após ao professorado, veio a fundar em Viseu, com o marido, a revista Ave-Azul (1899-1900 [1]), importante publicação literária que congloba interessantes derivas do Decadentismo e do Simbolismo, bem como notórias progressões neo-românticas. Colaborada por importantes nomes epocais, nacionais e estrangeiros, saliente-se por lá a presença poética de Camilo Pessanha, que parece denunciar o chamamento amigo da mangualdense Ana de Castro Osório, que em Ave Azul inscreve também o seu nome.
Os dois anos de Ave-Azul demonstram, da parte da intelectual viseense, uma polivalência apreciável: penso no conto debutante “O Enjeitado”, no longo florilégio poético “Anhelia”, na recensão a Infelizes de Ana de Castro Osório, na crítica plástica ao quadro de Almeida e Silva “Depois da Refeição” ou na crónica editorial.
Em época convulsiva, quando se pensa que algo está mal com os direitos das mulheres, que agora não e que daqui a dois anos sim, exige-se um reparo que faz história. Beatriz Pinheiro, essa mulher que, no dizer criterioso de Tomás da Fonseca, nunca cedeu ao exemplo deletério duma contradição ou defecção moral, gritava de Viseu, em 1899, reivindicando os direitos da mulher e apontando o caminho da igualdade civil e política: “Lute sempre a mulher, sem descanso, sem a trégua de um segundo.”
Passam mais de cem espantosos anos sobre esses consistentes textos de Beatriz Pinheiro de Lemos, nos quais a poetisa terça armas em prol do emancipalismo feminino, não hesitando mesmo em polemizar com algum clero.
Beatriz Pinheiro, na qualidade de presidente da Comissão Executiva da União Liberal de senhoras viseenses, proferirá uma brilhante alocução, em 10 de Novembro de 1901, na sessão comemorativa da inauguração da Escola Liberal João de Deus.
Razões familiares afastam-na na cidade e não do estro. Acabo dizendo que a poetisa virá a falecer em Lisboa, no ano de 1922. Antes, volto à sessão de 1901, em on: “São elas, serão sobretudo elas, quem há-de preparar o caminho para o que há-de vir, para o que está para vir, para o que forçosamente tem de vir!...” Não é já tempo?
5 comentários:
Os exemplos não devem ser esquecidos! Obrigado, Martim...
A assinatura é um pouco masculina... Boa-tarde!
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