2007-12-26

"Misérias domésticas", por António Barreto


Misérias domésticas

23.12.2007, António Barreto, "Retrato da semana" (Público)

A impunidade, a irresponsabilidade e o branqueamento parecem indispensáveis às obras e aos concursos públicos. Depois das glórias internacionais, chegou a vez das nacionais. Antes mesmo de acabar a presidência portuguesa, foram inauguradas as estações de metropolitano do Terreiro do Paço e de Santa Apolónia. Foi momento alto para a obra pública e para a vida do Governo. A luzidia comitiva fez o que tinha a fazer, accionou os sistemas, inaugurou e cumprimentou. Sócrates fez discurso. O melhoramento dos transportes que se anuncia é indiscutível. O conforto para os que fazem a trasfega todos os dias aumentou muito. Há décadas que estas obras deveriam estar feitas. A principal estação de caminho-de-ferro da capital não tinha metro, caso certamente único em metade do mundo, e a outra metade não tem metro! O mais importante ponto de passagem, durante décadas, entre as duas margens do Tejo não tinha ligação directa entre barcos, comboios, autocarros e metropolitano! Toda esta obra é discutível, pelo sítio, pela dimensão e pela solução adoptada. Com certeza. Mas os benefícios parecem, para já, inquestionáveis. Só que... A obra demorou dez anos a mais. E custou muitos milhões de euros a mais, pelo menos 140. A câmara e o Estado foram relapsos, as empresas construtoras não previram os graves acidentes ocorridos, nunca foram apuradas as responsabilidades pelos atrasos, pela imprevidência, pelos prejuízos e pelos custos exagerados. As inspecções não funcionaram, a fiscalização também não. Muito menos a justiça. A impunidade, a irresponsabilidade e o branqueamento parecem indispensáveis às obras e aos concursos públicos. Esta é apenas a última de uma longa e permanente série de obras públicas sem controlo nem planeamento. E, ao que parece, sem honestidade e rigor.
O julgamento da UGT e de mais de 30 dos seus dirigentes, entre os quais o antigo secretário- -geral Torres Couto, chegou ao fim. Com uma excepção (mas com crime prescrito), os arguidos foram todos absolvidos. Falta de provas. Acusações não fundamentadas. Ausência de documentação demonstrativa. Foram estas as conclusões do tribunal. Os factos alegados datam de 1990. O processo foi iniciado em 1995. Foram necessários 17 anos! Perderam-se vidas e carreiras. Não se fez justiça.
A ASAE decidiu responder aos seus críticos. Ou antes, o secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor publicou um comunicado no qual investe contra os críticos da actuação daquela polícia da segurança alimentar. É, a todos os títulos, um comunicado notabilíssimo. Muito daquilo que a ASAE e o Governo são acusados é totalmente confirmado por este comunicado, que é uma verdadeira obra-prima! Num estilo de grande burocrata despótico e num exercício de puro cinismo técnico e jurídico, garante que nada é proibido, "desde que...". Bolas-de-berlim na praia, castanhas assadas, facas de cozinha, colheres de pau, açorda de pão velho e produtos artesanais, tudo é permitido, "desde que...". No "desde que..." está a chave. Os produtores têm de estar certificados, as facas descontaminadas, as colheres higienizadas, as gorduras medidas, os aromas calibrados, as licenças actualizadas, os géneros embalados, os procedimentos normalizados, as torneiras automatizadas, as mãos desinfectadas, as temperaturas aferidas, os queijos datados, o fiambre etiquetado, a ventilação assegurada, os transportes refrigerados, as licenças regulamentadas, as certificações validadas, as inscrições conferidas, os funcionários identificados, os géneros protegidos, os produtos separados e os operadores licenciados. Desde que tudo isto seja feito e esteja assegurado, há bola-de-berlim e croquete.
Com este mês de Dezembro, iniciou-se mais uma campanha de promoção de Portugal no mundo. São dezenas de cartazes, de enormes dimensões, nas cidades portugueses e centenas de inserções em revistas e jornais do mundo inteiro. Portugal foi transformado na "West coast of Europe". As imagens reproduzem as caras dos portugueses de sucesso, Mourinho, Ronaldo, Mariza e outros. É a mais vistosa de todas as saloiices em que este Governo (e outros antes dele...) se empenhou. É um velho hábito dos países do Terceiro Mundo e de algumas ditaduras que consiste em comprar páginas de jornal e minutos de televisão para se promover. Escolhem-se umas personalidades com hipóteses de serem reconhecidas e tenta-se convencer os putativos clientes de que este país é todo assim, feito de belas paisagens e de pessoas excepcionais. O dinheiro que se gasta com isto é colossal, mas talvez nada de muito grave. Apesar de inútil. O que mais choca, além da capacidade de influência no Governo que as agências de publicidade assim exibem, é a atitude de quem encomenda estas campanhas. Quem assim procede está a dizer aos outros que o país, sem campanha, é desconhecido e ninguém dá conta dele. São justamente os países que têm pouco a oferecer, que nem pela sua mediocridade se distinguem, que não pesam nas balanças da fama e da reputação, que são destituídos de interesse especial e que se revelam razoavelmente simplórios e longínquos, que sentem a necessidade de se promover e de repetir a sua excelência, a paz, o sossego, a beleza e os tesouros escondidos. Quem assim age está plenamente convencido de que o seu país não vale grande coisa e de que tem de fazer estas campanhas. Os responsáveis julgam que tudo se compra com publicidade, mesmo ridícula. O resultado é o previsível. Quem vir os cartazes e seja capaz de reconhecer aquelas individualidades de excepção pensará imediatamente que o país não tem mais nada a oferecer e pretende, com as excepções, convencer os estrangeiros. Portugal não precisava desta campanha para nada. Para absolutamente nada! Talvez o Governo precise, mas o país não.

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