2007-12-17

" A fraude - carta de Natal escolar", in "Público", de 16 de Dezembro de 2007

Sem muitas palavras, eis um texto deliciosamente claro, que subscrevo. Agradeço ao JCosta o lembrete.

O ensino não vai bem e dele não se esperam melhorias. Dos resultados, o melhor é dizer que, se, em geral, não são francamente baixos, é porque são confeccionados. Um pequeno grão de uma longa fraude. A mentira é o sintoma do sistema. E começa na cúpula.
Para chegar a esta conclusão, não tomei muitas notas nem delineei a estrutura de qualquer tratado: constata-se. Todos o sabem, embora não esteja nos livros. O espectáculo, bem montado, vincula-nos (quando não nos premeia) a todos, professores, pais, alunos: celebramos, é certo, o mais infeliz dos papéis, que é o de bobos estultos.
Actualmente, um estabelecimento de ensino - em geral, público - é um lugar desconfortável. Os docentes, à falta de melhor, destilam fel; os alunos, feita a ressalva devida, são rudes; os auxiliares vivem o ingrato dilema de vigiar professores e ser desautorizados por alunos. E o caos só não escandaliza porque é tacitamente aceite. Ninguém leva a mão à boca de espanto, pois já ninguém estranha.
Acresce que domínios curriculares como Formação Cívica (a bem dizer, uma obrigação de família), Estudo Acompanhado (na verdade, um pressuposto do estudo, que é nem mais do que verificar uma matéria) ou Área de Projecto (entenda-se trabalhos em grupo sob mote), cujo sentido talvez fosse possível admitir numa fase inicial da escolaridade (e, ainda assim, diluídos nas disciplinas vigentes de 1.º Ciclo - ler, escrever e contar continuam a ser objectivos - e tanto faz que se leia competências - essenciais), não passam de folclore dessa farsa a que se convencionou chamar reorganização curricular e gestão flexível do currículo. Não será preciso ter dois dedos de testa para perceber que as turmas de 1.º, 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico não comportam mais de 15 alunos (número arbitrário, mas razoável, a atender ao perfil do modelo actual de aluno).
A destituição do poder a que os professores têm sido sujeitos gerou um paradigma comportamental profundamente enraizado nos discentes, a transcender a ética humana: banalização do estudo, privando-o de importância e solenidade; incumprimento de tarefas; transformação da aprendizagem em divertimento ou entretenimento fútil; infantilização; boicote do sistema de ensino; desvalorização do esforço e sacrifício; iliteracia; desregramento, desrespeito e imbecilidade.
Recordo duas gratas figuras a quem ouvi chamar algumas coisas pelos nomes: Marçal Grilo e Lobo Antunes. Este último, se bem me lembro, aconselhava a que se tratasse os alunos como cães (entenda-se a metáfora, sem precipitações). Não acredito num ensino em que um professor não tenha, muitas vezes, de ser austero, e um aluno, não raro, de ser espartano. Por isso me espanta que o que dimana do Ministério da Educação contrarie tudo isto: erradicação da importância da Filosofia, rasura da literatura, despenalização das faltas, elaboração de planos redentores (Plano de Recuperação, de Acompanhamento, da Matemática, etc.), criação de inúmeras fraldas pedagógicas, elaboração de exames manifestamente caricaturais, invenção de "aulas" substitutas, e tanto mais. Os fautores do ministério não são incompetentes: são, antes, irreais. E irracionais.
Na sua nefasta acção, ajudam o aluno a ser esmoler e a pedinchar notas, convencem os encarregados de Educação a reivindicar o irrazoável e a encarnar um largo espectro de qualidades diabólicas e boçais e obrigam os professores a capitular na sua missão - se é ainda possível imaginar que o ensino assim tenha sido alguma vez considerado.
Nem tudo é deste modo, mas muito do que sabemos é-o. Vemos, ouvimos e lemos: não podemos ignorar. Contudo, este silêncio é de ouro, e nem sequer os sindicatos perturbam as boas consciências (as greves de sexta sucedem-se como a expressão de um mundo sinistramente repetitivo). (...) Não nos rebelando contra o sistema - o que exigiria, no mínimo, uma paralisação de todos os sectores de ensino por tempo indeterminado -, só nos resta sermos as chocas da arena morna em que pactuamos. E a haver desculpa, só a de não darmos por nada.
Para coroar o fracasso deste modelo de ensino, a recente alteração no estatuto, que prevê a "titularidade" dos docentes, e a proposta de modificação na gestão, que antevê a figura do "director", têm um duplo imperativo: fazer dos professores galos de combate e amplificar a divisão no seio da docência. Nada mais hábil, vindo da parte da classe política, a quem só resta limpar as mãos, já lavadas por inúmeros Pilatos. O que se adivinha, contudo, não se revela muito animador para o futuro da Educação em Portugal.
A actual ministra, entretanto, balanceia-se entre uma rigorosa verve e uma logorreia falsa. Não é dela a culpa: muitos outros vieram antes e indicaram-lhe o caminho. Ela só teve de caminhar.
Nota - Ficou a jeito esta minha cabeça. Se ela rolasse, não seria sinal de ser incómoda. Seria antes a prova de que o Big Brother não é ficção literária.
António Jacinto Pascoal (professor)
Escola Secundária Fernando Assis Pacheco, Lisboa

2 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

espero....sempre....nem que seja no céu...:)



beijo.



Martim.

Susana Barbosa disse...

de oito para oitenta. tudo vai mal. tudo se inverte. se há três décadas atrás, os alunos tinham medo dos professores, hoje em dia são os professores que têm medo dos alunos! haja bom senso. há que encontrar um ponto equilibrado das relações, da educação e do ensino em Portugal. e assim... está realmente a tornar-se tarefa impossível!
bjs