2006-02-28
intermitências do corpo: a arte mostrativa de Cristina Nery e de Safo
2006-02-27
TS'AI CHI'H
2006-02-26
Até aos ombros do corpo: "O Ciclo das Sedas" de Cristina Néry
Tomei a admonição como convite à leitura e transportei comigo esse novo corpo poético, de aspecto esbatidamente róseo e estranhamente atractivo. Sentado na noite, li o objecto literário desde o título estranhizante: O Ciclo das Sedas.
Habitável e transitável pela indesmentível vocação do princípio único que é a “casa da poesia”, este “O Ciclo das Sedas”, debutante e em processo, vive ainda o tempo da contradição. Não espanta. Os caminhos mais felizes começam assim. Ambas as mãos sobre o corpo (Maria Teresa Horta), pode dizer o poeta que este é ainda o crescimento do seu corpo.
Abrindo-se o primeiro poema sob o signo do desejo (“que o corpo seja a harpa que me toca / como sangue que me pontua / das escarpas do fôlego.”) e da inscrição poética das grandes vozes de influência (lembro o início do fulgurante poema “O amor em visita” de Herberto Helder: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue.”), realço no conjunto a ousadia óptico-grafemática (o ponto inicial, por exemplo), a força patética (Jean Cohen) comparativa (“como sangue”, “como se parindo”, “como um dardo”…), as associações vocabulares surrealizantes (“búzios sangrentos”, “pulmões das noites”…), os bons conseguimentos versificatórios (v. g. , “.quando a terra se some há a decifração do medo”) ou a sintagmática e o grafismo “à Al Berto” (e.g., poemas 12 e 18).
Poderia agora fender o íntimo corpo (“como a linha da anca de uma mulher pulsa com as órbitas / uma eternidade empoleirada na carne.”) deste “ciclo das sedas”: como o aracne pode agora a larva da “Bombyx mori” mostrar as secreções glandulares encostadas ao corpo e volvidos três dias ser crisálida. Nos vinte e oito passos do ciclo, certamente feminino, cesso a escuta e sei que, como Édipo em Colono, existe o enigma da linguagem. Dita a palavra, em poesia, a representação é não-representação e vice-versa.
Do silêncio larvar do texto de Cristina Néry, compósito e sexualmente poético-indagativo-experimental, levanta--se uma força jovem que a temporalidade acertará junto aos ombros do corpo. Leia-se, pois, esta colectânea com a certeza de que em conjunto, menos cegos, estaremos mais perto e mais longe do texto. É este o mistério da literatura. Da grande literatura que, no sentido de Seamus Heaney, ensina a “acertar no veio entre as linhas a negro.” Como o diz, por exemplo, o poema final de Cristina Néry:
2006-02-25
os peixes secam debaixo da chuva
na secura da chuva os peixes morrem. dos cavalos negros o verniz do suor afunda. nem o trigo fora da terra nem a seara dentro do corpo. de novo a água dentro da fonte e o cano podre na terra. o sol morre dentro da noite e a chama acende a madrugada. corro parado dentro da chuva. amanheço agora no charco do vento. na secura da chuva estou em toledo.
2006-02-23
a grande poesia em "Ave-Azul"
António Franco Alexandre
poema simples
Assim como o tempo passa
já posso ser o que sou
breve chuvisco de tarde
nublado pela manhã
sol em neve declinado
seco mar fresca aridez
Não deixo nem testamento
nem memória do que vi
as vozes que me habitaram
os corpos que me queimaram
não sei que sorte tomaram
nem que levaram de mim
É certo, julgamos sempre
olhar de frente o futuro
mas o que vemos é só
um braço de rio parado
muro de gruta pintado
a fazer vez de presente
Na linha do horizonte
perdeu-se outrora um navio
em terra fiquei deixado
ferido de sangue frio
de mãos e pés amarrado
à lembrança, mas de quê?
Fiz de palavras caminho
altas palmas o meu céu
amassei o solo escuro
só sol e mar me criaram
fiéis ao simples acaso
de algum dia ter nascido
Finalmente o fim do mundo!
embora seja seguro
que outro mundo há-de seguir
enquanto rodem as rodas
em perpétuo movimento
do inexorável motor
Amor amado desejo
vontade de outro não eu
rumor do corpo habitado
pela confusa visão
no olhar do bem-amado
de um sonho que não é meu
Desde cedo habituado
a ser o eco calado
de cego narciso, sem
nunca encontrar na mensagem
mais do que a pálida imagem
do seu jeito de ninguém
Às vezes, sobre uma cama
terrestre, de lençóis nus,
na formosura de um rosto
seja seu ou seja de outro
vejo o mundo ilimitado
que a sua cegueira vê
(Outra estória é a de orfeu
pois rimador aqui estou:
depois do frívolo idílio
no inferno, aconteceu
a pequena audácia trácia,
que virgílio não notou)
Por isso pouco me importa
se só vejo simulacros
por trás de muros compactos
se a idade me trava o passo
e cada hora me traz
uma volta mais no laço
Se sou apenas banal
e às vezes vos desagrado
rimando com mau efeito
é defeito de querer
dizer o que o corpo diz
só no seu eco perfeito
Por cada dia que passa
fico mais jovem e sábio
tal qual a mulher barbada
arrasto gentes à praça
escarnecido, culpado
de desafinado lábio
Nenhum símbolo me ocorre
nem sinal ou signo extremo
só do medo me arrependo
que teve tudo o que quis
do resto do que aprendi
me serve saber quem temo
Serve saber que serviço
me talhou desde noviço
que palavra humana quis
tomar-me por aprendiz
e logo desde o começo
justo preço me cobrou
Este de ser sem juízo
sem cautela premiada
e dedilhar no meu verso
em prejuízo da fama
o reverso da canção
que me foi encomendada
Este de sonhar em mim
um infame pesadelo
e de estar perto do fim
cada vez que recomeço
ser o servente delfim
em ausência permanente
Sentir na boca o degredo
na tua boca beijado
abandonar-te em segredo
a uma esquina quebrado
no mais ser o bom atleta
que nunca cortou a meta
Ó campos feliz paisagem
ou cenário acidental
da minha verdade toda
fica o sumário brutal
ter este rosto de tinta
e nenhum outro real
Poucos conhecem a infâmia
do melhor do que há em nós
ou a vergonha cansada
de ter ainda outra voz
em rima pobre sem nexo
nem louvor na embaixada
Do nosso amor fica sempre
um gosto a coisa deixada
para os mistérios do sexo
como roupa desleixada
só eu sei como te deito
na minha mão debruçada
Só eu sei da tua boca
o orifício encantado
o sabor a vento fixo
no ombro de asa rasgado
e o rastro tenso que fica
dos joelhos nas axilas
E no entanto não sei
de noite como te chamas
parece-me bem ouvir
outro sempre diferente
nome, quando nas chamas
se arrasta a musa decente
Mudas de rosto, de idade
mudas o gesto da mente
se abrindo as mãos me devassas
e em mim resta de quem és
sem memória nem promessa
um oco vácuo demente
Sou-te fiel mude embora
nome corpo rosto e acto
sei-te na sombra o exacto
rumor do tempo previsto
assim é que nasces e
mal me encontro me perdi
Agora, em ilha extrema
nativo náufrago eu
pintado de sexta-feira
escavando em tronco duro
planeio fugir de mim
na folha do mar ou fundo
Confundir-me com as velas
em leve teia de espuma
ser a medusa que aterra
as redondezas da terra
ouvir sem mastro nem pejo
o desejo da sereia
Talho na rija madeira
da melhor árvore que havia
a que mais fruto nos dava
mais fresca sombra deitava
na sombra muito ligeira
que como um véu nos vestia
Com a foice da serpente
ó instrumento imperfeito
afeito a carne macia
mas que nos basta na estória
assim contada à maneira
de vaga memória pia
A esse tronco é preciso
agora vir a contar
doze anos estive preso
em inferno paraíso
no jardim de contos feito
e sem fruto proibido
Eu era, se é que era,
mais um aroma no ar
a voz ao longe que espanta
quando cessa de cantar
ou outra imagem qualquer
capaz de a ti te acordar
Aí à beira do mundo
com os teus dedos de veludo
a correr, a tropeçar
no sentido imaginado
dos teus sentidos já lassos
de tão pouco enlaçar
Telegrafa-me depressa
enquanto não cessa a obra
de talhar, de amanhecer
apenas para que peça
um pouco de barro ou dessa
matéria que faz querer
Tocá-la senti-la tê-la
entre as mãos a acontecer
mas sem peso e sem figura
só emoção de tecer
o resto humano da dobra
que o tempo leva a dobrar
Noite e dia escavo e corto
não sei bem que forma faço
a foice foi de presente
à medida do meu braço
e quando repouso sonho
com o meu barco na corrente
Bem pequeno pode ser
pois me basta um lugar
vou deixar na ilha toda
a minha corte vulgar
de ti levo o pensamento
do teu nome singular
Vou partir para oriente
tomo o rumo das estrelas
com versos farei as velas
para o vento dominar
vou ver se existe outra gente
outro lado do pensar
Desejo ventos, procelas
de antigamente rezar
altas ondas que ameacem
as nuvens até no céu
quero ver se me arreceio
se me ponho a babujar
Se vejo a dama mesquinha
cortês a vou a saudar
minha antiga companheira
tua carga é bem ligeira
podes levar-me, não trago
bagagem nenhuma, vê
Só uma flauta, um caminho
que nos mapas se não lê
um rosto de linho velho
sem razão e sem porquê
mas não te iludas eu quero
à outra margem passar
Subir ao monte que avista
muros de cego cristal
tectos de palmas abertas
ao céu azul mineral
e ver os degraus da casa
desde a terra até ao céu
E ver os degraus da casa
como uma corda entrançada
de corpos letras papel
deixar nos muros do templo
a marca da minha mão
em testemunho fiel
Outrora tinha receio
de me perder pelo meio
da invisível floresta
onde o inimigo espreita
com tigres olhos de lume
e face dura de cão
Hoje o que temo é ter feito
letras tortas no meu chão
ter hesitado no leme
ser duro de coração
ter errado o peso justo
e dito não, dito não
Por vão cuidado da rima
ter descuidado o legado
que devia fazer meu
e não ter usado a lima
dos versos para dizer
ao mundo imundo o seu fim
Vou ver os degraus da casa
cedo na luz de oriente
sem receio de outra gente
nem da garra do leão
de mim é que tinha medo
agora já sei quem sou
(esta só é a lição)
Na praia já se começa
a ver o verde do mar
e se levantou o grito
das aves relógio aflito
descido ao sono profundo
que a sonhar se detém
Ao ar claro se evapora
um resto vago da aurora
que só a noite contém
tu bem sabes quanto custa
o preço desta demora
na morada de ninguém
Vou partir deixar a vida
nos seus crivos entretida
riscar de todos os livros
as armas que o tempo tem
quero ir a esse tempo
onde renascem os vivos
Na boca me deitem terra
para não morrer no mar
cubram de seda esta água
tão pouca que me bastou
e deixem-me pronta a mesa
para quando regressar
De ti nunca me despeço
minha sede meu senhor
tu que vês o que não digo
e o que não faço prevês
trazes a graça contigo
e o sentido que me dês
Da tua cegueira sou
desastrado escriturário
para te servir nas artes
não me troquei nem vendi
e só por erro servi
outro mando do que o teu
Também agora não peço
a garantia de autor
(para que no editor
assírio e alvim se publique
peço ao franco antónio que
tudo a seu cuidado fique)
Nem a taça nem o busto
nem o atleta robusto
que me leve em sua mão
nem o tesouro da serra
e o horizonte de terra
à medida do meu chão
Na verdade nada peço
senão a palavra que
me liberte desta ilha
me tire do pulso a anilha
e me destape do poço
que me demora o embarque
Quero ver a cor que tem
a tela do outro lado
e a razão do teu louvor
quando na obra acabada
de tudo quanto fizeste
disseste a morte melhor
Será agora que vejo
nascer o sol verdadeiro
o terrestre, que me acorda
e me liberta da corda
do primeiro pesadelo?
será que agora desperto
Numa alfândega distante
diante do sábio mono
e sua dama mesquinha
a queimar lenha no forno
onde se cozinha o novo
modo de assar o vizinho
E me acusam de ser
avesso e pouco cortês
e permitir a nudez
sem nenhuma metafísica
mas com cem sentidos bem
fisicamente despertos
E de ter nascido com
extraterrestres avós
de usar amor ao contrário
e ter feito este sumário
dando sentidos à voz
sem talento e sem pudor
Não me defendo sequer
curioso do tormento
original que inventaram
enquanto o lume se acende
verter-me em sórdido inferno
em lugar do happy end
Mas por força do desejo
e seres demónio aprendiz
acontece desta vez
ao contrário de moisés
que tu estás onde te vejo
eu estou onde não vês
Vem-me levar, extranave
desde Sura a Pumbedita
os dois extremos da terra
que já me cansa bater
à porta fechada rente
de alheia casa qualquer
Agora seria a hora
de uma grande conclusão
uma razão que pusesse
todos os dados na mão
mas o meu poema simples
tem rima, não tem razão
Outra que a dura presença
do teu rosto contra o meu
no lume que nos mistura
e se transforma até ser
a chama móvel que move
as roldanas do destino
Servirá de hobby-horse
pois traz em código morse
as evidências do mito
verás como o indecifram
enquanto mordo nas veias
uma agulha de infinito
Meu terno e bom capitão
por ti tudo tenho escrito
e diz-se que é longo o tema
para tão curto poema
mas se me deixas a mão
vou ali e tenho dito.
2006-02-22
ninguém se lembra
memória de Sines, com Al Berto, rumo ao Sudoeste
Estou em Sines, na dobragem para a música do Sudoeste, e não esqueço o Poeta, que, aliás, veio ter comigo à esquina do bar mais conhecido dentro da noite espessa.
Falou-se da vida e do tempo em abismo. E dos corpos azulíneos e aéreos. Mas foi da alma do Poeta que mais se disse: da sua força individual e da capacidade do grito univocal em perturbar o “canto do homem”.
Noto que Al Berto se escreve ainda em Sines, aí revelando os ossos mais antigos e as velhas palavras forjadas na limpidez do mar. Desgastados e trabalhados, os renovados e raros vocábulos alcançam com esforço o último e definitivo silêncio. Não mais pede o desejo. E, no entanto, de si e da conexa textologia, subsiste sempre uma dor afiada encostada ao corpo e trazida por esse mar e pela febre do tempo.
Noite adiante, a língua fisiológica e codificada desliza no peito, desassossegada. A ferida do zinabre acerta o sofrimento e a pulsão, espalhando a irisação pela lepra do corpo que outro(s) abraça(m).
Como, afinal, impedir o gesto de ave sobre o papel ou o bailado de chamas dentro do cárcere corpóreo? A resposta, despicienda, escreve-se e inscreve-se na raiz das ondas e no claro entendimento de todos os iniciados.
Dos campos de sarças rola sempre um melancólico e sedutor olhar que é português e universal. Do consistente aproveitamento de referências e de motivemas resulta, ultrapassada a “maldição das vozes”, um clamor ostensivamente nómada e solitário. Como diz Cioran, “somos o tempo”; e é ainda do fundo de tempo que se levantam as imprecações al bertianas que convocam as horas, as memórias e os dias: “que horas serão dentro do meu corpo?”.
Al Berto cruza o tempo e os seus Mestres, de tudo se alimentando sem pressa. Com Baudelaire traz a cidade à poesia, com uma outra voz e um diferente medo. “acumulei infindáveis cadernos escritos; era esta a única maneira de remediar o medo”, ouço. Vinda dos litorais desaparecidos, esta é uma voz próxima e distanciada do mar. Dialógica e irrepetível.
Olho por dentro o Poeta e a “noite dos espelhos” (Manuel de Freitas) na minha recordação. “na cal viva da memória dorme o corpo.” Revela-se então a peste, vinda do fundo. E o medo amargo.
Encostado ao palco tmn do sudoeste, “quase luz nenhuma” – recordo. Liam Gallagher sobe ao palco e traz a serpente da música. “don’t believe the truth” encosta-se agora ao “ácido das noites em sépia”. Os Oasis são agora os peixes da madrugada “à procura do silente lume das cassiopeias”. Al Berto ainda na humidade do sonho. E os acordes de “Live Forever”.
Finalmente, o fogo sobre o mar.
2006-02-21
2006-02-20
posfácio a "moral canibal" de porfírio al brandão
“Forçoso é admitir que nunca conseguimos sair da nossa própria pele.”
(C. S. Lewis, A Experiência de Ler)
1. Nada deve ser dito sobre um livro que se dá ao leitor. E, no entanto, este elemento paratextual que o sentir do Poeta entendeu encravar no fim da mastigação há-de, pelo tempo póstumo, funcionar como uma porta de legibilidade do texto principal. Assinalo, pois, a linha acessória desta partilha.
É um Walter Benjamin, naquele seu jeito de eternizar o dito mais simples, quem refere serem os escritores pessoas que escrevem livros por insatisfação. Olhando em volta, para o tempo passado e para o porvir, o escrito de que falo litiga já com a cidade da poesia. Ao embate não escapam sequer os livros próprios – as existências poéticas, sem excepção, entram em crise. Esta Moral Canibal a todos combate, depositária fiel que é da tradição “mercantilista” que tudo troca pela paixão e pelo caos, pelo fogo que esmaga o gelo.
Um corte transversal nesta nova incisão de Porfírio Al Brandão permite desde fora-do-texto uma linha de força isotópica que transfiro para o eixo sintagmático afirmante de uma voz lírica que “vive” do lado improvisador que colhe o corpo pelo lado avesso, dele (re)criando a força originária da ousadia tentacular. Das vísceras e visceral, este livro e os seus labirintos intrometem-se como mel pacificador pela garganta do leitor ofegante.
2. De corpo aberto, friso, o texto diz-se, sem rito hermenêutico ou escoliástica sacral. Sobrevém, porém, a vontade percutiva de o dizer, encostando o ouvido à voz do texto.
Como em Hegel, a coruja de Minerva inicia o seu voo ao cair da noite. Assim o meu corpo neste rito pascal de devoração.
3. A modernidade rejeita o passado, isto é, transmuta-o, e não há modo ou forma de atenção (Kermode) que convalide o êxito interpretativo à custa do objecto principal que é esta Moral Canibal. E por isso do início parto.
A marca do título, de acordo com o postulado de Leo Hoek, é um dispositivo semiótico importante e inevitável, nomeadamente em obras de certo fôlego, como é o caso. Projectos, intenções e programas ganham sempre legibilidade a partir do começo fundente (cf. Macherey).
Moral Canibal diz-se contra a “dúvida” barthiana “par où commencer?”. O bloco titular explica-se como signo cultural que já é, gerado na sucção do abismo da criação e da mostração. Entretanto, no espaço finito da amostra, foi roendo o vinagre no objecto libertado do poeta em direcção à joeira do tempo. Campo branco aberto à mancha da impressão e à incisão do leitor, eis a divisa que o título levanta na faina, desejada e repulsada, da cobrição. Suficiente de ambivalência, permite a nomeação a inferência de uma “moral canibal” (veja-se o corte doxológico, deontológico e axiológico…) ou de “uma moral” e de “um canibal”, bem adentro da distinção de Bergengrün de intitulações em nome masculino com adjectivo ou de nome com nome cuja semântica o texto aclarará, coonestando ou não o lance catafórico que o título verte e afunda no grosso textual. Ultrapasso, pois, a “ouverture” e “clôture” do texto, dita título, que é, sem dúvida, uma inderrogável marca inaugural ou “marca-de-água” para a posteridade. Contém a titulação de Al Brandão, a meu ver, a “função aperitiva” de Roland Barthes, nela se originando a leitura. Antecipador (Lämmert) e dramático (Grivel), o título brandoniano é também provocação e distanciamento.
4. O código óptico-grafemático da malha tipográfica do “Prelúdio Quaresmal ou Monólogo do Cordeiro Morto pela Lança Vocabular” que abre Moral Canibal parece indiciar, até pelo destaque em itálico, um modo programático que importa colar ao título. E assim é.
Entregando-se ao rito e à emergência do “sagrado”, o texto de abertura oferece ao leitor duas vias indeclináveis: a do desossamento em favor do hino visceral e sacral (“eu sou o cordeiro abençoado que abre o peito diante de vós”) e a do primado da palavra e da sua destruição (“e os textos? queimai-os assim como o sonho da erva”). A sacralidade que se levanta do eco das palavras utilizadas, quase sempre em tonalidade irónica e carnavalesca (“eram doze a / comer-me e eu gostava… ainda gosto”, corresponde, na referência possível, à incontinência a que o sujeito poético se entrega face à palavra incomensurável e mastigadora. Afinando-se o tempo quaresmal sob o influxo da devoração, a paisagem “religiosa” e poética é cada vez mais a da desfibração e a da biblioclastia: nunca um acúmulo de palavras trouxera uma ceia mais sanguinária e devastadora…
Este “prelúdio quaresmal”, inçado de lexias vindas da área do esventramento (abundam membros, peitos, músculos, restos, vísceras, sangues, intestinos, peles…), convoca um “cordeiro” que é palavra incompreendida como o ácido do impossível.
5. Abandonado o poema em itálico, o plano adveniente se, por um lado, reitera o vezo visceral e devorista (afinal, moral canibal, não é?), não deixa também de abrir em horizonte novas e frutuosas correlações, como seja, por exemplo, a imagética simbólica do verdescente ou as fundas derivas do grotesco e do surrealizante (cf. “[a rapariga verde]”: “sabes-te, olhas ensonado a rapariga verde que pisa / descalça / os intestinos caramelizados da máquina de escrever”).
A sina predatória que a ousadia poética traz para o ventre do texto é uma constância sinalizadora da incisão criticista. As aranhas atacam, as formigas negras agrafam, as lagartas deslizam, o corpo abre-se, o estômago electrifica-se, o bicho-da-modéstia morde, as palavras matam, o touro branco ataca, os cornos trespassam, o outro é, afinal, o “eu canibal”, mano predador que é boca incontida sobre os homens e as vísceras (cf. “[alerta geral]”: “-fujam, ele é humano… tem os olhos vermelhos dum / ódio ilegível / e garras afiadas a saírem-lhe da boca.”). Nesta senda de demonização e de sede bestiária (e é bem digno o passo de “[nenúfar espacial]” que diz um “insecto / parado no código de barras / do tempo.”), a devoração não cessa. Como não cessa a escavação dentro das vísceras…
Plasma germinativo da mastigação é um apodo que parece encaixar nestas novas palavras de Porfírio Al Brandão. Dessa deriva não muito explorada literariamente ressaltam uma indiscutível originalidade e uns interessantes círculos de atracção que o Poeta consegue subsumir a uma “vigilância superior” (Blanchot). Tal domínio poético dos elementos de coesão não impede nunca, penso, que os abundantes traços de distorção e de desassossego estendam a teia e disseminem a perturbação. Marcado geodesicamente pela constructio macrotextual (desde o título, diga-se), pode o leitor deixar-se abalar pelo embalo musculado das mandíbulas: “o peito acelerado desapega-se da espinha que afiada / corta os pulsos da lua a morrer pálida / sobre a tua cabeça.” ([nós nox noz]).
A “epopeia da carne” desfila perante os olhos do leitor, ganhando tonalidades necrofílicas (v. g., “[carrossel]”) e bestiais (passim), acrílicas (“[era dos clones]”) e sexualizantes (“[auto da cobrição dos faunos]”), bem de acordo com o poder fantasmal do corpo. Apostando no exaurimento das capacidades de exploração das vertentes estranhizantes e repulsivas, o Poeta transgride sempre, cavando abismos e fragmentando o possível já para além do cognoscível, avançando pelos dias da criação e pelos ritos escatológicos com uma “certeza” poética que é caminho novo e, para já, imperscrutável. E, no entanto, um caminho…
6. Pensava Nuno Guimarães estabelecer a poesia “uma ruptura com as coisas”. Fogo por sobre a crise e ardentemente crítica, o exprimível brandoniano anda por aí, não cedendo, porém, ao decadentismo totalizante. No acume de cada sílaba germina uma saída que “linearmente… desabrocha / sempre corroendo” (“[saída]”). Assim a morte como devoração final dissolvente que é digestão e ressurreição da carne.
Movendo-se a escrita de Porfírio Al Brandão entre a simbologia do “sacrifício contínuo” da aranha (com o seu quid construtivo, destrutivo e transformativo) e o sentido hieroglífico da boca que é criação e devoração (relembre-se a titulação Moral canibal), muito se explica nas palavras que abandono e sinto ainda do lado avesso da pele. [www.palimage.pt/livro.php?livroid=pp48]
2006-02-19
as naus já não existem em Olivença
a chuva que fende a noite inunda a liquidez das pedras
e das naus que já não existem em olivença.
as paredes caladas sofrem o tempo passado
que não mais será, água sobre água que cai.
o musgo antigo toma o granito e as fendas,
os fungos e os líquenes entalam-se no flanco.
das janelas o lixo da usura inunda a praça
e cai sobre os uivos dos cães dentro do escuro.
inverno é já muito no corpo espacejado desta pátria
sem a língua na morada e o rosto fora do corpo.
em dezembro o corpo há-de ser corpo...
2006-02-18
Desesperançadas desde o pórtico e sob o influxo dantesco (“Lasciate ogni speranza, voi che entrate”), as primeiras palavras de “Fel” criam no leitor um horizonte de expectativa entre o estranhamento e a infelicidade. E, no entanto, é a principal obra de José Duro um título bafejado pela fortuna do achamento de um paratexto invejável e certeiro – assim, quantos títulos felizes para além do “Só”?
Do centro canónico que a glória também cava, desse lugar instável visitado por “profissionais” que detestam a literatura e o “honesto estudo”, brota, na minha perspectiva, uma raiz que é pertença de José Duro, poeta ainda assim importante e mal lido fora da circunscrição do interesse e da paixão localista. E nem me parece que o centenário sobre a morte assinalado em 1999 tenha trazido interessantes contributos contra o deslembramento – vale ao caso a importante reunião de textos dispersos levada a cabo por António Ventura para as Edições Colibri nesse mesmo ano. No essencial, a semiótica do tempo, sempre produtiva, continua a marginar o cadáver daquele que foi a enterrar numa “chuviscosa e fria manhã de Janeiro”…
Esquecendo a cronologia biobibliográfica do Autor que quaisquer investigações breves resolvem parcelarmente (os seus núcleos são glosadíssimos), avanço dizendo que José Duro (1875-1899) inicia a sua actividade literária por volta dos dezoito anos (tudo indica que o seu primeiro publicado seja “Dores: Flores da Inocência”, vindo a lume no “Diário de Elvas” de 4 de Agosto de 1893), estreando-se em prosa, nos lindes da narrativa breve.
A “plaquette” “Flores”, de 1896, permite uns poucos indícios do caminho futuro, antes mostrando uma predominante euforia naturista que os distraídos literários talvez desconheçam. É, porém, o último “Post-Scriptum”, datando o tempo da escrita de Portalegre, Janeiro e Março de 1896, que recobre estas “flores poéticas” de erosão e de queda. Veja-se, por exemplo, o acumulado de semas disfóricos como ‘vermes’, ‘loisa’, ‘alcova fatal’, ‘dia triste de finados’, ‘lágrima’, ‘violetas negras’, ‘gélida morada’, etc… Mas, como estava dito, não predomina nestas “flores” a “Sombra arquiletal” – há uma luminosidade antes e, principalmente, depois desusadas, bem como gráceis fulgurações regionais (as alusões a rituais religiosos, à toponímia histórica ou à boémia portalegrense) que fazem desta colectânea uma obra com as suas armas da imaginação. Por isso, não concordo totalmente com a posição de Albino Forjaz de Sampaio, quando defendia que “Flores” “nada revelava do poeta enorme” que José Duro viria a ser, opinião, aliás, seguida em 1927 por José Agostinho que chama à colectânea “livro medíocre”.
Não havendo opinião sem leitura penso que “Flores” é uma zona silenciosa da produção de José Duro que convém reabilitar. Sem o ruído em volta dos chavões exaustos e insignificantes, convido à hipoética do texto. No embalo, suspendo o pensamento e entrego à deriva quaisquer lacerações hermenêuticas. Até lá, leia-se José Duro fora da cidade e da implosão. Leia-se, por exemplo, este "Fel".
2006-02-17
entre paredes
2006-02-16
O peregrino da noite Anrique Paço d' Arcos (1906-1993)
2006-02-15
2006-02-14
O espírito livre de Agostinho da Silva (1906-1994)
2006-02-13
Regresso à cidade
2006-02-11
Wilde e a subtileza
A edição de G. F. Maine das obras de Oscar Wilde para a editora Collins continua a ser um objecto literário modelar e atractivo. Entre 1948 e 1954, por exemplo, houve uma nova edição e 4 reimpressões, o que atesta a boa recepção que The Works of Oscar Wilde sempre teve junto do público.
2006-02-10
invocação ao meu rosto
2006-02-08
Ao dorso dos dias: Orlando da Costa
A estrada e a voz de Orlando da Costa (1929-2006)
Por tuas mãos desnudas
Por nossas mãos dadas
Pelos silêncios dos vivos
E Whitmans da América
Pelos farewell dos Nerudas
E por todas as anginas em peitos de Hikmet
Pelas vozes de Guernica
E pelos silêncios do Douro
Por tudo isto amor por tudo isto
- Esta flor de sangue
de sangue que te dou
(A Estrada e a Voz, 1951)
2006-02-06
2006-02-05
Aprender a chorar: Ilse Losa (1913-2006) não morreu
2006-02-04
Olivença, a exilada!
a caminho de Olivença
Se entrarmos em Olivença
O desejo pôde mais do que eu. Vindo mesmo agora da "Livraria da Praça", depois de interessantíssima apresentação temática sobre a questão de Olivença, a cargo de dois elementos do Grupo dos Amigos do antigo território português, não consegui evitar a ânsia de desfraldar a bandeira e recitar o poema que um dia há-de ser outro, de noite e de dia. Recito do Cancioneiro de Olivença (2003), o poema de António Manuel Couto Viana
Se entrarmos em Olivença
O desejo pôde mais do que eu. Depois de ouvir, na "Livraria da Praça", uma interessantíssima conversa com dois elementos do Grupo dos Amigos de Olivença alusivas à orfandade do nosso antigo território e ao incompreensível desinteresse do nosso Estado, saí à rua e peguei na bandeira. Em simultâneo, relembrei o poema de António Manuel Couto Viana ínsito no Cancioneiro de Olivença (2003):