2012-11-29

Apresentação do livro "Sinais de Cinza - Estudos de Literatura" de António Manuel Ferreira



Na livraria Bertrand de Aveiro, no dia 1 de dezembro, às 16h00

Apresentação do livro Sinais de Cinza – Estudos de Literatura

A editora Opera Omnia acaba de publicar o livro Sinais de Cinza – Estudos de Literatura, da autoria de António Manuel Ferreira, docente do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro (UA). A obra é constituída por um conjunto de ensaios sobre as literaturas em língua portuguesa, e será apresentada na livraria Bertrand de Aveiro, no dia 1 de dezembro, às 16h00. Farão a apresentação do livro Fernanda Brasete, docente do Departamento de Línguas, e João Rocha, docente do Departamento de Química.

2012-11-28

dos "Diários" de Al Berto - 8


"do fundo dos dias vem o rasto dos répteis."   [p. 45]

Vistos daqui, todos os dias são assim: um espesso emaranhado de répteis na boca e uma lâmina marcando o seu fim. Lúcidos, na mão todos os cristais refulgem, toda a campanha mineral irradia e, no entanto, a dureza do azebre nos dentes estaca os pequenos fulgores, os prazeres nítidos.
Vem o rasto que tu não vês. Nítido na pele cava o seu ninho e o pressuroso fogo dos olhos amacia o contacto que não sentes. Assim o exercício da insensibilidade que persigo em todos os dias vistos daqui.  

2012-11-25

dos "Diários" de Al Berto - 7


"o mar abrindo gretas medonhas pela sombra azulada das paisagens." [p. 45]

A partir de agora é assim: um mar imenso rompendo o mundo e todos os líquidos escorrendo tintas viscerais. Das mãos os rios levarão a cal e da boca os impossíveis murmúrios levarão o sal ao impossível. Em breve, todo o enxofre ditará a lei e os corpos mera imagem de ruína serão. Aos pés o azul tomba a pique sobre o medonho abismo em que te deitaste.
Esquece, esquece agora o que não disseste e fizeste. Dorme, dorme apenas, como se fosses onda dentro do medo.

dos "Diários" de Al Berto - 6


"Não consigo dormir, não sei se algum dia conseguirei dormir." [p. 40]

É impossível desfocar-me das palavras e do seu fogo. Todo o cansaço oficinal desaparece perante esse breve murmúrio de algas que me alaga os olhos. Dormente, o corpo fragilizado pelo tempo rebenta nos lumes e convida a mais abismos. Não durmo. Este fogo rebenta-me nos dedos e quaisquer cedências serão indesejáveis imperfeições.
Nem sei mesmo se alguém está acordado. Chegará o dia em que os olhos mais abertos ainda serão sol. Não dormir. Estar assim neste abismo.

2012-11-21

dos "Diários" de Al Berto - 5


"pequenos insectos duros, como lâminas." [p. 40]

Como lâminas enfiadas meticulosamente na garganta, pequenos insetos duros entram pelas portas e bailam junto à pleura. Arfantes, os pulmões sopram a invasão e metabolizam a dor. Assim, toda a dureza amacia no sonho e em cada visão orgiástica lâmina a lâmina a noite declina. Sem temor, o dia irrompe nos dedos, no corpo que dedilho. Como lâmina, o corpo fende-se. 

2012-11-20

dos "Diários" de Al Berto - 4



“Sinto-o quente no lado de dentro da pele” [p. 39]
Todo o frio não há-de tolher este silêncio em que aqueço. Debruçado no avesso da pele, dos dedos brotam estes lugares de lume, estes pássaros esplêndidos como lâminas. Cortantes e silenciosas, as águas irrompem de uma fonte encostada ao coração. E não consigo outro ser que não esta acédia radical.

2012-11-19

"Gato num apartamento vazio" de Wislawa Szymborska


Gato num apartamento vazio

Morrer não é coisa que se faça a um gato.
Que há-de um gato fazer
num quarto vazio?
Subir às paredes?
Roçar-se nos móveis?
Aparentemente não mudou nada
e no entanto está tudo mudado.
Continua tudo no seu lugar
e no entanto está tudo fora do sítio.
E à noite a lâmpada já não está acesa.

Ouvem-se passos nas escadas,
mas não são os mesmos.
A mão que põe o peixe no prato
também já não é a que o punha.

Há aqui qualquer coisa que já não começa
àhora do costume,
qualquer coisa que não se passa
como deveria passar-se.
Havia aqui alguém que há muito estava e estava
e que de repente desapareceu
e agora insistentemente não está.

Procurou-se em todos os armários,
revistaram-se as estantes,
espreitou-se para debaixo do tapete.
Violou-se até a proibição
de desarrumar os papéis.
Que mais se pode fazer?
Dormir e esperar.

Quando regressar, ele vai ver.
Ele vai ver quando chegar.
Vai ficar a saber
que isto não é coisa que se faça a um gato.
Caminhar-se-á em direcção a ele
como que contrariado.
Devagarinho,
com patas amuadas.
E nada de saltos ou mios. Pelo menos ao princípio.

Wislawa Szymborska
(Tradução de Manuel António Pina)

2012-11-18

dos "Diários" de Al Berto - 3




“A casa é um compartimento do meu corpo”. (p. 33)

É do telhado que olho sobre as vísceras. Bem longe, os pés abrem-se ao dia  como a pele ao corpo. Nada que perturbe este imenso silêncio visceral. No coração, uma imensa biblioteca comanda os ritos sinusais. Uma lenta respiração encosta-se ao fígado. Renovado, o sangue inunda toda a casa.

Habito-a toda. Dos corredores dos braços ao rigor das nádegas há uma imensa sala de estar. É esta a história da habitação.

2012-11-17

dos "Diários" de Al Berto - 2


"li muito. agora já não." [p. 216]

Devorado pelo livros deito-me debaixo das chuvas e deixo-me arrastar. Não voltarei a ser um escravo daquele mistério que paira em volta, daquele silêncio interrogante que rói até ao cerne. Das aves pouco mais do que todos os líquidos em que vou.

Deito-me no tempo. Uma pequena dor fende os ossos do braço direito e a página escreve-se. Um ardor irrompe da chuva e traz-me o sangue, este livro que sou e já não leio.

2012-11-12

"Pessoa existe?" de Jerónimo Pizarro


Reunindo-se na obra um importante conjunto de textos disseminados por várias publicações periódicas, bem como alguns ensaios inéditos, alarga-se, com esta nova incisão de Jerónimo Pizarro no mundo pessoano, a bibliografia passiva sobre o nosso mais produtivo escritor de vida a haver. O título questionante do nosso mais consistente pessoano (impossível negar-lhe o título, penso) é líquido - ninguém tem Pessoa porque Pessoa não é um, é vários, em fragmentos se fazendo e refazendo...
  

2012-11-11

arrependimento


a ti chegado eis-me aqui só
entre a passagem e a criança
um íntimo desejo de dentada
uma palavra sugada todo o mal
na palma da mão esta estrada
que diz que assim não mais assim.

2012-11-10

dos "Diários" de Al Berto - 1


"A casa é um compartimento do meu corpo, é o quarto escuro onde guardo o esquecimento de tudo." [p.33]

e assim por cá abro todas as gavetas descendo ao avesso de mim, sendo-me no esquecimento, esquecendo que o esquecimento é um mar calmo.

nestas noites todos os pássaros são velozes, pois temem as chuvas que em breve desabarão nas vidraças abraçando-me toda a pele.

com al berto todo o poeta é poeta e todos os silêncios respiram.

2012-11-09

caçada

                                    a antónio josé forte


à passagem um véu de gente gritava
e de flores na boca as crianças aviões
pareciam assim tentaculares olhando.

quanto não vale o silêncio sobre a política (?)
porque aqui forte poeta aponta o abandono
a redução a “montão de cabeças petrificadas”.

e  a caça  aos ratos nem com pinças será inócua.