2008-03-18

"Esperar, para abraçar a totalidade", por D. Manuel Clemente (2ª conferência quaresmal)


Esperar, para abraçar a totalidade (cf. Spe Salvi, n.º 12)

Neste nosso segundo encontro quaresmal, sobre a virtude da esperança à luz da encíclica Spe Salvi, proponho-me comentar algumas afirmações do Papa Bento XVI, sumamente sugestivas e oportunas para a vida de todos nós.

Quero dizer que a esperança liberta e potencia infinitamente cada momento da vida, fazendo-nos tomá-lo como ocasião e estímulo para a actualidade definitiva, quando tudo for plenamente vivido, realizando o futuro – e dispensando-o assim - num eterno presente. Quer o Papa dizer que isso sucederá apenas quando os encontros que vão dando expressão à nossa história coincidirem todos no encontro que a resumirá, finalmente. Como canta expressivamente um dos hinos da Liturgia das Horas: “Passa o tempo, corre a vida, / Hora a hora o dia foge; / Mas a fé nos anuncia / Que vem perto o grande encontro”.

Realmente, as coisas não são assim tão fáceis… Porque o mais corrente e padecente é vivermos divididos entre o anseio de plenitude e o desconhecimento do seu contorno mais preciso. Bento XVI terá no número 12 da encíclica um dos seus momentos mais conseguidos, precisamente ao descrever tal contradição, por demais sentida: “De certo modo, desejamos a própria vida, a vida verdadeira, que depois não seja tocada sequer pela morte; mas, ao mesmo tempo, não conhecemos aquilo para que nos sentimos impelidos” (Spe Salvi, nº 12).

- Como resolver tal dissensão íntima? Antes de mais, aceitando seguir esse desejo profundo, mesmo sem lhe divisar o fim. E isto porque tal desejo tem um nome certo, que é exactamente o da esperança, única garantia da plenitude cabal. Continua o Papa, muito certeiramente: “Esta ‘coisa’ desconhecida é a verdadeira ‘esperança’ que nos impele e o facto de nos ser desconhecida é, ao mesmo tempo, a causa de todas as ansiedades como também de todos os ímpetos positivos ou destruidores para o mundo autêntico e o ser humano verdadeiro” (Ibidem).

Digamos assim: pode ser indefinido o objecto da esperança, mas essa mesma indefinição é que lhe garante um futuro certo. Qualquer meta mais curta e divisada, não nos tiraria donde estamos, por fora ou por dentro de nós mesmos. É exactamente por ser ímpeto que nos leva longe, como aquela verdade, só entrevista mas de grande exigência pessoal, que cantava o futuro Cardeal Newman num hino que a Liturgia das Horas felizmente inclui também: “Luz terna, suave, no meio da noite, / Leva-me mais longe… / Não tenho aqui morada permanente: / Leva-me mais longe…”.

O inglês Newman, em vias de se converter a um catolicismo “romano” com que não simpatizava, sentia entretanto que para aí mesmo o levava uma luz ainda bruxuleante, mas indubitavelmente segura. Rendia-se a ela, mesmo temendo o futuro que afinal ansiava, em absoluta verdade. E insistia: “Que importa se é tão longe, para mim, / A praia onde tenho de chegar, / Se sobre mim levar constantemente / Poisada a clara luz do teu olhar? / […] Se Tu me dás a mão, não terei medo, / Meus passos serão firmes no andar. / Luz terna, suave, leva-me mais longe; / Basta-me um passo para a Ti chegar”.

Assim nos leva a esperança. E, mais do que nesse trecho de Newman, que ainda se circunscrevia na vida próxima e terrena, a tensão anelante que nos transporta levar-nos-á à vida eterna e celeste. Não de modo alienante, mas transbordante.

Assim sendo, mantenhamo-nos na tensão. – Um anelo que nos transporta onde, se não divisamos meta nem rosto? Aqui trabalhará a imaginação, certamente. Mas não a deixemos despistar-se em rumos sem sentido. Como se nos puséssemos a pensar no além com categorias de aquém, com a frustração óbvia de prolongar o que já não basta.

– Em que pensamos, por exemplo, sob o nome de eternidade? O Papa desenvolve: “Com efeito, ‘eterno’ suscita em nós a ideia do interminável, e isto nos amedronta; ‘vida’ faz-nos pensar na existência por nós conhecida, que amamos e não queremos perder, mas que, frequentemente, nos reserva mais canseiras que satisfações, de tal maneira que, se por um lado a desejamos, por outro não a queremos” (Spe Salvi, nº 12).

- Se não é esse o caminho, por onde deveremos então prosseguir, na imaginação tão precária como indispensável do objecto da esperança que não pára?

O dilema é árduo, porque não podemos obviá-lo. Por um lado, não podemos deixar de esperar; por outro, é-nos difícil imaginar o quê… A não ser que não se trate de “o quê” mas de “quem”. E que deste “quem” já tenhamos apercebido o rosto.

Sabemos certamente – e certeiramente! - o que o Catecismo da Igreja Católica nos lembra: “Este mistério de comunhão bem-aventurada com Deus e com todos os que estão em Cristo ultrapassa toda a compreensão e toda a representação” (nº 1027). Ou ainda: “Em virtude da sua transcendência, Deus não pode ser visto tal como é, senão quando Ele próprio abrir o seu mistério à contemplação imediata do homem e lhe der capacidade para O contemplar” (nº 1028). Mas, acreditamos, antes de mais e acima de tudo, que, em Cristo, Deus se tornou presente para sempre às nossa vidas, preenchendo o aquém e o além delas: “Na glória do céu, os bem-aventurados […] já reinam com Cristo. Com Ele ‘reinarão pelos séculos dos séculos’ (Ap 22, 5)” (nº 1029).

O rosto de Cristo é um rosto total, onde, de certo modo, cabem até todos os rostos. Um encontro final, que inclui todos os encontros e consiga mesmo superar os desencontros havidos.

Ora, diz-nos o Papa, é dessa totalidade que se trata, como único alimento consistente duma indispensável esperança. Oiçamo-lo: “A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe” (Spe Salvi, nº 12).

Um pouco onírico até aqui, poderia parecer-nos. Realmente não, porque tudo se realiza no encontro com Alguém que nos procurou há dois mil anos e nos receberá sempre, conforme a promessa que deixou. A promessa que assegura a esperança e a alegria: “Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria. Assim o exprime Jesus, no Evangelho de João: ‘Eu hei-de ver-vos de novo; e o vosso coração alegrar-se-á e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria’ (16, 22). Devemos olhar neste sentido, se quisermos entender o que visa a esperança cristã, o que esperamos da fé, do nosso estar com Cristo” (Ibidem).

E a encíclica alude, muito a propósito, ao nº 1025 do Catecismo: “Viver no Céu é ‘estar com Cristo’. Os eleitos vivem ‘n’Ele’; mas n’Ele conservam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade, o seu nome próprio”.

“Conservam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade”: Óptima definição daquilo que espera a quem espera. A eternidade não é muito tempo, mas tempo completo e total, que já não precisa de desdobramento; e essa totalidade não nos dilui, antes nos realiza inteiramente como pessoas, isto é, em relação perfeita com Aquele que a potencia infinitamente, por ser “Deus connosco”, em qualquer circunstância actual. No fim estaremos nós e Ele: e n’Ele temos acesso ao Pai no Espírito; e n’ Ele reencontramos tudo, realizando a esperança.

Uma questão de totalidade, uma questão de actualidade: uma questão de sabedoria, que as une às duas. Sabedoria significa um saber saboreado, existencial e não meramente pensado. Só amadurece com o tempo, que aí encontra a sua razão de ser, como cadência do entendimento das coisas, na respectiva razão de serem, de sermos com elas, de sermos com Ele, definitivamente.

Mas isto que digo e será fácil de dizer, parece mais, hoje em dia, fácil de esquecer. Se só com tempo as coisas amadurecem, ainda mais no homem do que na natureza, então o arco da existência humana há-de ser dilatado, como felizmente a ciência o vai permitindo. E deveríamos estar muito felizes com isso, valorizando a idade avançada e mantendo-a bem integrada na convivência social, com muito ganho desta.

Mas tal não sucede, ou não sucede suficientemente, numa sociedade como a nossa. Por várias “razões”, sabemo-lo bem: porque pais, filhos e netos trabalham ou estudam fora, por vezes longe e geralmente separados uns dos outros, tornando difícil a manutenção em casa dos ascendentes mais idosos, sobretudo se doentes e dependentes.

Porque as sugestões de consumo encontram mais escoamento nos jovens do que nos idosos, o que também leva os primeiros a ver a vida num horizonte mais breve e desmotiva os segundos em relação ao futuro que lhes sobra.

Porque a própria política tem dificuldade em ultrapassar o crescimento pelo desenvolvimento, ou seja, uma perspectivação material das coisas por outra mais integral, em que contem sobretudo as pessoas e a realização das suas capacidades, com relevo para a sabedoria acumulada.

É um facto que não se apreende a vida e o mundo aos vinte como aos quarenta, aos quarenta como aos sessenta e por aí adiante. E é também um facto que, ganhando a sociedade com a juventude e a criatividade dos mais novos, não ganha menos com a experiência acumulada e a opinião provada dos mais velhos. Infelizmente, tardamos em ser consequentes neste importantíssimo ponto, organizando a sociedade – e até as nossas comunidades crentes? – de modo a que nenhuma geração seja dispensada, nenhuma sabedoria desperdiçada.

Existem iniciativas promissoras, das universidades seniores às actividades sociais integrando crianças, jovens e adultos de menos ou mais idade. Mas ainda há muito a pensar e a realizar, para que ganhemos todos com o que vida ensinou aos outros. Quando Jesus é levado ao templo, por Maria e José, culminando assim a antiga esperança de Israel, é reconhecido e divisado por quem já o podia acolher assim. Precisamente Simeão, a quem “tinha sido revelado pelo Espírito Santo que não morreria antes de ter visto o Messias do Senhor”; e Ana, “de idade muito avançada” que “não se afastava do templo, participando no culto noite e dias, com jejuns e orações” (cf. Lc 2, 25 ss).

– Significa isto que a idade é lastro conveniente para se apurar a esperança e preparar a visão? E que serão por isso os anciãos quem melhor cantará a salvação e dela falará a todos quantos esperam? A figura daquela esperança era certamente o Menino; o coração que a acolhia era ancião. Uma e outra coisa não estão absolutamente dependentes da idade de cada um, mas estão naturalmente relacionadas com uma depuração da vida e da esperança que, em geral, o tempo proporciona gradualmente.

Creio poder afirmar que um dos maiores desperdícios desta sociedade de tantos consumos é precisamente o da pouca valorização dos idosos. Há felizmente muita iniciativa, particular e pública, que lhes proporciona boas ou razoáveis condições materiais de vida. Mas há muitíssimo a fazer no sentido de valorizar e recolher tudo o que eles ainda podem dar; especialmente tudo o que só eles podem dar-nos, a partir da experiência acumulada, a partir da sabedoria. E neste ponto há realmente muito a fazer, para estimular e acrescer o lugar e a contribuição dos idosos na sociedade, na família e também nas instâncias públicas e administrativas.

Cito palavras oportunas dum conhecido psiquiatra em artigo recente: “O aumento da esperança de vida impõe um novo olhar sobre os problemas do envelhecimento”. É imperiosa a conclusão, porque mais tempo de vida tem de significar também maior valorização social e cultural dela. Tanto mais que vários concidadãos nossos, em diversas áreas, da cultura à intervenção pública, “continuam, depois dos 80, a consolidar a ideia de que existem cada vez mais pessoas, na agora chamada quarta idade, em condições de serem cada vez mais úteis e necessários”. Continua, mais adiante, o mesmo autor: “Como salienta Helena Marchand no seu livro sobre os problemas do envelhecimento, temos de considerar os mais velhos “A Idade da Sabedoria”. Sabem mesmo muitas coisas: têm uma importante experiência de vida, podem ter motivação para transmitir muitas coisas às gerações mais novas e têm, quase sempre, um profundo conhecimento dos valores e das prioridades, o que torna o seu contributo indispensável na família e na sociedade”. E concretiza os bons efeitos que terá para o País, para as famílias, para a sociedade e para a cultura em geral, uma valorização maior e mais consequente dos idosos e do seu inestimável papel: “Em Portugal, onde falta tanto uma visão reflectida do mundo, importa ouvir os mais velhos. […] Na família, os avós são cada vez mais importantes: herdeiros dos escombros dos divórcios, crianças e adolescentes encontram nos avós a noção de continuidade intrapsíquica da família, sinal essencial para a estruturação do seu próprio futuro. […] Para mantermos os idosos em boa saúde mental, temos de começar por aceitar que eles podem ter menos instrução (a que não tiveram acesso, em muitos casos) mas muitas vezes têm mais cultura, pois conservam um conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos e costumes que estruturam uma comunidade. Depois, temos de os estimular na participação a todos os níveis, utilizando a sua capacidade reflexiva sobre os problemas”. Terminando taxativamente: “No futuro, a evolução das sociedades dependerá do modo como tratarmos as crianças e os velhos”(Daniel Sampaio – A 4ª idade. Pública, 20 de Janeiro de 2008, p. 74).

É realmente assim, de facto; e deve passar a sê-lo de direito, quer pelo respeito e consideração que os idosos nos merecem, nesse novo quarteirão da sua vida de horizonte centenário, além dos setenta e cinco anos, quer pelo apoio que merecem da sociedade e do Estado, e em próprio benefício duma e doutro. E, quando se levanta um rumor aparentemente humanitário, no (sem)sentido de aceitação da eutanásia, é importantíssimo dizer que o caminho tem de ser absolutamente outro, ou seja, o do acompanhamento dos idosos, sobretudo na debilidade e na doença, com todos os subsídios da segurança e da medicina, integrando os cuidados paliativos, de tanta eficácia actual.

Nós não podemos dispensar os idosos e os doentes, nem dispensar-nos deles. Para um cristão, tal decorre imediatamente do comportamento de Cristo, que nunca se alheou das fronteiras difíceis da vida humana, pois que vinha precisamente salvá-las e transpô-las. Mas para todos nós, seres humanos do início do século XXI, essa tem de ser a ocasião mais certa para efectivarmos e garantirmos a nossa humanidade, nossa e dos outros. E todos ganharemos com isso: porque “a felicidade está mais em dar do quem em receber”, sendo esta frase de Jesus, recordada por Paulo a propósito do socorro aos mais fracos (Act 20, 35); porque não temeremos a velhice em nós, quando a acompanhamos já nos outros; porque receberemos no trato dos idosos as lições mais comprovadas da existência humana.

A nossa sociedade vale e valerá em grandíssima parte o que dispensar positivamente aos seus anciãos e enfermos. Da parte destes, garantem-nos os que contactam mais habitualmente com eles, nenhum quer partir, se é realmente acompanhado e estimado aqui; da nossa parte, encontraremos em tal convivência o sentido mais belo e mais seguro da nossa existência, seja em que fase for, seja em que situação aconteça. Apuraremos a eternidade, em suma, mais qualitativa do que extensivamente, para retomarmos o trecho papal de que partimos. Treinaremos o encontro definitivo e total, nestes encontros inalienáveis de afora, com saudáveis e doentes, novos e velhos, porque em todos se alargará o coração e ganhará a vida. E não, nunca, doutro modo.

Esclarecedoramente, o Papa Bento XVI lembrou há pouco que as “pressões eutanásicas” aumentam sobretudo “quanto se insinua uma visão utilitarista em relação à pessoa”. E ainda: “Numa sociedade complexa, fortemente influenciada pelas dinâmicas da produtividade e pelas exigências da economia, as pessoas frágeis e as famílias mais pobres arriscam-se, nos momentos de dificuldade económica ou de doença, a serem esquecidas”. Aproveitou o Papa para pedir mais apoio público para as famílias que acompanham doentes, como já os vão tendo em relação aos nascimentos (cf. Agência Ecclesia, 26 de Fevereiro de 2008, p. 12).

E um conceituado cientista da nossa cidade, O professor Daniel Serrão, a cujos excelentes oitenta anos presto aqui a minha homenagem, acaba de afirmar, também sobre este ponto: “Não estamos autorizados a fazer aos outros o que não queremos que nos façam a nós. Não interessa discutir a eutanásia, mas sim os cuidados paliativos […]. Porque as dores são tratáveis, a vida até à morte pode ser digna e feliz” (Jornal de Notícias, 1 de Março de 2008, p. 19)

Gostaria de terminar esta conferência como terminei a primeira, ou seja, dando ouvidos à poesia. E isto porque, porventura mais do que qualquer prosa, a decantação da palavra nos levará mais perto do que só se pode entreouvir, do essencial. A religião, sondando as coisas primeiras e novíssimas, é parente próxima da poesia e da música.

Nesta senda, convém retomar uma passagem, já atrás citada, da segunda encíclica de Bento XVI: “A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe” (Spe Salvi, nº 12).

- Pois não é disso mesmo que se trata, quando falamos das virtualidades da velhice? De ir saindo da temporalidade de que somos prisioneiros, de irmos abraçando a totalidade? E como sabê-lo sem já ter sugado a seiva do tempo? E como chegar à totalidade sem a ter apercebido nas coisas, entretanto?

Fernando Echevarría - poeta também da nossa cidade e primeiro agraciado com o prémio de cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, em 2005 – tem-nos oferecido algumas meditações poéticas sobre a velhice que trago aqui com todo o reconhecimento e oportunidade.

Escolho poucas, de entre as muitas que podiam ser. Como esta, sobre a transparência que o tempo dá finalmente aos lugares, a serenidade que só se alcança para além da precipitação: “Iremos indo? Ou, sobretudo, estamos / a receber, na idade que nos vem, / profunda transparência de lugares? / E, além dela, até / inteligência, solidão? A análise / é o que nos chega talvez / com ímpeto mais lento. / E, mesmo, quase / com a abstrusa evidência que é de lei / quando o que se dá vem dar-se / a irmos indo por um vagar que vem” (Fernando Echevarría – Obra inacabada. Edições Afrontamento, 2006, p.730).

“A irmos indo por um vagar que vem…”. Salta-me à memória nesta circunstância o último encontro que tive com o saudoso Cardeal D. António Ribeiro, patriarca de Lisboa, há dez anos falecido. Estava muito doente já e resumiu-me aquele momento de dor e esperança com esta frase absoluta: “Estou à espera que Ele venha!”. São assim os crentes, quando os anos, amadurecidos na fé, lhes ensinam - e nos ensinam por eles - o que definitivamente deve acontecer.

E com isto estamos a falar da liberdade. Da desmedida largueza porque o corpo ainda pulsa, sugado tempo a ansiar por mais, como me costuma repetir um amigo nonagenário: “Sabe a pouco…”. Da liberdade que Echevarría também canta, mesmo quando não lhe diz o nome: “Estamos perto de onde o tempo alarga / a sua paração. E suga o fundo / mais longínquo de idades, tão arcaicas / que chegam só em escuridão de tufo. / O ímpeto invisível da chegada / apenas incrementa o espaço. O último / horizonte. Que recrudesce. Gasta / o anterior. De cuja altura e uso / prescinde. Para só se erguer mais alta / a paração. A abóbada e o culto / da inteligência a expandir a escala / da invisibilidade. Até que o susto / nos fique perto. E, ao mesmo tempo, a alma / resuma o corpo à lentidão do pulso” (Ibidem)

Chamando-se iluminação à vida cristã, a velhice sábia e serena é a sua última refracção, qual direcção última da luz no seu meio definitivo. – E quanto precisamos nós desta última orientação de quem já a sabe! Como, de novo, no canto do poeta: “Com os anos a luz vira a mais doce. Entrega / a transparência de sabedoria / aos passos graves. À expansão aberta / de outro fundo de luz que inunda a vista. / Ser-se feliz é mais do que átrio. Leva / em si a lucidez de, a cada dia, / ir entrando por uma inteligência / que se despede da melancolia. / Mas não do cunho desse pulso doce / que toma conta de mais luz ainda, / embora a brisa vá trazendo a noite / à refulgente inclinação do dia. / E à da velhice que recruta e move / sua fronteira para lá da linha” (Ibidem, p. 838).

- Fronteira para lá da linha? Totalidade vivida num encontro, como escreveu o Papa? - Urgência de reconhecer e ganhar social e culturalmente tudo quanto a velhice enxerga, só ela?!

Creio que nada disto é forçado, antes forçoso. Para profetizarmos por fim com Echevarría: “Entardecíamos em Deus. No doce / apuro da sua dádiva. / Era um Outubro cúmplice, por onde / o lúcido licor vinha às palavras / explicitar-se. E ao seu lume a pôr-se / no júbilo do espírito e das águas. / Decantava-se sermos o suporte / desse momento. Da doçura amarga / que altíssima subia pela morte / e dava em vida. Que só Deus nos dava” (Ibidem, p. 820-821).

Manuel Clemente, Sé do Porto, 6 de Março de 2008