2008-03-30

Rodrigo Emílio: e passam quatro anos e dois dias...


PRIMEIRO canto para a morte


A MARIA EDUARDA DOS REIS COLLARES


Depois, a morte. Como o poente dos poentes.

Como a noite das noites. Como bênção.

E que todos me esqueçam - bem contentes.

(Não quero que me lembrem - e entristeçam...)


O poema que não escreverei. O rosto por ver

Da mulher que não amei em ti. A voz que eu não ouvi

(E é búzio em mim)

A dizer de cor o livro de Amor que ficou por ler

E que eu não sei nem alcancei saber se por não ter

Principiado, não terá fim.


Toda a saudade do que não vive (de quem não pode o que quer)

E dentro em mim vive, sempre e sem-fim,

Apegada ao que ficou de uma vida a morrer

O que, do nada, sobrou, para depois de mim.


Depois, a morte. A ínsita cidade

Dos tempos do silêncio a que eu aporte,

Menino velho e mendigo da eternidade,

Muito antes do depois. Depois, a morte.


E pela noite dentro nós os dois...

Noite nunca, túnel sempre, noite igual...

E depois de mim, depois de ti, depois, depois,

- Depois, a morte da Morte imortal!


RODRIGO DE MELO (Jornal de Letras e Artes, 19 de Agosto de 1964)

2008-03-24

"A comer! Alimentación y cultura"


 

¡A comer!. Alimentación y cultura

Sumario

¡A comer! Alimentación y cultura. Concha García-Hoz Rosales. Mª Antonia Herradón Figueroa


La dimensión social de la cocina desde la antropología de la alimentación. Isabel Gómez Turmo


La contribución americana a la dieta europea. Ángel Lora González

La mesa como centro social. María del Carmen Simón Palmer

El pan ritual en España. Consolación González Casarrubios

Cómo alcanzar la belleza y ser elegante. Mercedes Pasalodos Salgado


Catálogo

Edita
Museo Nacional de Antropología, 1998, Madrid
28x23 cm, 175 páginas. Fotografías.
Encuadernación en rústica

30 €

2008-03-23

Estimulante Páscoa de 2008


O verdadeiro pastor é Aquele que conhece também o caminho que passa pelo vale da morte; Aquele que, mesmo na estrada da derradeira solidão, onde ninguém me pode acompanhar, caminha comigo servindo-me de guia ao atravessá-la: Ele mesmo percorreu esta estrada, desceu ao reino da morte, venceu-a e voltou para nos acompanhar a nós agora e nos dar a certeza de que, juntamente com Ele, encontramos uma passagem.

(Bento XVI - Spes Salvi)

Cristo ressuscitado é a vitória de Deus sobre a morte (L. Giussani).

Que esta Páscoa de 2008 seja para cada um de nós, um tempo que nos confirme na certeza da positividade da vida.

Uma Santa Páscoa

Martim de Gouveia e Sousa

A deposição no túmulo, Caravaggio (1602/4)

Pinacoteca vaticana

[uma ideia de Pedro Aguiar Pinto]

2008-03-21

nocturno

noite dentro a palavra ferve.

2008-03-20

3ª Conferência Quaresmal do Bispo do Porto: "Orar, para aprender a esperar"


Conferência quaresmal do Bispo do Porto


Orar, para aprender a esperar (cf. Spe Salvi, N.º 32)

.

A nossa terceira e última conferência desta Quaresma, inspirada também na encíclica Spe Salvi, traz-nos as considerações de Bento XVI sobre “a oração como escola da esperança”. Incluem-se na última parte do seu texto, que referem os “lugares” de aprendizagem e de exercício da esperança.


Como tudo quanto de Deus vem e a Deus leva, a esperança, tendo-O como fito, requer da nossa parte apropriação agradecida e exercício correspondente. Exercício que inclui purificação, tanto das motivações como dos anseios.
Há então lugares e ocasiões para aprender e exercitar a esperança, que o Papa resume em três: a oração, primeiro; a acção, a acção sofrida, depois; o juízo, o juízo divino e purificador, finalmente.
Sobre a oração, diz a encíclica, entre outras coisas igualmente importantes, no nº 32: “O primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando já ninguém mais me escuta, Deus ainda me ouve”. O Papa lembra a experiência, ainda recente, do cardeal vietnamita Nguyen Van Thuan - treze anos preso, nove anos dos quais em isolamento, por causa da sua fé -, para asseverar que “a escuta de Deus, o poder falar-lhe, tornou-se para ele uma força crescente de esperança”.

Realmente assim foi, para ele e para todos os que ganhámos depois, com o seu testemunho e o seu estímulo. A esperança manifesta-se e cresce em cada um de nós, quando tudo o mais se desvanece como apoio ou desaparece como álibi. É essa a experiência tão libertadora e convincente dos mártires de todos os tempos, cruentos ou incruentos.

Mas, de seguida, Bento XVI lembra um testemunho antigo, muito do seu gosto e referência, o do grande pastor e doutor de Hipona; agora, sobre a purificação da esperança e do desejo, sobre a purificação da oração, quando autêntica: “[Santo Agostinho] define a oração como um exercício do desejo. O ser humano foi criado para uma realidade grande, ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado. ‘Assim procede Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o desejo; e, com o desejo, dilata a alma, tornando-a mais apta a receber os seus dons’” (Ibidem, nº 33).
Porque de purificação se trata, até ficarmos sem mistura: “O modo correcto de rezar é um processo de purificação interior que nos torna aptos para Deus e, precisamente desta forma, aptos também para os homens. Na oração, o ser humano deve aprender o que verdadeiramente pode pedir a Deus, o que é digno de Deus. Deve aprender que não pode rezar contra o outro” (Ibidem).

Nesse definitivo estádio, fé e esperança redundam necessariamente em caridade, critério primeiro e último. Como o vamos sabendo, numa “Quaresma” que não terminará certamente na próxima celebração pascal.

Não há aqui qualquer contradição de sentimentos, mas apuramento deles e conversão contínua. É importante dizer e repetir, antes de mais a nós próprios, que “só Deus basta”. A frase, tão conhecida, é de Santa Teresa de Ávila, que preferiu chamar-se “de Jesus”. Mas isto mesmo significou para ela um longo e perfeito exercício de purificação da esperança, ou esperança purificadora, como finalmente cantou: “Nada te perturbe / nada te espante, / tudo passa, / só Deus não muda. / A paciência / tudo alcança. / Quem a Deus tem, / nada lhe falta. / Só Deus basta” (Santa Teresa de Jesus – Obras completas. Paço de Arcos: Edições Carmelo, 2000, p. 1088).

Espontaneamente, não chegaríamos aqui, antes ao enfraquecimento das convicções e à variação dos desejos. Assim vai, aliás, algum sentimento contemporâneo, pois que o chamado pós-modernismo recusa tanto os pontos de partida comuns como os objectivos definidos...

Vale-nos o Espírito, vale-nos a oração da Igreja que Ele mesmo suscita, aproximando-nos, persistentemente, dos desejos de Cristo e da vontade do Pai; trabalha-nos na esperança, como ensina o Catecismo da Igreja Católica: “O Espírito Santo, que nos ensina a celebrar a liturgia na expectativa do regresso de Cristo, educa-nos para orar na esperança. E vice-versa, a oração da Igreja e a prece pessoal nutrem em nós a esperança” (nº 2657).

Mesmo que tal demore e até por isso mesmo, já que não se aprende doutro modo, recorda o Catecismo, citando sucessivamente Evágrio e Agostinho: “Entremos no desejo do seu Espírito [de Deus] e seremos atendidos: ‘Não te aflijas, se não recebes logo de Deus o que Lhe pedes: é que Ele quer beneficiar-te ainda mais pela tua perseverança em permanecer com Ele na oração’. Ele quer ‘que o nosso desejo se exercite na oração dilatando-nos, de modo a termos capacidade para receber o que Ele prepara para nos dar’” (nº 2737). Em suma, a esperança alarga-nos, pela persistência orante, à sua própria (des)medida.

As boas relações alargam a alma e a vida, sabemo-lo bem. Diz o nosso povo, com saber de experiência feito: “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. Tratando-se de Deus, pólo infinito duma relação absoluta, muito mais ainda, podendo dizer-se assim: “Diz-me com Quem andas e dir-te-ei quem serás”. Ou ainda: “Diz-me com Quem andas e dir-te-ei quem ainda não és”, sendo este “ainda” um modo de dizer a esperança.

Porque de relação se trata, como definiu Teresa de Jesus, de modo igualmente lapidar, no Livro da vida, 8, 5: “E outra coisa não é, a meu parecer, oração mental, senão tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós – com quem sabemos que nos ama” (Obras completas, p. 73). E, sendo relação, será também legitimamente objectivada, desde que tal precisão da lembrança e da imaginação encontre a Deus como Ele mesmo quis ser encontrado, ou seja, na humanidade com que nos chegou em Cristo. Di-lo a mesma santa e doutora da Igreja, também no Livro da vida, 22, 9: “É grande coisa, enquanto vivemos e somos humanos, trazer a Deus humanado diante de nós” (Ibidem, p. 178).

Mas nem aí pararemos, pois, com Cristo, a oração alonga-nos até ao Pai, além de qualquer imaginação, sempre exercitando a esperança. Aí nos leva esta passagem de São João da Cruz, coevo de Teresa, na Subida do Monte Carmelo, 15, 1: “É preciso ter em conta o que pretendemos: que a alma se una a Deus pela memória em esperança. Espera-se o que não se tem. Quanto menos coisas nela houver, mais capacidade e mais possibilidade existe para esperar o que se espera; por conseguinte, mais esperança se tem. Quanto mais a alma limpar a memória das formas e recordações que não são Deus, tanto mais em Deus terá a memória e mais vazia para esperar que Ele a preencha plenamente” (Obras completas. Marco de Canaveses: Edições Carmelo, 2005, p. 334). Como nas bem-aventuranças, são a fome e a sede a serem saciadas, não a fartura; o choro a ser consolado, não a rápida alegria.

É para todos nós, tal doutrina. Mas na consagração religiosa e monástica, encontra uma particular incarnação, transformada a terra em desejo do céu, também estímulo para todos os crentes, pois aí nos coloca Cristo a meta universal. Ainda na tradição carmelitana, encontrou em Santa Teresa do Menino Jesus formulações deste género, poético no caso, com claro eco salmódico: “Estou ainda na terra estrangeira, / Mas pressentindo a felicidade eterna, / Oh! quereria deixar já a terra / E contemplar as maravilhas do Céu… / Quando sonho com as alegrias da outra vida / Do meu exílio já não sinto o peso / Visto que em breve para a minha Pátria / Eu voarei pela primeira vez!...” (Obras completas. Marco de Canaveses: Edições Carmelo, 1996, p. 770).

E Isabel da Trindade, no seu Último retiro, nº 33, deixa-nos um precioso contributo, evidenciando-nos a vida cristã como caminho em Cristo, libertando-nos n’Ele, em esperança realizadora e realizada: “Caminhar em Jesus Cristo, parece-me que é sair de si, perder-se de vista, abandonar-se para entrar mais profundamente n’Ele e a cada minuto que passa, tão profundamente que aí se fique enraizada […]. Quando a alma está fixa n’Ele em tais profundidades, quando as suas raízes assim se afundaram, a seiva divina expande-se nela em ondas, e tudo o que é vida imperfeita, banal, natural é destruído; e então, segundo a linguagem do Apóstolo, ‘o que é mortal é absorvido pela vida’ [2 Cor 5, 4]. […] Por ser livre, liberta de si mesma e de tudo, [a alma] pode então cantar com o salmista: ‘Se um exército me cercar, não temerei; se um combate surgir, terei esperança contra tudo’ [Sal 26]” (Escritos espirituais. Oeiras: Edições Carmelo, 1989, p. 121-122).

Com estes contributos da mais lídima espiritualidade cristã, retomemos a frase de Bento XVI, porventura melhor entendida e recebida, neste momento quaresmal: “O coração [humano] é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado”. Dilatação, dilação: são também nomes da esperança, no seu exercício; da oração, no seu caminho interior.


Voltemos agora à actualidade de que, aliás, não saímos. Sobretudo quando ouvimos as considerações dos místicos, pois que nos tocam sempre pela sua intensidade existencial e experiencial. Teresa de Jesus e João da Cruz, Teresa do Menino Jesus e Isabel da Trindade, Agostinho lembrado por Bento XVI, não nos falaram apenas dos seus movimentos de alma ou moções espirituais, em sentido retirado e íntimo.

Todos eles viveram o seu tempo, do século IV-V ao XVI, ao XIX-XX. Tempos agitados na sociedade e na religião que lhes coube. Tempos que encontraram no coração e na inteligência de cada um deles uma repercussão particular, como sentimento e indagação. Agostinho tornou-se assim a expressão mais subida e profética do fim de um mundo e começo de outro, quando o Império Romano ruiu com ele, no Ocidente. Teresa de Jesus e João da Cruz, reencontraram nos claustros que reformaram a unidade mais interior e alta que a Cristandade perdia exteriormente, naquele dilacerado tempo. Teresa do Menino Jesus viveu intensamente a crise intelectual e civilizacional dum mundo “sem Deus” e abriu-nos, numa infância espiritual custosa e abandonada, a possibilidade que unicamente temos, do presépio à cruz. Isabel da Trindade insistiu na vida trinitária, prefaciando o que hoje queremos reviver como dimensão essencial da oferta cristã. Tudo concreto quando profundo, tudo vivido quando rezado. Tudo o que mais importa para o século XXI.

Que também “sufoca porque não adora”, como já escreveu São Pedro Julião, há século e meio. E escreveu-o nesta Europa, sua e nossa, onde as possibilidades económicas permitiriam quase tudo, se não nos despistássemos tanto, precisamente no que às esperanças respeita.

Saiu há pouco uma sondagem da Universidade Católica, “a pretexto do aniversário do [jornal] PÚBLICO, junto de duas gerações – a que tinha 18 anos em 1990 e hoje tem 35-37, a que tinha zero e agora tem 17-19 anos”. A jornalista que comenta os dados recolhidos conclui que “não existem diferenças muito significativas entre elas ao nível dos valores e atitudes sociais”, mostrando-se os dois grupos “mais tolerantes e liberais do que o resto da população” (cf. Kathleen Gomes – Esperava um gap geracional?. Público. P 2, 5 de Março de 2008, p. 8).

Não detectaremos então nenhuma fenda geracional nestes últimos 18 anos, no que respeita à privatização dos valores (com a tolerância mais generalizada) e à individualização (com menos referências institucionais). Mas poderemos constatar que “não tem uma cara demasiado feliz a geração dos 35-37 anos, quando faz rewind e pensa nas expectativas que tinha aos 18 anos em relação ao que viria a ser a sua vida pessoal. O reality check é amargo: quase metade dos inquiridos (45 por cento) diz que o seu percurso profissional está abaixo das expectativas que tinha na altura e apenas 15 por cento consideram que está acima; 43 por cento avaliam que em termos de qualidade de vida está abaixo das expectativas contra 20 por cento que consideram estar acima” (Ibidem).

Dito doutro modo, quase metade dos nossos concidadãos que completam a sua quarta década de vida sente como goradas as expectativas que tinha na juventude, quer profissionalmente, quer quanto à qualidade de vida. E, sobretudo, são relativamente poucos os que entendem que as excederam.

Outros resultados da sondagem fazem a jornalista comentar, por exemplo: “A juventude é optimista por natureza, mas esta não o será excessivamente – e se em 1990 se tivesse feito as mesmas perguntas à geração que então tinha 18 anos, o optimismo seria previsivelmente maior” (Ibidem, p. 14).

Não pretendo extrapolar os dados nem o assunto, que devem suscitar a atenção de todos, nas várias instâncias da sociedade e da política. Mas, referindo-os à meditação que agora vos proponho, não posso deixar de me interrogar sobre as expectativas que induzíamos nos jovens de há duas décadas, como as induzimos aos de hoje… Já então a publicidade prometia tudo, materialmente falando, e com uma persuasão tecnológica cada vez mais sofisticada. – O que era levada a apreciar e desejar a juventude do princípio dos anos noventa, como a de hoje também? – Que padrões de êxito lhe eram e são hoje apresentados e como se “aconselha” a consegui-los? E, acima de tudo, como se educa o desejo e se alarga a aspiração dos mais novos?

Reflectíamos na anterior conferência quaresmal sobre o papel imprescindível dos mais velhos para uma vida sócio-culutral mais consistente e sábia. Pois bem: - Não nos “ensina” a vida a comprovar valores e a apurar verdades, mormente em relação ao mais existencial, universal e duradouro?! Em relação ao que “vale a pena”, como dizemos numa locução já conclusiva, pois o que vale importa pena, o êxito é fruto da dedicação e do custo?!

E entre agora cada um de nós no campo fértil da sua própria memória e veja bem, sobretudo quando já passou o meio século, o que resultou consigo e com os seus coetâneos, em termos de realização pessoal e inter-pessoal. Repare – como certamente reparará – na importância que tiveram os exemplos e os estímulos positivos, o relacionamento familiar e inter-geracional, os ambientes saudáveis e propícios. E, sobretudo, quando teve tal oportunidade e graça, a integração eclesial que certamente lhe trouxe a pessoa viva e a mensagem fecunda de Jesus Cristo, compartilhadas em catequese e celebração, amizades e caridade.


Sim, deixai-me insistir: – Quantos contemporâneos nossos, que connosco conviveram na infância e na juventude, persistiram na fé e na prática cristãs? - Não foram precisamente os que ganharam aquela dilatação da alma que só a oração proporciona, activando a esperança? Deixai-me ser ainda mais concreto e preciso: - Que lugar ocupa nas nossas catequeses e iniciações cristãs a aprendizagem da oração, o estímulo adorante e contemplativo? Ou então, e já fora do âmbito estritamente confessional: - Que educação fazemos – pública ou particular – que desenvolva nos mais novos as capacidades interiores de admiração e fruição estética, criativa e profunda?


Para isso, não esperemos muito dum mercado corriqueiro, que só queira lucro. Este preferirá consumidores imediatos, frustrados a prazo. Como tudo o que é pressionado a crescer artificialmente, para morrer mais depressa. Muito pelo contrário, só no caminho se chega, só na demora se mora, só na esperança se alcança. Depois da vigília nocturna, só depois, pode fulgurar no céu de todos e cada um a estrela matutina.


São essas, aliás, as derradeiras palavras escritas, para preencherem agora toda a vida e pedagogia eclesiais: “ ‘Eu [Jesus] sou a brilhante estrela da manhã.’ O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem!’. Diga também o que escuta: ‘Vem!’ […] - Ámen! Vem Senhor Jesus!” (Ap 22, 16 ss).


E, nestes termos, será certamente uma prioridade pastoral educar os jovens e a todos os crentes numa esperança absoluta e purificada, que possa acolher uma resposta igualmente absoluta e plena. Nada nos basta senão O que nos cria para si. Aqui sim, poderemos falar de liberdade e paz.


Como nas conferências anteriores, tenho todo o gosto de convocar agora um testemunho poético, que, por seu lado e maneira, nos confirme ainda. E vou buscá-lo a Sophia de Mello Breyner Andresen que, sempre tão extasiada perante a clareza natural das coisas, pressentiu e soube que esse era ainda e só um princípio. Um princípio do que residia muito além. E esta como que tensão atravessa todo o estro de Sophia, em sucessivo canto.


Compilados em 1944, por exemplo maior, são estes versos, de sede plena e esperança certa, que só podemos reproduzir no seu todo: “Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser vivo e total, / À agitação do mundo do irreal, / E calma subirei até às fontes. / Irei até às fontes onde mora / A plenitude, o límpido esplendor / Que me foi prometido em cada hora, / E na face incompleta do amor. / Irei beber a luz e o amanhecer, / Irei beber a voz dessa promessa / Que às vezes como um voo me atravessa, / E nela cumprirei todo o meu ser” (Antologia. Porto: Figueirinhas, 1985, p. 37).


Aqui está tudo, o que deve estar: o ser liberto do suceder, a água bebida na fonte, o esplendor somado de todas as horas, o amor finalmente completo, a promessa realizada e a vida alcançada. O poema que se chama “As fontes”, poderia chamar-se “A esperança”.


Da mesma altura são outros, que, parecendo menos afirmativos da esperança, são afinal a sua legitimação perfeita. Negando consistência divina a tudo quanto se costuma aparentar-lhe, afirma a radical alteridade de Deus, só transparecida no brilho novíssimo dalguns olhares. Dalguns olhares que, precisamente, acendem a esperança: “A presença dos céus não é a Tua, / Embora o vento venha não sei donde. / Os oceanos não dizem que os criaste, / Nem deixas o Teu rasto nos caminhos. / Só o olhar daqueles que escolheste / Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas” (Ibidem, p. 46).

A esta luz apercebida, tudo o mais redunda fantasmagórico. A esperança decanta-se, afinal.


Dois anos depois, Sophia publicava Coral. Onde encontramos versos de fogo, mesmo que de sugestão marinha. Como estes, em que a esperança, urgindo vivíssima, como que não tendo tempo já para algo de outro, se torna quase militante: “Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio / E suportar é o tempo mais comprido. / Peço-Te que venhas e me dês a liberdade, / Que um só dos Teus olhares me purifique e acabe. / Há muitas coisas que eu não quero ver. / Peço-Te que sejas o presente. / Peço-Te que inundes tudo. / E que o Teu reino antes do tempo venha / E se derrame sobre a Terra / Em primavera feroz precipitado” (Ibidem, p. 100).


Mas Sophia aprendeu – e ensinou também – que tanta urgência do dia tinha de atravessar a noite. A “noite” de que todos falam, os “salvos na esperança”, todos os que caminham e navegam. Como esta que a nossa poetiza – tão solar! – cantará anos depois: “A noite abre os seus ângulos de luz / E em todas as paredes te procuro / A noite ergue as suas esquinas azuis / E em todas as esquinas te procuro / A noite abre as suas praças solitárias / E em todas as solidões eu te procuro / Ao longo do rio a noite acende as suas luzes / Roxas verdes e azuis / Eu te procuro” (Ibidem, p. 171).


Concluímos então, se o termo se aplica. Da doutrina da encíclica à actualidade da vida, da vida vivida à vida entrevista na esperança e na inspiração, percorremos um caminho quaresmal, que porventura nos “fez sair” para mais além, em êxodo, sempre em êxodo… E o motivo primeiro, de ordem experimental, é o que já lemos em Bento XVI e devo retomar aqui, tão essencial e oportuno se revela, tão indutor de práticas urgentes, na vida da Igreja e na oferta ao mundo: tudo se ganhará na esperança, tudo se dilatará no coração, tudo se exercitará na oração dos filhos de Deus.


Que o Espírito divino, agente único de tal dilatação, a tenha acrescido em nós, ainda além das altas naves desta catedral! O mundo espera corações imensos!

Sé do Porto, 13 de Março de 2008

Manuel Clemente, Bispo do Porto

2008-03-19

"El cuerpo en la tradición"



El cuerpo en la tradición

Textos

Del orígen al fin: el cuerpo y sus relaciones con el Universo según las tradiciones. Juan José Prats Ferrer


El hombre mecánico. Anastasio Rojo Vega


Higa, higo, hígado y aojo (magia, religión y medicina). Angel Gómez-Morán Santafé


La desaparición del cuerpo y la otra vida. Luis Díaz Viana


Catálogo
    

Edita Fundación Joaquín Díaz
2007
25x18 cm, 195 pgs.
Ilustraciones
Encuadernación en tela editorial grabada con sobrecubierta

25 €

2008-03-18

"Esperar, para abraçar a totalidade", por D. Manuel Clemente (2ª conferência quaresmal)


Esperar, para abraçar a totalidade (cf. Spe Salvi, n.º 12)

Neste nosso segundo encontro quaresmal, sobre a virtude da esperança à luz da encíclica Spe Salvi, proponho-me comentar algumas afirmações do Papa Bento XVI, sumamente sugestivas e oportunas para a vida de todos nós.

Quero dizer que a esperança liberta e potencia infinitamente cada momento da vida, fazendo-nos tomá-lo como ocasião e estímulo para a actualidade definitiva, quando tudo for plenamente vivido, realizando o futuro – e dispensando-o assim - num eterno presente. Quer o Papa dizer que isso sucederá apenas quando os encontros que vão dando expressão à nossa história coincidirem todos no encontro que a resumirá, finalmente. Como canta expressivamente um dos hinos da Liturgia das Horas: “Passa o tempo, corre a vida, / Hora a hora o dia foge; / Mas a fé nos anuncia / Que vem perto o grande encontro”.

Realmente, as coisas não são assim tão fáceis… Porque o mais corrente e padecente é vivermos divididos entre o anseio de plenitude e o desconhecimento do seu contorno mais preciso. Bento XVI terá no número 12 da encíclica um dos seus momentos mais conseguidos, precisamente ao descrever tal contradição, por demais sentida: “De certo modo, desejamos a própria vida, a vida verdadeira, que depois não seja tocada sequer pela morte; mas, ao mesmo tempo, não conhecemos aquilo para que nos sentimos impelidos” (Spe Salvi, nº 12).

- Como resolver tal dissensão íntima? Antes de mais, aceitando seguir esse desejo profundo, mesmo sem lhe divisar o fim. E isto porque tal desejo tem um nome certo, que é exactamente o da esperança, única garantia da plenitude cabal. Continua o Papa, muito certeiramente: “Esta ‘coisa’ desconhecida é a verdadeira ‘esperança’ que nos impele e o facto de nos ser desconhecida é, ao mesmo tempo, a causa de todas as ansiedades como também de todos os ímpetos positivos ou destruidores para o mundo autêntico e o ser humano verdadeiro” (Ibidem).

Digamos assim: pode ser indefinido o objecto da esperança, mas essa mesma indefinição é que lhe garante um futuro certo. Qualquer meta mais curta e divisada, não nos tiraria donde estamos, por fora ou por dentro de nós mesmos. É exactamente por ser ímpeto que nos leva longe, como aquela verdade, só entrevista mas de grande exigência pessoal, que cantava o futuro Cardeal Newman num hino que a Liturgia das Horas felizmente inclui também: “Luz terna, suave, no meio da noite, / Leva-me mais longe… / Não tenho aqui morada permanente: / Leva-me mais longe…”.

O inglês Newman, em vias de se converter a um catolicismo “romano” com que não simpatizava, sentia entretanto que para aí mesmo o levava uma luz ainda bruxuleante, mas indubitavelmente segura. Rendia-se a ela, mesmo temendo o futuro que afinal ansiava, em absoluta verdade. E insistia: “Que importa se é tão longe, para mim, / A praia onde tenho de chegar, / Se sobre mim levar constantemente / Poisada a clara luz do teu olhar? / […] Se Tu me dás a mão, não terei medo, / Meus passos serão firmes no andar. / Luz terna, suave, leva-me mais longe; / Basta-me um passo para a Ti chegar”.

Assim nos leva a esperança. E, mais do que nesse trecho de Newman, que ainda se circunscrevia na vida próxima e terrena, a tensão anelante que nos transporta levar-nos-á à vida eterna e celeste. Não de modo alienante, mas transbordante.

Assim sendo, mantenhamo-nos na tensão. – Um anelo que nos transporta onde, se não divisamos meta nem rosto? Aqui trabalhará a imaginação, certamente. Mas não a deixemos despistar-se em rumos sem sentido. Como se nos puséssemos a pensar no além com categorias de aquém, com a frustração óbvia de prolongar o que já não basta.

– Em que pensamos, por exemplo, sob o nome de eternidade? O Papa desenvolve: “Com efeito, ‘eterno’ suscita em nós a ideia do interminável, e isto nos amedronta; ‘vida’ faz-nos pensar na existência por nós conhecida, que amamos e não queremos perder, mas que, frequentemente, nos reserva mais canseiras que satisfações, de tal maneira que, se por um lado a desejamos, por outro não a queremos” (Spe Salvi, nº 12).

- Se não é esse o caminho, por onde deveremos então prosseguir, na imaginação tão precária como indispensável do objecto da esperança que não pára?

O dilema é árduo, porque não podemos obviá-lo. Por um lado, não podemos deixar de esperar; por outro, é-nos difícil imaginar o quê… A não ser que não se trate de “o quê” mas de “quem”. E que deste “quem” já tenhamos apercebido o rosto.

Sabemos certamente – e certeiramente! - o que o Catecismo da Igreja Católica nos lembra: “Este mistério de comunhão bem-aventurada com Deus e com todos os que estão em Cristo ultrapassa toda a compreensão e toda a representação” (nº 1027). Ou ainda: “Em virtude da sua transcendência, Deus não pode ser visto tal como é, senão quando Ele próprio abrir o seu mistério à contemplação imediata do homem e lhe der capacidade para O contemplar” (nº 1028). Mas, acreditamos, antes de mais e acima de tudo, que, em Cristo, Deus se tornou presente para sempre às nossa vidas, preenchendo o aquém e o além delas: “Na glória do céu, os bem-aventurados […] já reinam com Cristo. Com Ele ‘reinarão pelos séculos dos séculos’ (Ap 22, 5)” (nº 1029).

O rosto de Cristo é um rosto total, onde, de certo modo, cabem até todos os rostos. Um encontro final, que inclui todos os encontros e consiga mesmo superar os desencontros havidos.

Ora, diz-nos o Papa, é dessa totalidade que se trata, como único alimento consistente duma indispensável esperança. Oiçamo-lo: “A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe” (Spe Salvi, nº 12).

Um pouco onírico até aqui, poderia parecer-nos. Realmente não, porque tudo se realiza no encontro com Alguém que nos procurou há dois mil anos e nos receberá sempre, conforme a promessa que deixou. A promessa que assegura a esperança e a alegria: “Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria. Assim o exprime Jesus, no Evangelho de João: ‘Eu hei-de ver-vos de novo; e o vosso coração alegrar-se-á e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria’ (16, 22). Devemos olhar neste sentido, se quisermos entender o que visa a esperança cristã, o que esperamos da fé, do nosso estar com Cristo” (Ibidem).

E a encíclica alude, muito a propósito, ao nº 1025 do Catecismo: “Viver no Céu é ‘estar com Cristo’. Os eleitos vivem ‘n’Ele’; mas n’Ele conservam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade, o seu nome próprio”.

“Conservam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade”: Óptima definição daquilo que espera a quem espera. A eternidade não é muito tempo, mas tempo completo e total, que já não precisa de desdobramento; e essa totalidade não nos dilui, antes nos realiza inteiramente como pessoas, isto é, em relação perfeita com Aquele que a potencia infinitamente, por ser “Deus connosco”, em qualquer circunstância actual. No fim estaremos nós e Ele: e n’Ele temos acesso ao Pai no Espírito; e n’ Ele reencontramos tudo, realizando a esperança.

Uma questão de totalidade, uma questão de actualidade: uma questão de sabedoria, que as une às duas. Sabedoria significa um saber saboreado, existencial e não meramente pensado. Só amadurece com o tempo, que aí encontra a sua razão de ser, como cadência do entendimento das coisas, na respectiva razão de serem, de sermos com elas, de sermos com Ele, definitivamente.

Mas isto que digo e será fácil de dizer, parece mais, hoje em dia, fácil de esquecer. Se só com tempo as coisas amadurecem, ainda mais no homem do que na natureza, então o arco da existência humana há-de ser dilatado, como felizmente a ciência o vai permitindo. E deveríamos estar muito felizes com isso, valorizando a idade avançada e mantendo-a bem integrada na convivência social, com muito ganho desta.

Mas tal não sucede, ou não sucede suficientemente, numa sociedade como a nossa. Por várias “razões”, sabemo-lo bem: porque pais, filhos e netos trabalham ou estudam fora, por vezes longe e geralmente separados uns dos outros, tornando difícil a manutenção em casa dos ascendentes mais idosos, sobretudo se doentes e dependentes.

Porque as sugestões de consumo encontram mais escoamento nos jovens do que nos idosos, o que também leva os primeiros a ver a vida num horizonte mais breve e desmotiva os segundos em relação ao futuro que lhes sobra.

Porque a própria política tem dificuldade em ultrapassar o crescimento pelo desenvolvimento, ou seja, uma perspectivação material das coisas por outra mais integral, em que contem sobretudo as pessoas e a realização das suas capacidades, com relevo para a sabedoria acumulada.

É um facto que não se apreende a vida e o mundo aos vinte como aos quarenta, aos quarenta como aos sessenta e por aí adiante. E é também um facto que, ganhando a sociedade com a juventude e a criatividade dos mais novos, não ganha menos com a experiência acumulada e a opinião provada dos mais velhos. Infelizmente, tardamos em ser consequentes neste importantíssimo ponto, organizando a sociedade – e até as nossas comunidades crentes? – de modo a que nenhuma geração seja dispensada, nenhuma sabedoria desperdiçada.

Existem iniciativas promissoras, das universidades seniores às actividades sociais integrando crianças, jovens e adultos de menos ou mais idade. Mas ainda há muito a pensar e a realizar, para que ganhemos todos com o que vida ensinou aos outros. Quando Jesus é levado ao templo, por Maria e José, culminando assim a antiga esperança de Israel, é reconhecido e divisado por quem já o podia acolher assim. Precisamente Simeão, a quem “tinha sido revelado pelo Espírito Santo que não morreria antes de ter visto o Messias do Senhor”; e Ana, “de idade muito avançada” que “não se afastava do templo, participando no culto noite e dias, com jejuns e orações” (cf. Lc 2, 25 ss).

– Significa isto que a idade é lastro conveniente para se apurar a esperança e preparar a visão? E que serão por isso os anciãos quem melhor cantará a salvação e dela falará a todos quantos esperam? A figura daquela esperança era certamente o Menino; o coração que a acolhia era ancião. Uma e outra coisa não estão absolutamente dependentes da idade de cada um, mas estão naturalmente relacionadas com uma depuração da vida e da esperança que, em geral, o tempo proporciona gradualmente.

Creio poder afirmar que um dos maiores desperdícios desta sociedade de tantos consumos é precisamente o da pouca valorização dos idosos. Há felizmente muita iniciativa, particular e pública, que lhes proporciona boas ou razoáveis condições materiais de vida. Mas há muitíssimo a fazer no sentido de valorizar e recolher tudo o que eles ainda podem dar; especialmente tudo o que só eles podem dar-nos, a partir da experiência acumulada, a partir da sabedoria. E neste ponto há realmente muito a fazer, para estimular e acrescer o lugar e a contribuição dos idosos na sociedade, na família e também nas instâncias públicas e administrativas.

Cito palavras oportunas dum conhecido psiquiatra em artigo recente: “O aumento da esperança de vida impõe um novo olhar sobre os problemas do envelhecimento”. É imperiosa a conclusão, porque mais tempo de vida tem de significar também maior valorização social e cultural dela. Tanto mais que vários concidadãos nossos, em diversas áreas, da cultura à intervenção pública, “continuam, depois dos 80, a consolidar a ideia de que existem cada vez mais pessoas, na agora chamada quarta idade, em condições de serem cada vez mais úteis e necessários”. Continua, mais adiante, o mesmo autor: “Como salienta Helena Marchand no seu livro sobre os problemas do envelhecimento, temos de considerar os mais velhos “A Idade da Sabedoria”. Sabem mesmo muitas coisas: têm uma importante experiência de vida, podem ter motivação para transmitir muitas coisas às gerações mais novas e têm, quase sempre, um profundo conhecimento dos valores e das prioridades, o que torna o seu contributo indispensável na família e na sociedade”. E concretiza os bons efeitos que terá para o País, para as famílias, para a sociedade e para a cultura em geral, uma valorização maior e mais consequente dos idosos e do seu inestimável papel: “Em Portugal, onde falta tanto uma visão reflectida do mundo, importa ouvir os mais velhos. […] Na família, os avós são cada vez mais importantes: herdeiros dos escombros dos divórcios, crianças e adolescentes encontram nos avós a noção de continuidade intrapsíquica da família, sinal essencial para a estruturação do seu próprio futuro. […] Para mantermos os idosos em boa saúde mental, temos de começar por aceitar que eles podem ter menos instrução (a que não tiveram acesso, em muitos casos) mas muitas vezes têm mais cultura, pois conservam um conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos e costumes que estruturam uma comunidade. Depois, temos de os estimular na participação a todos os níveis, utilizando a sua capacidade reflexiva sobre os problemas”. Terminando taxativamente: “No futuro, a evolução das sociedades dependerá do modo como tratarmos as crianças e os velhos”(Daniel Sampaio – A 4ª idade. Pública, 20 de Janeiro de 2008, p. 74).

É realmente assim, de facto; e deve passar a sê-lo de direito, quer pelo respeito e consideração que os idosos nos merecem, nesse novo quarteirão da sua vida de horizonte centenário, além dos setenta e cinco anos, quer pelo apoio que merecem da sociedade e do Estado, e em próprio benefício duma e doutro. E, quando se levanta um rumor aparentemente humanitário, no (sem)sentido de aceitação da eutanásia, é importantíssimo dizer que o caminho tem de ser absolutamente outro, ou seja, o do acompanhamento dos idosos, sobretudo na debilidade e na doença, com todos os subsídios da segurança e da medicina, integrando os cuidados paliativos, de tanta eficácia actual.

Nós não podemos dispensar os idosos e os doentes, nem dispensar-nos deles. Para um cristão, tal decorre imediatamente do comportamento de Cristo, que nunca se alheou das fronteiras difíceis da vida humana, pois que vinha precisamente salvá-las e transpô-las. Mas para todos nós, seres humanos do início do século XXI, essa tem de ser a ocasião mais certa para efectivarmos e garantirmos a nossa humanidade, nossa e dos outros. E todos ganharemos com isso: porque “a felicidade está mais em dar do quem em receber”, sendo esta frase de Jesus, recordada por Paulo a propósito do socorro aos mais fracos (Act 20, 35); porque não temeremos a velhice em nós, quando a acompanhamos já nos outros; porque receberemos no trato dos idosos as lições mais comprovadas da existência humana.

A nossa sociedade vale e valerá em grandíssima parte o que dispensar positivamente aos seus anciãos e enfermos. Da parte destes, garantem-nos os que contactam mais habitualmente com eles, nenhum quer partir, se é realmente acompanhado e estimado aqui; da nossa parte, encontraremos em tal convivência o sentido mais belo e mais seguro da nossa existência, seja em que fase for, seja em que situação aconteça. Apuraremos a eternidade, em suma, mais qualitativa do que extensivamente, para retomarmos o trecho papal de que partimos. Treinaremos o encontro definitivo e total, nestes encontros inalienáveis de afora, com saudáveis e doentes, novos e velhos, porque em todos se alargará o coração e ganhará a vida. E não, nunca, doutro modo.

Esclarecedoramente, o Papa Bento XVI lembrou há pouco que as “pressões eutanásicas” aumentam sobretudo “quanto se insinua uma visão utilitarista em relação à pessoa”. E ainda: “Numa sociedade complexa, fortemente influenciada pelas dinâmicas da produtividade e pelas exigências da economia, as pessoas frágeis e as famílias mais pobres arriscam-se, nos momentos de dificuldade económica ou de doença, a serem esquecidas”. Aproveitou o Papa para pedir mais apoio público para as famílias que acompanham doentes, como já os vão tendo em relação aos nascimentos (cf. Agência Ecclesia, 26 de Fevereiro de 2008, p. 12).

E um conceituado cientista da nossa cidade, O professor Daniel Serrão, a cujos excelentes oitenta anos presto aqui a minha homenagem, acaba de afirmar, também sobre este ponto: “Não estamos autorizados a fazer aos outros o que não queremos que nos façam a nós. Não interessa discutir a eutanásia, mas sim os cuidados paliativos […]. Porque as dores são tratáveis, a vida até à morte pode ser digna e feliz” (Jornal de Notícias, 1 de Março de 2008, p. 19)

Gostaria de terminar esta conferência como terminei a primeira, ou seja, dando ouvidos à poesia. E isto porque, porventura mais do que qualquer prosa, a decantação da palavra nos levará mais perto do que só se pode entreouvir, do essencial. A religião, sondando as coisas primeiras e novíssimas, é parente próxima da poesia e da música.

Nesta senda, convém retomar uma passagem, já atrás citada, da segunda encíclica de Bento XVI: “A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe” (Spe Salvi, nº 12).

- Pois não é disso mesmo que se trata, quando falamos das virtualidades da velhice? De ir saindo da temporalidade de que somos prisioneiros, de irmos abraçando a totalidade? E como sabê-lo sem já ter sugado a seiva do tempo? E como chegar à totalidade sem a ter apercebido nas coisas, entretanto?

Fernando Echevarría - poeta também da nossa cidade e primeiro agraciado com o prémio de cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, em 2005 – tem-nos oferecido algumas meditações poéticas sobre a velhice que trago aqui com todo o reconhecimento e oportunidade.

Escolho poucas, de entre as muitas que podiam ser. Como esta, sobre a transparência que o tempo dá finalmente aos lugares, a serenidade que só se alcança para além da precipitação: “Iremos indo? Ou, sobretudo, estamos / a receber, na idade que nos vem, / profunda transparência de lugares? / E, além dela, até / inteligência, solidão? A análise / é o que nos chega talvez / com ímpeto mais lento. / E, mesmo, quase / com a abstrusa evidência que é de lei / quando o que se dá vem dar-se / a irmos indo por um vagar que vem” (Fernando Echevarría – Obra inacabada. Edições Afrontamento, 2006, p.730).

“A irmos indo por um vagar que vem…”. Salta-me à memória nesta circunstância o último encontro que tive com o saudoso Cardeal D. António Ribeiro, patriarca de Lisboa, há dez anos falecido. Estava muito doente já e resumiu-me aquele momento de dor e esperança com esta frase absoluta: “Estou à espera que Ele venha!”. São assim os crentes, quando os anos, amadurecidos na fé, lhes ensinam - e nos ensinam por eles - o que definitivamente deve acontecer.

E com isto estamos a falar da liberdade. Da desmedida largueza porque o corpo ainda pulsa, sugado tempo a ansiar por mais, como me costuma repetir um amigo nonagenário: “Sabe a pouco…”. Da liberdade que Echevarría também canta, mesmo quando não lhe diz o nome: “Estamos perto de onde o tempo alarga / a sua paração. E suga o fundo / mais longínquo de idades, tão arcaicas / que chegam só em escuridão de tufo. / O ímpeto invisível da chegada / apenas incrementa o espaço. O último / horizonte. Que recrudesce. Gasta / o anterior. De cuja altura e uso / prescinde. Para só se erguer mais alta / a paração. A abóbada e o culto / da inteligência a expandir a escala / da invisibilidade. Até que o susto / nos fique perto. E, ao mesmo tempo, a alma / resuma o corpo à lentidão do pulso” (Ibidem)

Chamando-se iluminação à vida cristã, a velhice sábia e serena é a sua última refracção, qual direcção última da luz no seu meio definitivo. – E quanto precisamos nós desta última orientação de quem já a sabe! Como, de novo, no canto do poeta: “Com os anos a luz vira a mais doce. Entrega / a transparência de sabedoria / aos passos graves. À expansão aberta / de outro fundo de luz que inunda a vista. / Ser-se feliz é mais do que átrio. Leva / em si a lucidez de, a cada dia, / ir entrando por uma inteligência / que se despede da melancolia. / Mas não do cunho desse pulso doce / que toma conta de mais luz ainda, / embora a brisa vá trazendo a noite / à refulgente inclinação do dia. / E à da velhice que recruta e move / sua fronteira para lá da linha” (Ibidem, p. 838).

- Fronteira para lá da linha? Totalidade vivida num encontro, como escreveu o Papa? - Urgência de reconhecer e ganhar social e culturalmente tudo quanto a velhice enxerga, só ela?!

Creio que nada disto é forçado, antes forçoso. Para profetizarmos por fim com Echevarría: “Entardecíamos em Deus. No doce / apuro da sua dádiva. / Era um Outubro cúmplice, por onde / o lúcido licor vinha às palavras / explicitar-se. E ao seu lume a pôr-se / no júbilo do espírito e das águas. / Decantava-se sermos o suporte / desse momento. Da doçura amarga / que altíssima subia pela morte / e dava em vida. Que só Deus nos dava” (Ibidem, p. 820-821).

Manuel Clemente, Sé do Porto, 6 de Março de 2008

2008-03-14

Gira Sol Azul


Dor do Papa pela morte do arcebispo iraquiano


Dor do Papa pela morte do arcebispo iraquiano

Seu corpo foi encontrado hoje

CIDADE DO VATICANO, quinta-feira, 13 de março de 2008 (ZENIT.org).- Bento XVI manifestou a sua profunda dor ao receber a notícia da morte do arcebispo Paulos Farj Rahho, de Mosul dos Caldeus (Iraque), que tinha sido sequestrado no dia 29 de fevereiro.

Segundo revelou o bispo auxiliar de Bagdad, Dom Shlemon Warduni, o corpo do prelado foi encontrado hoje enterrado, em um lugar que havia sido indicado por telefone pelos sequestradores.

«O corpo de Dom Rahho não apresenta sinais de violência ou tiros de arma de fogo. É possível que o arcebispo tenha falecido por causas ligadas a seu precário estado de saúde, agravado pelas condições do sequestro», declarou Dom Warduni através do serviço de informação da Igreja na Itália (SIR).

O bispo revelou que «os funerais serão celebrados amanhã em Karamles. Por enquanto não sei se poderão ser presididos pelo cardeal Emmanuel III Delly», patriarca da Babilónia dos Caldeus, com sede em Bagdad.

Em um telegrama enviado ao cardeal, o Papa manifestou «à Igreja caldeia e a toda a comunidade cristã sua particular proximidade, deplorando firmemente este gesto de violência inumana que ofende a dignidade do ser humano e prejudica gravemente a causa da convivência fraterna do amado povo iraquiano».

«Enquanto asseguro fervorosas orações de sufrágio pelo zeloso pastor sequestrado precisamente no final da celebração da Via Sacra – acrescenta a mensagem papal –, invoco ao Senhor sua misericórdia para que este trágico acontecimento sirva para edificar na martirizada terra do Iraque um futuro de paz.»

Por sua parte, o Pe. Federico Lombardi S.J., director da Sala de Informação da Santa Sé, reconheceu que «todos continuávamos esperando e rezando por sua libertação, como o Papa havia pedido em diferentes ocasiões em seus chamados».

«Infelizmente, a violência mais absurda e injustificada continua a abater-se sobre o povo iraquiano e em particular sobre a pequena comunidade cristã, da qual o Papa e todos nós nos sentimos especialmente próximos com a oração e a solidariedade neste momento de grande dor», continua explicando o porta-voz vaticano.

«Esperamos que este trágico evento recorde mais uma vez e com maior força o compromisso de todos e em particular da comunidade internacional pela pacificação de um país tão atormentado», conclui o Pe. Lombardi.

[Texto de Pedro Aguiar Pinto]

2008-03-13

"Papa pede libertação do arcebispo sequestrado no Iraque", por Mirko Testa

Papa pede libertação do arcebispo sequestrado no Iraque

Assegura que se encontra em precárias condições de saúde

Por Mirko Testa

CIDADE DO VATICANO, domingo, 3 de março de 2008 (ZENIT.org).- Neste domingo, Bento XVI voltou a pedir a libertação de Dom Paulo Faraj Rahho, arcebispo de Mosul dos Caldeus, no Iraque, sequestrado no dia 29 de Fevereiro, ao sair da igreja do Espírito Santo, onde havia participado da Via Sacra.No assalto foram assassinados dois guardas de segurança que acompanhavam o arcebispo, assim como seu condutor. Seu funeral foi celebrado esse sábado.

No final da oração do Angelus, o Papa confessou que acompanha «com profunda tristeza» «o dramático sequestro» e se uniu «ao apelo do patriarca, o cardeal Emmanuel III Delly e de seus colaboradores para que o querido prelado, que se encontra em precárias condições de saúde, seja libertado o quanto antes».

«Ao mesmo tempo elevo minha oração de sufrágio pelas almas dos três jovens assassinados, que se encontravam com ele no momento do sequestro», disse o pontífice.

«Expresso, também, a minha proximidade a toda a Igreja no Iraque e, em particular, à Igreja caldeia, uma vez mais duramente atingida, enquanto alento os pastores e os fiéis a permanecerem firmes na esperança».

O Santo Padre pediu «que se multipliquem os esforços de quem depende a sorte do querido povo iraquiano para que, com o empenho e sabedoria de todos volte a encontrar a paz e a segurança, e não se lhe negue o futuro a que tem direito».

Em declarações à agência missionária MISNA, Dom Philip Najim, responsável caldeu na Europa, explicou que não o surpreendeu a notícia do sequestro de Dom Rahho, «em certo sentido, posso dizer que esperava».

«Há pouco tempo alguns homens detiveram-no na rua apontando-lhe uma arma ao peito – revela. Ele mesmo me contou na sua última visita a Roma».

Dom Philip Najim explicou que a situação em Mosul piorou desde a queda do regime de Saddam Hussein e que «desde há tempos se multiplicaram os grupos que pretendem libertar o Iraque dos “estrangeiros” para criar um estado “islâmico”, obviamente segundo seu ponto de vista, pois não têm nada a ver com o verdadeiro Islão».

Personalidades muçulmanas de Mosul pediram a libertação do arcebispo.

Por seu lado, o patriarca da Babilónia dos Caldeus, o cardeal Emmanuel III Delly, numa entrevista concedida ao diário da Santa Sé, «L’Osservatore Romano», comentou que este sequestro «não afectará as boas relações entre cristãos e muçulmanos».

«Nossa amizade existe há séculos e continuará – afirma. Quem sequestra certamente não tem religião de referência».

Em Janeiro, já havia acontecido uma série de atentados contra igrejas e conventos em Kirkuk, Bagdade e Mosul, com um balanço de quatro feridos e graves danos em igrejas.

O sequestro de Dom Rahho é muito semelhante ao que aconteceu em 3 de junho de 2007, perto da mesma Igreja do Espírito Santo, quando foi assassinado o padre Ragheed Azzid Ganni, sacerdote do patriarcado da Babilónia dos Caldeus, juntamente com três subdiáconos.

Na entrevista, concedida no sábado e publicada no domingo, o patriarca afirma que ainda não haviam recebido reivindicações dos sequestradores.

«Só temos muito medo. As pessoas fogem e vão para outro lugar. A oração é nosso único consolo», conclui.

Numa notícia recente da ACIPrensa espanhola, de hoje, 3 de Março à2s 13:15, e segundo o Padre Angel Garcia da fundação Mensageiros da Paz, os raptores pedem um resgate de 1, 2 milhões de euros.

2008-03-12

"Avaliação", por António Barreto* ("Público")

16 dezenas de professores em cordão humano, hoje, na Escola do Viso

Avaliação
09.03.2008, António Barreto Retrato da semana, Público

Mais do que dos sindicatos ou dos professores, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues é vítima da 5 de Outubro

Não é possível apoiar a ministra por inteiro, nem criticá-la por atacado. O seu legado de medidas, ideias e objectivos tem de tudo, do muito bom (a consolidação do cargo de director de escola, os contratos de três anos a favor de um princípio de estabilidade dos professores), ao muito mau (o sistema de avaliação, o regime de faltas dos alunos).
Boas ideias, simples e necessárias, como fechar as escolas mais tarde e criar aulas de substituição, coexistem com propostas absurdas, como a de fazer intervir os pais na avaliação dos docentes ou de contar as notas dos alunos para a folha de serviços do professor. Como há também omissões dignas de recordação, em particular a aparente recusa de proceder, dentro da legislatura, à entrega das escolas às comunidades locais, às autarquias e às comunidades educativas (professores, pais e autarcas).
A persistência de um modelo de educação integrada, unificada e centralizada é não só a génese de inúmeras deficiências actuais, como também a razão de ser da dificuldade ou da impossibilidade de levar a cabo as reformas úteis e necessárias. É também a causa da transformação dos problemas de educação em guerra social nacional.

O elemento essencial das reformas de Maria de Lurdes Rodrigues consistiu, até hoje, na alteração da relação de forças dentro da educação. Em termos simples, retirou aos sindicatos uma parcela importante do poder que, sob várias formas, detinham até agora. Esta é a sua força. Nada seria possível fazer sem a remoção prévia da tenaz sindical que, sob múltiplas formas, mantinha a educação e o ministério como reféns.
Mas essa reforma, mais propriamente política, seria ineficaz e apenas adjectiva se não fosse completada por alterações importantes e razoáveis nas questões substantivas: a gestão do sistema, o modelo de organização, a definição de novos conteúdos curriculares e dos manuais, entre outras. Esta a sua fraqueza.
O que se passa nas ruas do país tem, evidentemente, conotações políticas. Não podia deixar de ser. A educação é um tema político de primeira importância. Aqueles que, no Governo e alhures, denunciam a ingerência de "políticos" e "partidos" avançam um argumento gasto e míope. Mas também é verdade que a contestação ultrapassou largamente as fronteiras da política pura e do sindicalismo, para se tornar também profissional e social. O Governo já percebeu isso, mas persiste em negar a evidência, na esperança de comover os pais, em particular, e a "maioria silenciosa", em geral. Daí o ter transformado os professores, todos os professores, em vilões. A atitude não é inédita e não merece que com ela se perca tempo.

O movimento dos professores tem muitos objectivos: o director da escola, o conceito de autonomia, o estatuto da carreira docente e outros. Além da parcela de poder sindical. Acontece que os professores têm algumas razões. E a ministra também. O facto de se ter declarado guerra entre aqueles e esta é infeliz, pois impede detectar as razões que assistem uns e outra. Infelizmente, é assim a luta das classes e das instituições. É frequente perder-se a semente no meio do joio.
A este propósito, sublinhe-se um erro decisivo na estratégia do Governo, não se sabe se da autoria da ministra, mulher tranquila, se da responsabilidade do primeiro-ministro, homem crispado. A ausência de vontade experimental, ou de estratégia empírica, esteve evidente desde o início. O Governo queria organizar uma cruzada, fazer tudo ou nada, agir por enxurrada e realizar tudo ao mesmo tempo, em todo o sítio e para toda a gente. Com este método, os erros tomam uma dimensão colossal e torna-se impossível corrigir o que quer que seja.
O sistema de avaliação que a ministra pretende impor e que os sindicatos recusam é apenas um dos temas de contestação. Mas é o que tem surgido com mais evidência. A coberto de uma virtude indiscutível, a ideia de avaliação não é recusada por ninguém. É de bom-tom dizer que se é "a favor da avaliação, mas contra esta avaliação". Para todos, ou quase, é uma espécie de santo-e-senha de honorabilidade. Acontece que não é. A palavra, o conceito, o mito e o tique nasceram há vinte ou trinta anos. Em Portugal e na Europa. Criado por burocratas e tecnocratas, os defensores da avaliação acreditam que um sistema destes promove a boa educação, melhora o ensino, castiga os maus profissionais, detecta os talentos, permite corrigir erros e combate o desperdício. Na verdade, o sistema e a sua ideologia, que infestaram o Ministério da Educação, são próprios de uma educação centralizada, integrada e uniforme. Na impossibilidade humana de "gerir" milhares de escolas e centenas de milhares de professores, os esclarecidos especialistas construíram uma teoria "científica" e um método "objectivo" com a finalidade de medir desempenhos e apurar a qualidade dos profissionais. Daí os patéticos esquemas, gráficos e grelhas com os quais se pretende humilhar, controlar, medir, poupar recursos, ocupar os professores e tornar a vida de toda a gente num inferno. O que na verdade se passa é que este sistema implica a abdicação de princípios fundamentais, como sejam os da autoridade da direcção, a responsabilidade do director e dos dirigentes e a autonomia da escola. O sistema de avaliação é a dissolução da autoridade e da hierarquia, assim como um obstáculo ao trabalho em equipa e ao diálogo entre profissionais. É um programa de desumanização da escola e da profissão docente. Este sistema burocrático é incapaz de avaliar a qualidade das pessoas e de perceber o que os professores realmente fazem. É uma cortina de fumo atrás da qual se escondem burocratas e covardes, incapazes de criticar e elogiar cara a cara um profissional. Este sistema, copiado de outros países e recriado nas alfurjas do ministério, é mais um sinal de crise da educação. Mais do que dos sindicatos ou dos professores, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues é vítima da 5 de Outubro.
*Sociólogo

"Regicídio - 1908", de Aníbal Pinto de Castro




"Tudo normal", por Manuel António Pina ("JN", 10 de Março de 2008)


100 000 dos 140 000 professores portugueses manifestaram-se em Lisboa exigindo a demissão da ministra.

Mas, para esta, "o país não tem escolha". Por isso, "continuará a trabalhar".

Anteriormente, em várias localidades do país que não tem escolha polícias à paisana andaram pelas escolas a perguntar quem iria manifestar-se a Lisboa, "coisa - para o porta-voz do PS, Vitalino Canas - perfeitamente normal", com a PSP a cumprir "simplesmente as suas funções".

Por sua vez, na área de serviço de Aveiras, a BT, também cumprindo simplesmente as suas funções, interceptou 20 autocarros cheios de professores impedindo-os de chegar a tempo à manifestação, para confirmar se todos traziam os cintos de segurança devidamente postos.

Em Chaves, um perplexo ministro, confrontado com mais manifestantes, informou-os de que "a liberdade é algo que o país deve a Mário Soares, Salgado Zenha, Manuel Alegre. Não deve a Álvaro Cunhal nem a Mário Nogueira".

Excluiu-se modestamente a si próprio da lista de credores do país mas cumpriu também simplesmente as suas funções, e Chaves é um sítio como outro qualquer para reescrever a História.

Como os xadrezistas de que fala a lenda, o Governo parece tão absorvido no seu próprio jogo que não dá conta de que a cidade está em chamas.