2008-02-03

'A Casa Encantada': "Memórias do regicídio" - por João Bénard da Costa (3 de Fev. de 2008)


De 1 de Fevereiro de 1908, o dia do regicídio, eu não posso, obviamente, ter memórias. Faltavam mais de vinte e sete anos para eu nascer. Vinte e sete anos e seis dias para ser exacto, o que nada adianta ao caso.
De 1 de Fevereiro de 1908, o dia do regicídio, eu não posso, obviamente, ter memórias. Faltavam mais de vinte e sete anos para eu nascer. Vinte e sete anos e seis dias para ser exacto, o que nada adianta ao caso. Tais memórias também as não bebi no leite, porque a minha mãe ainda nem ano e meio levava de vida nessa tarde de morte. O meu pai, então com onze anos e quase cinco meses, lembrava-se de algumas coisas. Vivia no Barreiro, ainda todo de negro vestido, por morte de um irmão a quem a família dedicara um luto quase perpétuo. A tragédia do Terreiro do Paço somava-se, na memória dele, a esse drama familiar. Mais choros, mais ranger de dentes, que o príncipe real, príncipe da Beira, duque de Bragança e de Saxónia e capitão honorário de Lanceiros 2, pouco mais velho era que o dito meu tio e nesses princípios do século, na corte ou na pacata burguesia, ninguém falava dos que morrem novos para ter um belo cadáver ou ninguém via nessas prematuras mortes sinal do muito amor dos deuses. As notícias levavam tempo a atravessar o rio, mesmo entre o chamado Sul e Sueste e o Barreiro, e, segundo o meu pai, já era noite quando se soube na outra banda do regicídio. Se possível, as notícias chegaram ampliadas, falando-se em muitas dezenas de mortos no Terreiro do Paço. Com a propensão para a tragédia que sempre caracterizou esse ramo da minha família, temeu-se pela vida do meu avô paterno, que viera a Lisboa nessa tarde e tardava a chegar. Monárquico, teria sido abatido também? As minhas primeiras memórias do regicídio - essas dos contos paternos - vinham assim envoltas num novelo que ligava mortes familiares a mortes reais, e fizera tremer pelo pater familiae no mesmo dia em que a morte chegou ao pai da família real. Mania das grandezas? Muito pelo contrário. Mania das pequenezas, que para imaginar supremos infaustos os tinha que reduzir a proporções caseiras. Do género de reacções que, um ano mais tarde, quando D. Manuel II visitava as Beiras, levava o povo a comentar: "Coitadinho, tem um ar tão triste. Ficou assim desde que lhe mataram o pai." E era certo que D. Manuel II, por cognome "o Desventurado" (antónimo do rei venturoso que também se chamava Manuel) sempre teve um ar triste, mesmo muito mais tarde, no exílio. Não me lembro de uma fotografia dele em que, rei ou infante, se risse e o príncipe Yussupov, que nas memórias o diz ter conhecido bem, sublinha-lhe, justa ou injustamente, a ausência de sentido de humor em que o matador de Rasputine, pelo contrário, abundaria. Mas ainda estamos muito longe de Twickenham. Volto ao Terreiro do Paço. Se não pude aprender muito nem com os meus pais, pela tenra idade deles, nem com os meus avós paternos, que nunca conheci, não me faltaram, graças a Deus, tios e tias mais velhos (entre os quarenta e os vinte anos nesse 1908) que me fizeram minuciosas descrições do atentado e seus locais. Muito criança ainda, à ida ou à vinda da casa que fora desses avós e no meu tempo era a casa das tias, a passagem pelo Terreiro do Paço, próximo dessa casa, sempre me causou uma esquisita impressão. O Terreiro do Paço, ao longo da minha vida, já foi pintado de várias cores. Nesses anos dos meus bibes, se a memória não me falha, estava pintado de rosa velho, e essa cor parecia-me ainda carregar restos da tarde de sangue. Nunca gostei da Rua do Arsenal, e as arcadas daquele lado do paço não eram propriamente do género que me fizessem dizer também que debaixo delas se passava a noite bem. Imagens mais vividas (e mais vívidas) estão-me ainda ligadas à casa do Jardim do Tabaco, de todas as memórias ancestrais. Era uma casa enorme, com imensos e escuríssimos corredores, e ao jeito da época sucediam-se várias salas e salinhas, escritórios e quartos ditos "de estar". Nas salas quase nunca se entrava, guardadas para soleníssimas ocasiões que no meu tempo eram cada vez mais raras. Só uma vez na vida me lembro de ter visto aqueles espaços todos abertos e contagiantes. Foi quando uns primos afastados, oriundos de Santiago do Cacém, pediram a casa emprestada, porque as dimensões se prestavam como poucas a um "assalto de Carnaval". Hoje, nada me parece mais estranho que uma festa de Carnaval naquela casa de lágrimas sagradas e oratórios secretos. Mas, embora contrariada, ao que parece, a minha tia que, por morte dos pais ficara dona da casa, não ousou negá-la à parentela e a memória dessa festa perdurou por largos anos. Mas isto vinha a propósito das salas, saletas e salinhas. E era numa delas - a primeira à esquerda depois da porta da rua - que, em cima de uma mesa baixa, estava o monumental volumaço D. Carlos - História do Seu Reinado de Rocha Martins. Encadernado a azul, letras douradas na cobertura e fechos de metal, esse livro fora publicado em 1927 e fazia "pendant" (se assim me posso exprimir) com outro de igual formato e igual cor, dedicado a D. Manuel II e publicado pouco depois da morte deste Rei. Rocha Martins não é hoje um nome muito falado. Mas, na primeira metade do século passado, foi um jornalista emblemático, que se vazou em palavras soltas e descompostas a favor ou contra inúmeros e mudáveis amigos ou inimigos. Autodidacta, celebrizou-se com romances históricos, aos 18 anos, que lhe valeram o cognome de "escritor do povo". Depois, esteve com João Franco no Partido Regenerador Liberal e entre os vinte e os trinta anos, ora foi republicano panfletário, ora monárquico exaltado. Diz-se que foi o regicídio que o "impeliu de vez para a causa monárquica sem abandonar o seu culto pela liberdade". Se chamou Fantoches aos barbudos da primeira república, dando deles uma imagem que não coincide propriamente com a das chamadas "virtudes republicanas", para o fim da vida, e nomeadamente em 1945, nas célebres "eleições livres" de Salazar, caiu com violência sobre o regime. Mais ou menos à época em que eu lhe lia os "livros dos reis" (D. Carlos e D. Manuel II), os ardinas apregoavam ao fim da tarde o República (órgão do reviralho possível) gritando: "Fala o Rocha!" E "toda a gente" sabia quem era o Rocha, que, aos sessenta e seis anos, fazia as delícias da oposição, como antes fizera a de tantas outras oposições. Confesso que não consigo ter um juízo claro sobre o homem nem sobre a obra, nem sei em que conta o têm os historiadores de agora. Mas é verdade que lhe devo quase tudo o que em miúdo aprendi sobre os últimos reinados da monarquia ou sobre Sidónio Pais, de quem foi também ardoroso defensor. Livros dele andavam por todas as casas de família, tanto as de tradições monárquicas, tal a que acima evoquei, como as de tradições republicanas que dominavam sobretudo a família da minha avó materna, dividida, é certo, entre "afonsistas" e "camachistas", mas quase todos muito republicanos, almirantes ou generais. Ainda antes do "fala o Rocha", vi, por muitas moradas destas, os fascículos do Europa em Guerra (1940) História da Europa do Armistício à Actualidade, onde me "formei" também em anos 20 e 30. Todos esses livros eram ilustradíssimos, com legendas saborosas sob os retratos de "quem era quem" da política europeia desses anos. Mas o meu primeiro deslumbramento foi o D. Carlos. Muitos dos retratados eram gente "lá de casa" ou de casas conhecidas e eram-me identificados para meu grande espanto, pois não supunha que tão pacata gente tivesse pais ou avós tão eminentemente historiáveis. Mas sobretudo lia o livro com aquele prazer com que se lêem as histórias que já se sabe que acabam mal. À minha volta, adultos faziam o volte sem mostrar os ases (espadilha e basto), ou pondo um ou ambos na mesa. Cheirava bem a bons charutos que o Nunes que mais me chamava a atenção (avô de um António que nada tem que ver com o actual senhor da sinistra ASAE) se chamava José Jacinto e teve o bom gosto de viver em Grândola por muitos e bons anos, sempre como presidente da câmara e sempre republicano. Mas, como esta gente era de outra cepa, quando veio a república zangou-se com quase todos, batendo-se por uma total amnistia aos monárquicos, pois que, para ele, a república não podia servir para ostracizar ninguém. Meses antes de morrer, em 1931, mudou o título das suas Reivindicações Democráticas para Ilusões Perdidas. Não tenho eu o D. Carlos do Rocha à mão e já vou neste despautério.Mas o que sempre mais me apaixonou no livro foi a descrição do regicídio, nessas terríveis cinco de la tarde, a 1 de Fevereiro de 1908. D. Carlos veio de Vila Viçosa, para assistir, nessa noite, à estreia em São Carlos do Tristão e Isolda, quarenta e três anos depois da estreia em Munique, e ainda em versão italiana, com o célebre Francesco Viñas como Tristão. Não deu muitos ouvidos a alguns boatos que corriam na sequência de uma conspirata a 28 de Janeiro que a propaganda republicana, no futuro, exageraria enormemente. Tomou lugar com a rainha e com os dois príncipes numa carruagem aberta, em direcção à Ajuda. O resto é bem conhecido. Mas, no Rocha, dizia-se que quem matou o Rei com um tiro na nuca, pendurando-se na retaguarda da carruagem, foi Alfredo Costa e não o Buíça, como os jornais de agora dizem. Muito mais tarde (anos 20) era popular a quadra de pé quebrado: "Um Costa matou o Rei / outro Costa o Presidente / ainda ficou outro Costa / p"ra dar cabo da gente." Será preciso explicar que o Costa que ficou se chamava Afonso e que José Júlio da Costa foi o nome do assassino de Sidónio Pais? Se calhar é, que cada vez mais são mais necessárias as notas de pé de página. Mas o anonimato do nome fê-lo sumir-se frente ao Buíça, com outras letras, outras armas e outras barbas. Talvez o Buíça não tivesse morto ninguém, se o príncipe D. Luís Filipe se não tivesse levantado para tentar defender o pai. De pé, foi um alvo fácil para a carabina relativamente sofisticada do Buíça. D. Manuel terá sido salvo pela rainha, com o ramo de flores que lhe tinham dado à chegada ao Cais das Colunas. Nesses segundos, a confusão foi indescritível. D. Afonso, irmão do Rei e duque do Porto, apeou-se e desatou a correr como um louco, atrás do coche real. Só por milagre não ficou ali também. Um Je Sais Tout da época (célebre e popular revista francesa) atribuiu-lhe, já no interior do Arsenal improvisado em morgue, o brado fatídico contra João Franco: "Jean, Jean qu"as tu fait de mon roi?" Obviamente apócrifa, a frase encerrava o epitáfio de João Franco que D. Manuel demitiu para escolher a via da "acalmação". Os jornalistas deram largas à imaginação nos supostos diálogos desse fim de tarde fatal, em que o conde de Mafra, D. Thomaz de Melo Breyner, médico, se limitou a confirmar os dois óbitos. O mais significativo é o que teria tido lugar à chegada da rainha D. Maria Pia, rainha mãe. D. Amélia, com quem teria uma rivalidade lendária, disse-lhe: "Mataram o meu filho." Altiva, a outra rainha respondeu-lhe: "E o meu, também." Um diálogo que podia ser escrito por um Rostand português, se o houvesse. Fecho os olhos e continuo a ver os desenhos reconstituídos do interior da carruagem real. Como dizia Talleyrand: "Foi pior do que um crime. Foi um erro." Crime e erro que pagámos com dois regimes de partido único: o da primeira república, de 1910 a 1926, e o do Estado Novo, de 1932 a 1974. Entre um e outro, seis anos de ditadura militar.

1 comentário:

Susana Barbosa disse...

Bom Carnaval!
Excelente escolha musical.
Bjs